Capítulo 7 - AUTORRETRATO EMBAÇADO

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Durante toda a sua vida, Izabel nunca havia sonhado com aquele momento. Porém, ele chegou após trinta e seis semanas de espera. Ainda atordoada por causa da anestesia, não tinha reparado muito bem as feições do bebê. Uma menina linda, cujo nome de batismo seria Sandra. Igual o de sua falecida mãe.

Três dias depois, Izabel retornava à casa alugada no subúrbio da cidade, que agora era de Sandra também. O aluguel é pago com a ajuda de custo que o governo dá. O salário de repositora em um supermercado não é suficiente para pagar o aluguel, as contas de luz, água, celular e as demais necessidades da casa e dela mesma. Por isso, ficou feliz quando a Joana conseguiu com as mulheres do trabalho três sacolões, cheios de roupas de criança de segunda mão, além dos objetos do chá de bebê surpresa.

A casa de três cômodos – quarto, banheiro e sala/cozinha – é bem arrumada, mas humilde, assim como sempre foi sua vida. E apertada também. Os pequenos cômodos mal comportam os poucos móveis. Na sala, um sofá de três lugares, doado por uma ex-patroa, o qual afunda quando se senta nele. Assim que puder, vai comprar um novo, pois merece assistir televisão com dignidade. Sob o rack, uma televisão colorida de vinte polegadas conseguida em um sorteio da farmácia, um aparelho de som pago em vinte e quatro prestações – a última vencerá no próximo mês – um aparelho de DVD, além de alguns CDs que Izabel costuma escutar no dia de folga, enquanto faz faxina na casa. Os filmes, ela assiste quando as incertezas da vida causam angústia profunda e somente a irrealidade encenada é capaz de aliviar a tristeza.

O sofá, a apenas um metro e meio do rack, serve como divisa entre sala e cozinha, onde ficam o fogão bege de quatro bocas, bem conservado, o armário de parede com quatro portas e uma geladeira modelo simples. Ambos beges e novos. No quarto, a cama de solteiro e o guarda-roupa de três portas, comprados à vista em uma promoção com o dinheiro do décimo terceiro, vão dividir espaço com o berço usado, doado por um colega do trabalho.

Depois de um mês, quando as visitas perderam o interesse e a amiga Joana havia ensinado tudo o que a novata mãe precisava saber para cuidar da filha, Izabel percebe que é a primeira vez que ficará sozinha com a criança. Como nevoeiro, o medo cega o que está adiante, e a realidade começa a assombrar a mulher.

Enquanto Sandra dorme tranquilamente em seu berço velho, Izabel começa a pensar no futuro infeliz que virá ao encontro do bebê, inevitavelmente. Afinal de contas, se ela mesma foi vítima de sofrimentos e má sorte desde seu primeiro dia nesta maldita terra, como poderia ser diferente com a menina? Ela vai crescer em um ambiente hostil, que menospreza de maneira perversa e firme mulheres negras, pobres e solitárias.

Vai ser chamada de macaca, de neguinha e de todos os tipos de malditos apelidos e palavrões que vão destruir sua autoestima. Vai aprender a desprezar os iguais a ela e a odiar a própria imagem refletida no espelho. Dizem que estão mais valorizados, que estão na moda, os de sua cor. Mas se a moda passar antes de alcançar a menina?

Depois de anos de solidão, vai encontrar um falso amor que, após destruir o fio de autoestima que resistia fragilmente, vai abandonar ela numa noite em que a lua desaparece entre as nuvens, ao ouvir de sua boca apaixonada a notícia da gravidez. E ela vai murchar aos poucos. E ela vai ficar sem rumo, enquanto pergunta o porquê, mas nunca vai escutar resposta alguma.

Sentada na cama, Izabel se entrega às lágrimas e à desesperança. Ela observa Sandra, frágil e inocente dentro do berço. Graças ao leite materno, a menina ainda esbanja uma fisionomia saudável e robusta. Mas, quando o leite secar em seus peitos murchos, com o que vai alimentar a boca da menina? O dinheiro que ganha no mercado não é suficiente nem mesmo para ela sozinha. Quanto mais para duas! Voltar a trabalhar como empregada doméstica, não vai. Não vai se submeter aos mandos e desmandos de gente que a trata como um ninguém; nem vai ouvir da boca de patroa que ela é preguiçosa, ladra e suja!

Não! Ela não vai permitir que aquele bebê seja manchado pelo esgoto que envolve o mundo. Prefere ver a menina morta, neste exato momento, que devagar por falta de comida. Prefere que a menina morra, sabendo que foi feliz durante alguns dias, que infeliz e desgraçada pelo resto de sua vida. Não ia suportar ver nos olhos da menina a decepção por não poder ganhar o brinquedo com o qual sonhava todas as noites e via as outras brincando em seu lugar. Daí, viriam a revolta e a rebeldia, as drogas e a delinquência, os furtos e os assaltos, o homicídio e, enfim, a prisão da alma, que é pior que a do corpo.

Izabel levantou da cama. Secou as lágrimas e a secreção do nariz na blusa enxovalhada e manchada de golfada velha. Retirou a menina de seu berço e, quando esta abriu os vívidos olhos castanhos e balbuciou prenúncios de um choro de reclamação, a acalentou, com suavidade. Colocou para fora da camisa o seio ainda farto de leite e o ofereceu a ela.

Permaneceu, assim, durante alguns minutos. A menina presa em seus braços, apertada firmemente em seu peito, morrendo pouco a pouco, ao som da velha cantiga de ninar, com a qual a avó de Izabel costumava amedrontá-la, muitos anos antes.

OFICINA 666 - DOS OLHOS E DA FOICEOnde histórias criam vida. Descubra agora