Capítulo 8 - UM CONTO FAMILIAR

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Talvez fosse medo de morrer. Talvez apenas estivesse seguindo à risca o ditado que dizia "melhor prevenir que remediar". Mas a verdade era que o nonagenário Joaquim Cerqueira passava o dia inteiro diante da televisão, assistindo a todos os programas que mostravam a vida como de fato era. Não a vida, mas as pessoas é que eram desnudadas diante das câmeras e suas maldades mais vis e absurdas ficavam expostas como pedaços de carne num açougue sujo.

O velho parecia entrar em catarse quando as entranhas fétidas dos outros pulavam para fora após terem seus segredos estripados pelos investigadores. Donas de casa envenenando maridos, noras, filhos, genros. Maridos aniquilando filhos, esposas, noras, genros, amantes. Filhos silenciando amantes, esposas, filhos, amigos, pais. Todos matando uns aos outros por motivos vários e fúteis. Ciúme, inveja, preconceito, ódio, dinheiro.

Dinheiro... Repetia o velho sempre que via alguém ser morto por causa do vil metal. Seus olhos estatelados em frente à TV brilhavam ao mesmo tempo em que ele se imaginava no lugar daquelas vítimas. Ser apunhalado nas costas por quem o rodeava diariamente era um pensamento que atormentava o velho.

A família não entendia sua mania de só assistir àquele tipo degradante de programação. Tantas outras coisas boas disponíveis na TV por assinatura mais completa para, no fim, o velho se entreter apenas com meia dúzia de programas macabros. Foi o genro quem perguntou se seu Quinha assistia àquilo por medo de ter sua pequena fortuna roubada por ele ou pela filha ou pelos netos.

"Ora, não zombe de mim, moleque!", o velho resmungou. "Essas coisas deixam a gente esperto e preparado pras falcatruas e más intenções das pessoas. Você brinca, é? Mas a maioria desses desinfelizes aí foi morta pelos parentes mais próximos. Por gente que sentava com eles à mesa na hora das refeições, que dormia no quarto ao lado ou na mesma cama, que sorria de alguma piada contada por eles. Hum! E as crianças não são mais inocentes não! Teve um garoto, uns dez, onze anos de idade. Matou a avó porque ela não quis comprar pra ele umas bolinhas de gude. Imagina... A vida do ser humano vale menos que uma droga de bola de gude."

Entreolhavam-se, o genro e a filha, acreditando que o nonagenário começava a ficar gagá. Os netos, dois meninos adolescentes e um de nove anos, mal chegavam perto do avô. Primeiro, porque seu Joaquim não costumava ser assíduo na higiene pessoal e seu mau odor dava enjoo até mesmo no mais experiente legista. Segundo, porque, sempre que se aproximavam, o velho adquiria uma postura de cadela pós-parto. Olhos ameaçadores. Lábios tencionados. Corpo encurvado sobre filhotes imaginários. Sempre pronto para atacar.

"Que você quer aqui, hein?"

"Nada vô. Só quero ver televisão."

"Hum! Ver televisão, é? Você nem gosta de assistir esse tipo de coisa. Você e todos os outros vivem me criticando por causa do meu gosto e agora vem me dizer que quer ver a mesma coisa que eu?"

"Gosto sim. Principalmente quando mostram os corpos. Todo aquele sangue escorrendo, os olhos meio abertos, a boca murcha. Parece boneco..."

"Sai daqui! Sai daqui, seu moleque malévolo! Desinfeliz!"

O neto mais novo correu depois de ser atingido algumas vezes pela bengala do avô, abismado com a força que o velho tirava sabia-se lá de onde no momento da necessidade.

Era do medo. Do pavor de acabar como uma daquelas vítimas. Por isso expulsou o neto da sala, temendo que aqueles crimes dessem ao moleque todas as boas ideias de como acabar com o próprio avô.

Seu Joaquim não confiava em pessoa alguma. Nem mesmo a filha escapava de sua cisma. De todos os seres de sua convivência, o único no qual seu Quinha depositava sua confiança era o velho vira-lata, Verme. Por quê? Simplesmente porque aquela praga comia e bebia tudo o que via pela frente e ainda pedia mais. Isso era ótimo já que o velho fazia dele sua cobaia, dando primeiro ao cachorro tudo o que lhe davam para comer e beber.

OFICINA 666 - DOS OLHOS E DA FOICEOnde histórias criam vida. Descubra agora