Ninde chegara a seu destino. As lágrimas corriam-lhe livres pelo rosto, expulsas pelas memórias de um passado que jamais esqueceria. Ela não se importava mais em enxuga-las. Toda luminosidade das lembranças de Invérnia se esvaíam diante da imponente construção em pedra enegrecida que se erguia irregular e assustadora à sua frente na Garganta de Pedra, em um canto esquecido da Península Fogo do Inferno, em Terralém.
O pequeno prédio se sustentava exatamente à beirada do precipício, em uma inclinação horrenda. Dava a impressão de que despencaria a qualquer momento e cairia no vazio purpúreo que cercava Terralém. Uma quentura doentia emanava do solo árido e o ar era pesado e rarefeito, difícil de respirar.
Parada em frente à construção em formato de um demônio agonizante com uma gigantesca boca escancarada, por onde teria que entrar, a caçadora passou a mão em seus cabelos reunindo forças. A jornada tinha sido extenuante; atravessara portais e voara durante horas, mas enfim chegara.
Ninde se agachou ao lado de Felpas, seu fiel companheiro:
— Preciso que espere por mim aqui fora, meu querido. Não vou demorar. Não posso — a caçadora fez uma pequena pausa e olhou incerta para seu destino — estarei segura.
A raposa branca encostou o focinho no nariz de sua mestra, que não conseguiu impedir mais uma lágrima de rolar. Felpas raspou as patas no chão enquanto via Ninde se afastar em direção à construção, onde um demônio a aguardava na entrada.
— Minha mestra aguarda — entoou o demônio em uma voz gutural e assustadora. Era um terrorífico, com seis chifres na cabeça e um rosto macabro adicional no dorso. A imensa criatura abriu as asas verdes de membranas translúcidas em um breve agitar, intimidando a visitante. Um cheiro repugnante tomou o ar.
Ninde, altiva, entrou no prédio. Não era surpresa que o cheiro fosse ainda mais repulsivo no interior da construção, tomada de demônios como estava. Pequenos diabretes vis se amontoavam pelos cantos do lugar. A caçadora se viu em um amplo salão rodeado de portas. As paredes enegrecidas sugeriam que o lugar pegara fogo incontáveis vezes. Imundície se acumulava em todas as direções. Um grande trono negro de pedra acomodava o motivo de sua jornada. Ladeada por tochas de fogo vil brilhando em verde, uma mulher sorria sentada de maneira displicente na grande cadeira.
— Minha querida! Aguardava sua chegada. Bebe alguma coisa? — A voz da mulher transbordava uma afetação maliciosa. Um pequeno diabrete vil se aproximou com uma bandeja, de onde a mulher retirou uma taça prateada fumegante. Dispensou o diabrete com um forte chute.
A caçadora se aproximou. Somente o rosto visível em cima de seu manto azulado. Reunia toda a coragem que tinha. Não podia vacilar. Não podia se arrepender. Em seu interior queria correr para fora daquele prédio maligno e de toda energia vil que pulsava ali.
— Não. Agradeço, mas não posso me demorar.
Um caçador vil dormia aos pés do trono negro e despertou repentinamente, agitando os longos tentáculos de sua cabeça. Farejou em direção à elfa, em um leve rosnado maligno. Caçadores vis nada mais eram do que espreitadores vis treinados para caçar energia arcana. A besta demoníaca não sentiu presença arcana na visitante e voltou a dormir, se deitando desajeitadamente devido aos imensos chifres.
Levantando-se do trono, a mulher agitou os braços em direção à caçadora:
— Aqui estamos. Conte-me suas angústias — debochou.
Não só a voz, mas tudo naquela mulher sugeriam malícia e deboche. Tratava-se de uma mulher humana, embora os chifres e o olhar maligno sugerissem outra coisa. O corpo pálido e esguio era pouco coberto pelos trajes negros, não mais que roupas íntimas. Um coque de cabelos negros se equilibrava entre os chifres grandes e demoníacos. O rosto era uma máscara de escárnio. A feiticeira fez sinal para que a caçadora se aproximasse e tornou a sentar, um pouco mais ereta desta vez.
— Não vim contar angústias. Vim buscar o que prometeu — Ninde disse com decisão. A mulher deu uma leve risada.
— Confesso estar surpresa. Não imaginei que estaria tão segura e decidida sem seu mago de brinquedo. Soa quase desafiadora.
— Ele é meu marido — Ninde rebateu indignada.
— Maridos, brinquedos — a mulher disse com desdém — homens são brinquedos, na melhor das hipóteses. Para o que mais serviriam?
— Não vim até aqui para jogos, feiticeira. Não tenho tempo a perder. Você deve a Huor. E eu vim cobrar a dívida.
A mulher se empertigou em seu assento. Uma sombra de ódio passou por seus olhos e então ela sorriu em escárnio.
— Se não a conhecesse acharia que está me ameaçando, Ninde.
A caçadora não respondeu à provocação. As duas se encararam por longos segundos. A feiticeira tomou um gole do líquido efervescente de sua taça.
— O que me pede é caro. Espero que entenda — fez uma breve pausa — Mais do que seu marido fez por mim no passado.
Dessa vez foi Ninde quem sorriu com deboche:
— Sua honra vale tão pouco assim?
A feiticeira atirou longe a taça de prata, que atingiu com força a parede enegrecida. O som ecoou por toda a construção. O caçador vil acordou assustado e os diabretes se agitaram amedontrados por todos os lados. Um leve cintilar de energia vil esverdeada envolveu o corpo da humana, que gritou em descontrole:
— Não venha até meus domínios me afrontar, elfa. Eu ainda tenho o que precisa e posso negar.
Ninde apenas arqueou uma sobrancelha e permaneceu impassível. Algum tempo se passou até que a tensão entre as duas diminuísse. Os demônios ainda resmungavam por toda parte. Foi a bruxa quem rompeu o silêncio.
— Eu tenho sim uma dívida com seu marido. E é apenas por causa dessa dívida que relevo seu insulto. Mas aviso novamente: o que me pede é caro. E é você quem estará em dívida comigo dessa vez.
Por alguns segundos Ninde pensou em recuar, embora seu rosto nada revelasse. Não gostava de Terralém, não gostava daquele lugar e gostava menos ainda daquela mulher. Estivera com ela algumas vezes em companhia de Huor. A ideia de lhe dever algo era repugnante, mas não havia outra escolha. A vida de Huor dependia disso. Sendo assim, era fácil decidir.
— Isso não é problema. A vida de meu marido vale mais do que qualquer preço a pagar — Ninde disse com convicção.
A feiticeira sorriu maliciosamente.
— Acredito que sim. Ah sim — a mulher fez uma pausa — existe um porém. — a mulher fez uma segunda pausa, se deliciando com a expressão de confusão no rosto da elfa — vocês elfos noturnos são peculiares. Creio que algumas modificações precisarão ocorrer para que funcione. Se ainda estiver interessada.
Nesse momento um pequeno diabrete vil — Ninde não saberia dizer se era o mesmo que trouxera a bebida — se aproximou com uma caixa de madeira entalhada. A caçadora pegou a caixa em suas mãos, percorrendo os entalhes com os dedos enluvados. Olhou com incerteza para a bruxa, que assentiu em um último sorriso malicioso. A elfa abriu a caixa e dentro estava uma esfera purpúrea, não maior que um punho cerrado. A pedra emitia um brilho sinistro e nela repousava a última esperança de Huor.
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Pedra da Alma
FanfictieO que parecia ser uma reunião de velhos amigos sobreviventes de batalhas se transforma em uma missão suicida quando o arquimago Huor envolve os amigos nos assuntos do Kirin Tor, facção dos magos mais poderosos de Azeroth. Um antigo inimigo do mago o...