Querida Amy Winehouse,

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     Lembro que, uma noite, depois de sair escondida, sofia entrou no meu quarto, deitou na minha cama e disse:

-- Você precisa ouvir essa música!

    Ela me deu os fones de ouvido e, enquanto se encostava no travesseiro, ouvi sua voz pela primeira vez. "I go back to black", você cantou. O ritmo da música era animado e calmo ao mesmo tempo. Havia dor na sua voz -- apesar de não ser tão simples assim. Você tinha uma maneira de cantar que  misturava sentimentos diferentes. E era claro que aquelas letras saíam de dentro de você. Elas eram sinceras.
  
     Descobri que minha amiga normani também te adora. Nós fazemos educação física juntas, e ela sempre esquece o uniforme. Desde que fomos para o festival juntas,  duas semanas atrás, muitas vezes eu finjo que esqueci o meu, mesmo que não seja verdade, para ficar dando voltas na pista conversando com ela em vez de jogar futebol, badminton ou qualquer outra modalidade com a turma toda. Normani quer ser cantora e, as vezes, quando estamos dando voltas na pista, ela canta para mim. As preferidas dela são " Stronger Than Me", "You Know I'm No Good", e, claro "Rehab". Ela gosta de gritar " No, no, no" e balançar o cabelo negro. Ela também tem esse jeito de não querer que ninguém a controle.
     Normani age como uma pessoa destemida, mas dá para ver que, no fundo, ela guarda segredos.
    É o tipo de garota por quem os outros se apaixonam, mas não age como uma garota bonita. É como se procurasse uma maneira de sair de si mesma. Normani sempre está saindo com alguém, às vezes com dois garotos ao mesmo tempo.
     Ela me contou que seus pais morreram quando era bebê, então ela e o irmão foram viver com uma tia no Arizona. Mas o irmão se envolveu em muitas brigas na escola, então a tia mandou os dois para cá, para morar com os avós.
    Logo que Normani chegou, no sétimo ano, ela namorou um dos jogadores de futebol mais populares do oitavo. E aí saiu com um jogador de futebol depois do outro, até que, quando chegou ao oitavo ano, começou a sair com alguns garotos do ensino médio. Mesmo que pudesse andar com qualquer um em sua nova escola, inclusive as garotas populares, Normani escolheu Dinah, porque dava para ver que ela "entendia".

-- Entendia o quê?-- perguntei.
    Normani deu de ombros.

-- Como é ser diferente, mesmo que nem todo mundo perceba. Sabe, eu podia convidar Dinah para dormir em casa, e ela não acharia estranho o fato de que eu amo meu cavalo, moro com meus avós, que estão ficando surdos, e tenho um irmão briguento.

    Normani também me contou de um cara, Siope, com quem ela "está". É como ela fala. Eles se conheceram no trabalho, no Japonese Kitchen, quando ele foi lá com uns amigos comemorar um aniversário (É un bom lugar para comemorar aniversários, porque o chef cozinha na frente e faz malabarismos com a comida.) Ele está na faculdade, e é bem estranho que queira ficar com uma garota tão mais nova. Fico um pouco nervosa pela Normani por causa de Paul, um cara mais velho com quem sofia costumava sair. Quando perguntei por que ela ficava com alguém que estava na faculdade, Normani só riu e disse:

-- Sou precoce.

    Acho que Siope gosta dela de verdade, e não só para dar uns amassos, porque ele sempre manda flores -- Tulipas vermelhas, as favoritas de Normani, que gosta de mostrá-las para todo mundo da escola. A diretora Weiner está ficando cansada de todas as entregas para Normani na secretária, mas ela diz que são do tio, que manda as flores para a mãe doente. A diretora pergunta por que ele simplesmente não manda as flores para a casa deles, e Normani diz que é porque ninguém atende a campainha lá, então elas morreriam no sol. Weiner sabe que é mentira, nas não pode fazer nada, porque a avó de normani está realmente doente, e o avô está surdo demais para entender qualquer reclamação que ela faça e velho demais para se importar. Então, as coisas ficaram assim: Normani leva as flores de uma aula para outra, coloca na carteira e se esconde atrás delas para que os professores mal consigam vê-la. Aí se inclina para Dinah e faz caretas.


     Acho que Dinah meio que odeia que normani receba flores, porque ela está sempre dizendo que não acredita nesse tipo de coisa. Mas não sei se é totalmente verdade, porque ela está fazendo um quadro de tulipas para normani na aula de arte. Dinah me mostrou depois da aula um dia, mas me pediu para não contar. É surpresa. Ela pinta muito bem. A primeira pétala de tulipa tem tantas cores que nem dá para contar.


     Nesta semana, estou com meu pai, o que significa que em geral pego o ônibus para voltar para casa, porque ele trabalha até tarde e não pode me buscar. Mas hoje, em vez de ir direto para casa depois da aula, fui andando com Dinah e Normani até uma lanchonete. No caminho, elas queriam mostrar os peitos para as pessoas. Eu estava com medo no começo, mas me lembrei de superar aquilo que me assusta, como aprendi com sofia. E corria bastante depois. Era mais rápida que Dinah e Normani. Elas me alcançaram alguns quarteirões para a frente, ainda gritando e rindo. E eu também ria e gritava; a pior parte tinha acabado e eu ficava feliz de fazer parte daquele grupo.


    Normani comprou sorvete para nós (ela parecia orgulhosa de poder fazer isso) e então teve que ir para o trabalho. Mesmo que se atrasasse bastante para a aula, ela sempre era pontual no trabalho. Antes de ir embora, disse que elas vão passar a noite na casa de Dinah amanhã, que é sexta, e que eu deveria ir também. Fiquei feliz quando ela me convidou... Significa que estamos nos tornando amigas de verdade.
     Meu pai entrou em casa alguns minutos depois que cheguei da lanchonete. Ele trabalha na Rhodes, reforçando casas e coisas assim. Quando sofia e eu éramos crianças, assim que ele entrava íamos correndo abraçá-lo. Eu amava vê-lo coberto de suor e sujeira, como se tivesse chegando de uma aventura. Minha mãe preparava o jantar, s o cheiro de carne tomava conta da casa. Meu pai sempre dizia que ela cozinhava como uma profissional, em  vez de simplesmente juntar os ingredientes e provar depois. Tudo era perfeitamente calculado.
     Mas, na vida, a gente nunca tem certeza do que vai acontecer, mesmo que planeje tudo. Pode haver uma reviravolta, acontece sempre. Meu pai costumava chegar em casa com uma aparência forte depois de um dia na obra. Agora parece cansado, como se um trator tivesse passado por cima dele. Quando sofia e eu éramos pequenas, adorávamos nos pendurar nele. Mas agora é como se eu tivesse medo de me aproximar demais, tropeçar e derramar toda a tristeza que ele guarda.


     Ele costumava fazer brincadeira com a gente,  como trocar o sal pelo açúcar (era tão comum que nos acostumamos a colocar um pouco na mão e lamber para saber qual era qual). Minha mãe se irritava, mas sofia e eu achávamos engraçado. Ele escondia o despertador nos fins de semana, embaixo de uma almofada do sofá ou algo assim, e tínhamos que sair correndo pela casa quando o alarme disparava. Ou, às vezes, fazia buracos nas maçãs e colocava aquelas balas em formato de minhoca dentro delas. Era nossa brincadeira favorita, porque comíamos a bala. Ele não faz mais esse tipo de coisa, mas ainda beija minha testa quando chega do trabalho. E então pergunta sobre meu dia, como de costume, e eu me esforço  para contar coisas boas.


     Hoje à noite preparei macarrão com queijo no microondas e minisalsichas,  nosso prato favorito. Ainda temos congeladas a comida que sobrou do funeral de sofia quase seis meses atrás, mas acho que nenhum dos dois quer comer aquilo.

-- E, então, já fez algum amigo?-- ele perguntou enquanto jantávamos.

-- Sim. -- Sorri.

-- Que bom -- ele comentou.

-- Na verdade, eu ia perguntar se posso dormir na casa da Dinah amanhã.

    Meu pai hesitou por um momento, e eu cruzei os dedos embaixo da mesa. Finalmente, ele respondeu:

-- Claro, Camila. -- Fez uma pausa e acrescentou: -- Não quero você enfurnada  comigo.

     E então se concentrou no jogo de basebol -- ele é torcedor do Cubs, porque cresceu em Lowa, perto da sede do time --, e eu assisti o jogo com ele enquanto fazia o dever de casa. Meu pai costumava comprar o basebol à vida, mas não faz mais isso. Agora ele assiste aos jogos em silêncio. Acho que algumas coisas se tornaram tristes demais para serem explicadas como um terceiro strike com as bases lotadas.

Beijos, Camila.

/TL
   

Cartas de amor aos mortos (Camren) -  Ava DellairaOnde histórias criam vida. Descubra agora