Capítulo 9 - SHE SAID AU REVOIR, MAS NINGUÉM ESCUTOU

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Uma forte dor na cabeça e os olhos se abriram abruptamente, parecendo escutar o seco estampido da morte. Olharam ao redor do quarto escuro até se fixarem num ponto à frente, exatamente onde a tinta da parede descascava há um tempo.

Maurício não sabia onde estava, nem que horas eram, nem a data, o dia, se tinha ou não algum compromisso importante. Fazia tempo que isso não acontecia e detestou sentir aquela sensação outra vez, pois temia ser indício da mesma demência que atacou o pai. Alguns diziam que o esquecimento matutino era consequência de um sonho ruim que a mente precisava rejeitar, mas não acreditava naquilo. Franziu a testa quando a dor voltou, depois a mão esquerda apalpou o colchão atrás dele.

Encontrando o vazio, manobrou a cabeça para trás, depois o corpo todo e estranhou o fato de o travesseiro estar completamente liso, intocado, como se não tivesse sido esmagado durante toda a noite. Espichou os ouvidos na tentativa de ouvir os ecos dos demais cômodos, mas apenas silêncio. Voltou a deitar, agora de barriga para cima e, enquanto olhava o teto, tentou lembrar se Calina havia dito se sairia cedo, mas um novo bocejo varreu da mente aquela intenção e ele adormeceu. Mais tarde, ao despertar novamente, levantou de uma vez. Alongou o corpo, abriu cortina e janela. Sol e brisa morna bateram direto em seu rosto, indicando que o forno havia sido ligado já cedo.

Caminhou direto até a cozinha e encontrou o fogão vazio e a mesa sem pão quente, café fresco, manteiga velha, leite morno. Apenas a pia permanecia cheia com a louça da noite anterior que Calina disse para ele lavar antes de dormir, mas ele não. Suspirou, pensou, bocejou, não nessa ordem exata, até enxergar o bilhete pendurado na geladeira... Não. Era a lista de coisas que ele deveria ter comprado para Calina dois dias antes, e ele esqueceu.

Foi atrás dos garotos. Os dois dormiam como mortos e nem sentiram sua mão mexer em seus cabelos nem endireitar os lençóis. Quando Vitor Augusto, o mais novo, voltou a se descobrir de imediato, Maurício sorriu.

Ele mesmo foi à padaria e aproveitou para comprar os produtos listados. Era muita coisa e seria melhor ir ao supermercado, mas havia deixado os garotos sozinhos, em casa, e não queria demorar. Calina sempre dizia que isso era perigoso, porém ele teimava, argumentando que o mal, quando tinha que acontecer, não escolhia lugar. Ainda assim, gastou mais dinheiro comprando tudo na mercearia da rua e retornou para casa, acelerado.

Tudo bem com os garotos. Foi preparar o café da manhã e, logo que o aroma da primeira refeição flutuou pelo corredor da casa, o mais velho, Gabriel Heleno, apareceu na porta da cozinha. Cara e roupa amassadas, se sentou à mesa, coçando os olhos. A mãe esquenta o pão na frigideira pra gente. Mas está quente. Ela faz mesmo assim pra manteiga derreter.

O mais novo também se levantou. Cópia exata do mais velho, exceto pelos óculos. A mãe mistura o chocolate no leite e esquenta tudo junto. Mas dá no mesmo misturar no copo. Não fica gostoso igual. Desse jeito é mais rápido. Mas a mãe faz mesmo assim.

Os garotos tiveram o que queriam e os três tomaram o café da manhã. Perguntado se a esposa demoraria a se juntar a eles, Maurício disse que Calina havia ido ao cabeleireiro, mas voltava logo. Não sabia por que mentira, mas seria estranho mostrar aos filhos não conhecer o paradeiro da própria esposa. Poderia ligar para uma amiga de Calina, para sua sogra... Não. Isso iria apenas preocupar as pessoas à toa. Provavelmente, havia dito que sairia e ele não conseguia lembrar. Mas a culpa não era dele. A mania dela de despertar ele para dar seus recados era irracional. Custava escrever um bilhete? O fato de Maurício abrir os olhos não significava que estava acordado e escutando!

A manhã avançou, enquanto os três viam televisão. Houve briga no início. Os garotos queriam desenho e Maurício, noticiário ou filme, mas ele acabou cedendo aos filhos. Foi o mais novo o primeiro a sentir fome, por volta de meio dia. Maurício não era bom cozinheiro, mesmo já havendo morado sozinho antes de casar. Abriu a geladeira para ver o que ela guardava, porém não tinha nada pronto, nem sobra alguma. Mandou os garotos se arrumarem, pois naquele dia comeriam fora. Ia com eles num fast-food, mas lembrou que Calina sempre reclamava de ele só levar os garotos naquele tipo de lanchonete, e resolveu ir a um restaurante, onde serviam comida de verdade. Durante o almoço, olhou o celular algumas vezes e tentou ligar para a esposa. Mas, como pela manhã, o celular de Calina continuava fora da área de cobertura ou desligado.

Ao terminarem, os garotos queriam passear um pouco, já que o dia estava lindo e a semana havia sido de prova. Contudo, Maurício queria voltar logo para casa, lembrando de repente um monte de serviço doméstico que Calina vivia pedindo a ele para fazer, mas ele nunca.

Enquanto os filhos viam TV, ele limpou o quintal e a piscina; derrubou a casa do falecido Smooth, morto havia três meses; consertou o antigo vazamento do cano da cozinha; comprou e trocou a resistência do chuveiro, queimada um mês atrás; pintou o muro e raspou a tinta descascada na parede do quarto, pintando ela também. Endireitou a luminária do quarto de hóspedes e buscou os novos óculos de Vitor, prontos havia duas semanas.

Já tinha escurecido, quando Maurício acabou as tarefas. Entre um serviço e outro, inventava desculpas aos filhos pela ausência da mãe. A vontade de ligar para a sogra crescia, mas ele resistia. A cabeça pulsava de dor, então ele resolveu se refugiar no quarto do casal, embora os meninos estivessem estranhamente quietos e silenciosos.

Sentado na cama, se forçou mais uma vez para lembrar algum recado, no entanto só lhe ocorreu a reminiscência de um som embolado, ecoado distante, e uma sombra, parada à porta, a qual desapareceu atrás de um facho de luz forte e veloz.

A testa doeu, fazendo a mão de Maurício correr para ela de imediato e, de repente, era insuportável permanecer naquele cômodo. Saía de lá, quando passou em sua mente a ideia de olhar o guarda-roupa da mulher. As mãos trêmulas já alcançavam as portas do móvel, enquanto ele escutava e sentia o coração pular dentro do peito, mas desistiu de abri-las no último instante. Meneou a cabeça e foi preparar um lanche, dizendo a si mesmo que notícia ruim era a primeira a bater à porta.

OFICINA 666 - DOS OLHOS E DA FOICEOnde histórias criam vida. Descubra agora