Lá vai ela, pela Rua Angélica, com seus passos lentos, pesados, arrastados, sob seu corpo robusto, encurvado, enrugado, sacola de compra pendurada de um lado e fiel empregada do outro. Senhora Graça Leite. Dois filhos. Uma filha. Cinco netos, sendo dois, um casal de gêmeos, além dos três bisnetos. Todos os dias, ela acorda cedo, cuida da higiene do corpo e caminha até a padaria na rua principal. Adora o bairro onde mora há sessenta e três anos. Casas e prédios de classe média alta, com jardins bem cuidados, animais felizes e alimentados, pessoas com mente e corpo sãos.
Gostava sempre de comprar o pão da Casa de Pães Arcamenes, tão antiga no bairro quanto ela mesma. Haviam aberto a filial de uma dessas franquias modernas, onde os funcionários vestiam uniformes impecáveis e os doces e bolos e tortas e pães pareciam saídos direto da cenografia de um filme de contos de fadas. Mas Graça detestava aquela casa de bruxa disfarçada de casa da vovó. Apostava com ela mesma que, por trás de toda a limpeza lúdica, ratos do tamanho de porcos passeavam na cozinha da franquia, do mesmo jeito que perambulavam pela encardida e engordurada cozinha da Casa de Pães Arcamenes. Ainda assim, o pão dessa casa era o melhor do bairro.
Saía cedo, por que queria ser a primeira freguesa a escolher pão, queijo e presunto sem a interferência de outros moradores chatos e apressados que desconheciam ou desprezavam a arte de bem adquirir um produto. Não se pode ter pressa. É preciso observar bem. Procurar defeitos e qualidades. O olhar que passa rápido pelo produto que pretende levar está sujeito a não notar que, na parte de baixo do pão, pode haver uma casca queimada. Ou, no meio do presunto, um bolor ou ova de mosca. E, ainda, na lateral do queijo, o início de um mofo.
Já havia feito suas compras do café da manhã. Além dos itens já citados, também levava leite, pó de café e algumas frutas, compradas na barraca em frente à padaria. Chamaram seu nome. Cinco pessoas a cercaram, entre elas uma bela jovem uniformizada. Disseram umas palavras e pediram que entrasse no carro, com compras e tudo. A empregada ficou para trás, boquiaberta e atordoada.
Quem via dona Graça Leite caminhar na rua, com aqueles cabelos esbranquiçados e encrespados pelo tempo, óculos de lentes grossas e sorriso que dava vontade de levá-la para casa, não imaginava sua mente perversa e astuta. Sim. Graça Leite ou Gracinha, como os íntimos e admiradores amavam chamá-la, não era a boa velhinha de histórias infantis.
Graça Leite. A filha do desembargador Artur Bragança Leite Filho e de Dora Coelho Bragança Leite. Aproveitou tudo o que a boa vida lhe proporcionou desde o nascimento até aquele dia. As ótimas pensões do pai e do marido, ambos do exército, durante muitos anos, permitiram a ela viver sem preocupações menores e corriqueiras, e trabalhar era apenas um duplo disfarce. Era moda na época de sua juventude ser professora, principalmente das primeiras séries do antigo primário. A mulher que ingressava nesta carreira sinalizava ter um espírito paciente, virtuoso, amoroso, dedicado e protetor. Tudo o que uma boa esposa e dona de casa deveria ser.
Mas Gracinha nunca foi virtuosa, apenas sabia desempenhar seu papel sem levantar suspeitas. Na verdade, foi na escola que ela começou a desenvolver o hábito da observação e, como professora, podia tocar, beijar, abraçar as crianças sem despertar a desconfiança dos outros. Depois, passaria o restante dos anos aprimorando aquela destreza, porque não queria ser somente mais um ser infeliz a se arrastar de casa para o trabalho, de casa para o clube, de casa para o salão de beleza, teatro, cinema, parques e encontros de final de semana com a família perfeita.
Sempre teve dificuldade para enxergar, mas o pouco da capacidade se potencializava diante da necessidade. Gostava das fitas de cetim que as alunas usavam nos rabos de cavalo e tranças, tão cuidadosamente penteados. Achava inspiradoras as meias brancas, que revelavam somente o necessário: os joelhos e parte da coxa. Mas nada superava a saia trapeada de cós justo. Um deleite que seus olhos admiravam com discreta profundidade.
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OFICINA 666 - DOS OLHOS E DA FOICE
Mystery / ThrillerOnze contos banhados de humor sanguinário que mostram o lado sombrio de nossas mentes.