Acorda às quatro e vinte da manhã, com a sensação de que esquecia algo muito importante. Contudo, sonolento como estava, seria impossível lembrar algo além de bocejar. A mulher não sentiu o frio que se instalou à esquerda, quando o marido saiu da cama. Pareceria morta, não fosse o ronco alérgico.
Valter olha pela janela. O céu de um escuro brilhante anunciava o dia ensolarado, quente e desanimador que se abriria dali a algumas horas. Sempre preferiu o frio. As pessoas suam menos. As ruas ficam mais vazias. O corpo não pede tanto banho. Novamente, a sensação de ter esquecido alguma coisa surgiu como um lampejo em sua mente. Dá de ombros e volta a caminhar. Coloca água pra ferver e vai pro banho de cinco minutos. O bastante pra tirar o cheiro de sexo.
Do banheiro, ouve as luzes da casa serem acesas, as portas serem abertas, os objetos serem retirados do lugar e imagina os chinelos preguiçosos da esposa se arrastarem de um cômodo a outro. Desliga o chuveiro. Passa a toalha de qualquer jeito, para não deixar o corpo completamente seco. Veste a roupa preparada pela mulher na noite anterior. Limpa e bem passada e perfumada. Todos saberão que é homem de mulher caprichosa. Não tinha do que reclamar, exceto...
À beira do fogão, Tânia segurava o coador com a mão direita, enquanto a outra mexia automaticamente com uma colher a água turva. Não compreendia a teimosia do marido. Pra que usar aquele utensílio, esquecido até nas casas mais pobres, se comprou a cafeteira mais moderna do mercado? Ele chega na cozinha com um beijinho na bochecha dela.
Por que chegou tarde ontem? Valter pensou um pouco, se servindo de café amargo. Plantão. Plantão, por quê? O chefe quis. Por um acaso lavou roupa? O quê? Ouvi barulho da máquina de lavar, ontem. Huh, não. Mas sua blusa está pendurada no varal da área. Ah, é? É. Tão cansado que nem lembro... huh... Já vou. Não vai comer? Não. O pão, esquentei agora. Só café. Pelo menos uma fruta. Só café. Não é bom sair de barriga vazia, dá fraqueza no corpo e na mente. Não gosto de comer nessa hora. Chega tarde de novo? Acho que não. Então, bom trabalho. Pra você também.
Beijos.
O ar fora de casa estava mais fresco. Mas Valter tinha certeza que aquele frescor logo cederia lugar ao suor que escorreria pelas costas o dia inteiro, já que na repartição o ar-condicionado estava quebrado há tempo e os ventiladores não davam conta. Precisava fazer igual ao Tobias e passar a levar algumas camisas pro trabalho. Um incômodo a mais que evitaria outro ainda maior. Além disso, detestava usar as toalhinhas que Tânia comprava para limpar o suor. Deixava em casa de propósito, mas ela cismava de levar e entregar a ele, antes de ir pro próprio trabalho, algumas quadras depois do prédio dele. Funcionária federal. Tânia pegava no serviço onze horas da manhã, mas saía às seis, às vezes sete. Ainda assim, tinha muito mais regalias que ele, além de um salário maior. Fazer o quê?
Enquanto caminha até o ponto de ônibus, se concentra na intenção de resgatar o que quer que tenha esquecido. Seria uma tarefa do trabalho? Uma promessa feita à Tânia? Uma visita à mãe ou ao médico? No entanto, o fluxo de pensamentos é interrompido quando vê, no bar da esquina, alguns jovens descurtirem a balada iniciada na noite passada. Gritavam. Brigavam. Discutiam. Todos bêbados. Algumas garotas mal conseguiam se equilibrar nos sapatos altos. Corriam atrás de seus machos ou tentavam afastá-los de um bate-boca idiota. Estúpidos, todos eles. Assim é que acontecem os piores crimes e, depois, não adianta se arrepender.
Por isso nunca quis ter filhos. Sabia que cedo ou tarde criariam asas, veriam o mundo a seu modo, experimentariam todos os nãos impostos e não explicados. Não obrigado, já tenho problemas demais. Além disso, gostava de dormir até tarde no final de semana e de não ter o sono semanal, obrigatoriamente curto, perturbado. A mulher, por outro lado, queria quatro. Três meninos e uma menina. Valter ainda podia enxergar nos olhos dela aquela frustração sempre que uma criança cruzava seu caminho. Certa vez, engravidou. A única. Porém, após muitas brigas, aceitou abortar. Depois disso, o sexo se tornou de má vontade e rotineiro. E a tristeza nos olhos dela é de dar pena. Mas, melhor assim.
Como tem gente na rua. Anos atrás, apenas alguns gatos minguados. Um corpo aqui, outro ali. E mulheres quase não se viam. Agora são a maioria.
A fila do primeiro ônibus já estava impossível. Valter se encaminha pra terceira. Se o ônibus não atrasar, vai dar pra tomar uma média com pão na chapa antes do trabalho. Caso não, terá que esperar até o almoço. Se bem que, como funcionário público, seu horário não precisa ser cumprido à risca como nas empresas privadas. Uns dez, vinte minutos de atraso não irão impedir o andamento da máquina pública. Piada! Que diferença faz se rubricar um documento às oito ou às oito e vinte? Outras tantas assinaturas passarão pelo papel até ser liberado. Meia hora é muita coisa. Tem um cara que chega duas horas atrasado. Isso ele não faz, não. Já é abuso e ridículo demais. Chego oito e vinte. Tá, oito e meia. Digo que foi o trânsito.
O terceiro ônibus chegou quinze para às seis. Com muita sorte, não enfrentaria engarrafamento, mas era improvável. Até às cinco, dá pra caminhar direto. Depois, as estradas ficam contaminadas de veículos. Poderia também ir de carro. Mas Valter não dispensaria a oportunidade de continuar o sono durante a viagem. Além de gostoso, evitava a irritação causada pelo anda-para do ônibus.
Senta-se no seu lugar predileto. Canto. Quarta fileira. Lado do motorista. Todos sabem que na hora da batida, o condutor sempre alivia o seu. Além disso, é menos provável o ônibus ser atingido no meio. Com pouco de sorte, nenhum conhecido sentará ao lado dele. E, se o fizer, Valter não se importa de fechar os olhos e dormir, ainda que o outro continue a contar todos os detalhes desinteressantes e dispensáveis de sua vida chata. Não, obrigado. Se gostasse de histórias, leria livros e veria novelas. Nunca foi fã nem de um nem de outro.
Pra sua sorte, uma mulher perfumada e silenciosa foi sua companheira de viagem. Valter detestaria passar quase três horas perto de alguém, homem ou mulher, fedorento, resfriado ou com aqueles celulares insuportáveis. Certa vez, sentou perto de um sujeito que resolveu ligar pra ex, porque precisava saber o motivo dela não querer mais nada com ele. Provavelmente, porque o otário ligava pra ela às seis da manhã.
Pelo menos hoje não sofreria aquele infortúnio e, quem sabe, aquele fosse o sinal de que o dia seria perfeito ou mesmo suportável.
O tráfego estava mais carregado que de costume, mas não se deu conta, já que dormiu pesado. Quando acorda sobressaltado no ponto em que deveria descer, recebe um olhar irritado da mulher perfumada, por causa dos seus roncos. Não pede desculpas, afinal, todos sabem que os homens roncam, inclusive aquele seu namorado que a leva ao ponto todos os dias, minha filha. Bom dia, ele diz, educadamente, enquanto passa. Ela, porém, fingiu não escutar. Paciência.
Nove horas. Deveria estar passando o cartão naquele exato momento, mas, ainda assim, não vai direto para o trabalho. Sente uma fome colossal e, daquele jeito, não conseguirá trabalhar bem. Se o chefe reclamar, Valter sai pra almoçar mais tarde. Mas quem o chefinho quer enganar? Nunca tá lá antes das dez horas, o pilantra!
Quando chega à única lanchonete nos arredores do prédio público, se depara com as portas de ferro arriadas e um cartaz rabiscado com letras trêmulas. Outros homens estavam lá, e Valter foi mais um a pôr os óculos de armação escura. Com certa dificuldade, lê o recado dirigido a todos os clientes e se espanta.
João morreu?! João morreu. Como? Facada. Facada? Muitas. Puxa, ontem mesmo falei com ele, antes de fechar o bar... fui seu último cliente. Pois é, aqui fica muito deserto depois que escurece. Quando vai ser o enterro? Hoje. Onde? Memorial do Carmo, às dez horas. Passei por lá, se soubesse... Será que vai dar tempo? Não, acho que não. Puxa, se não fosse o engarrafamento, teria chegado mais cedo e pediria dispensa do trabalho hoje. Pena mesmo. O João. Sempre gostei dele. Animado. Educado. Comida boa. Devia ser bom patrão. Ninguém nunca reclamou dele. Não pra mim, pelo menos. Pobre João. Ontem mesmo me aconselhou a... deixa pra lá... já estou atrasado.
Fome. Nervosismo. O estômago doía e era preciso acabar com sua aflição. Teve que andar muitos metros até encontrar um bar. Ia pedir uma média, mas era impossível esquecer o efeito que aquele bilhete lhe tinha causado. Por isso, mesmo depois de anos de liberdade, pediu a décima terceira dose de branquinha em menos de vinte e quatro horas. Para seu alívio, o dono daquele bar não era do tipo conselheiro como o falecido João.
O copo próximo à boca, pensa naquele dono do bar. Tânia tem razão. Sair de estômago vazio não é bom. Dá fraqueza. Mas, agora, Valter lembra com clareza de detalhes o algo importante que, ao acordar, era apenas uma sensação de esquecimento. Toma o primeiro gole.
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OFICINA 666 - DOS OLHOS E DA FOICE
Mystery / ThrillerOnze contos banhados de humor sanguinário que mostram o lado sombrio de nossas mentes.