Capítulo 10 - O RISO DA HIENA

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Seu Geraldo possuía três filhas. Todas, meninas belíssimas. Rostos delicados. Corpos aviolados. Na vizinhança, dava para contar os homens ou meninos que não ardiam em febre sempre que uma delas lhe dirigia a palavra, ainda que rápida, ou, simplesmente, passasse perto deles. Muitos rodeavam a casa de seu Geraldo na esperança de conseguir permissão para entrar e, quem sabe, namorar uma delas, qualquer uma. Mas o homem mantinha as filhas debaixo de sua espada. Não permitia que sujeito algum, rico ou pobre, tivesse o privilégio de se aproximar delas, quanto mais, namorar; muito menos, casar.

Nem mesmo no quintal primoroso e bem cuidado pelas três filhas, era permitida a entrada de quem quer que fosse. Quando um carteiro ou entregador qualquer tocava a campainha, lhe abriam a portinhola do portão através da qual deveria ser colocada a correspondência ou a encomenda. Os funcionários da luz e da água nem se davam ao trabalho de chamar os moradores, pois os medidores davam para a rua.

Viúvo. As filhas de seu Geraldo eram pedras preciosas que ele lapidava; joias, as quais guardava num cofre, cujo segredo apenas ele sabia, sendo, igualmente, o único capaz de abrir. Muitos diziam que, após a morte da mulher, o homem temia perder as filhas do mesmo jeito, por isso todo o cuidado era o mínimo que se esperava de um pai zeloso. No entanto, algo de estranho havia naquelas garotas. Há quem diga que seus olhos castanhos refletiam um vazio funesto, uma tristeza fria e irrequieta que lembrava, quem sabe, a loucura. Não. Loucura é muito forte. Desespero encaixa-se melhor. Mas desespero e loucura não são continuação uma da outra? Não constituem limites de terras vizinhas?

As filhas de seu Geraldo dificilmente saíam desacompanhadas; ao lado do pai, encaravam o chão durante todo o trajeto. Nas raríssimas vezes que saíam apenas as três, sempre para ir ao mercado (nunca frequentavam a igreja), só então podíamos vê-las caminharem de cabeça erguida, olhar adiante, como rainhas admiradas por seus súditos. Olhares ainda vazios, é claro, e nenhum sorriso. Mas não pensem que, por estarem desacompanhadas, a vigia do pai estivesse ausente. Sempre que as três deixavam a residência sem sua companhia, seu Geraldo se colocava à varanda do segundo andar de sua bela casa e as observava através das lentes de um potente binóculo. E, com certeza, as meninas sentiam em suas nucas os olhos do pai arderem como duas bolas de fogo.

Militar reformado, de alta patente. Teria sido ministro das forças armadas, não fosse a morte catastrófica da mulher e a inimizade com certo general, parente de um político influente. Viviam muito bem. Sem muito luxo, no entanto. Ainda assim, as meninas eram as donas da casa, no sentido de serem as responsáveis pela limpeza, arrumação e cuidado. Pois, donas, elas não eram nem mesmo de seus corpos.

Mas a casa era realmente maravilhosa. Antes da morte da esposa de seu Geraldo, o quintal, uma quinta que ocupava todo um quarteirão, era envolto por grades, que nos permitiam admirar o jardim. Entretanto, logo após seu falecimento, foram substituídas por um muro alto de concreto tristonho, que nos deixava ver apenas a varanda do segundo andar, alguns galhos de plantas e a copa das árvores mais altas. O primeiro pavimento da casa nos ficou completamente escondido, assim como a vida das meninas.

Talvez vocês estejam curiosos a respeito da mulher de seu Geraldo e de sua morte. Belíssima, a mulher, não a morte. Foi a mais elegante do bairro. Olhar penetrante. Simpatia à flor da pele. Sorriso aberto até para os mendigos e sua gargalhada se espalhava como uma onda de alegria contagiante. Poucos, àquela época. Todas as tardes, passeava ao lado do marido, já esquisito desde então, porém, ainda educado. Adorava o mar, os animais, as plantas, as pessoas, a vida, em geral. Em cada gravidez, sua beleza era ainda mais notória e admirável. Após o nascimento das filhas, seu sorriso se tornou muito mais radiante e seu olhar, um diamante azul. Um dia, porém, morreu, simplesmente. Sua morte surpreendeu a todos e, daquele dia em diante, a casa e a vida de seu Geraldo e de suas filhas foram se fechando, se definhando, como se eles mesmos tivessem sido encerrados dentro do caixão da matriarca morta.

Da mãe, as meninas herdaram apenas a beleza. A alegria da outra foi podada, sufocada, arrancada pelo convívio exaustivo com o pai.

Aquele dia era uma madrugada de outono. Um outono diferente, digamos de passagem, pois, durante todo o ciclo, o sol apareceu pouquíssimas vezes. A chuva e o frio eram nossos companheiros quase diários. Não havia tempestades como as de verão, apenas uma chuva fina, constante e triste, que agourava nossos dias e predizia como seria o inverno.

Já fazia semanas que não víamos seu Geraldo e suas filhas. As portas e janelas da casa permaneciam fechadas, dia e noite. A princípio, acreditamos ser a razão da clausura o tempo gélido. Com o passar dos dias, começamos a nos indagar se algo de errado teria acontecido. Talvez uma virose, uma doença séria, outra tragédia...

Vez por outra, com toda a boa intenção, um vizinho se aproximava dos muros ou do portão, na esperança de capturar algum som ou farejar algum cheiro estranho. O odor da morte, na verdade. Mas nada foi descoberto. Algumas pessoas sugeriram pular o muro e entrar na casa. Contudo, a ideia era sempre refutada por um e por outro, com muita veemência. Isso porque existia o boato que seu Geraldo possuía uma tenebrosa coleção de armas; um arsenal sempre muito limpo e pronto para o uso. Embora ninguém nunca tivesse visto, era frequente escutarmos os tiros que o homem costumava dar nos infelizes e descuidados ratos que fuçavam o jardim. E, pelo que se soube depois, atrás da casa havia um alvo em forma de gente, como aqueles usados nas casas de tiro, que ele mirava e atingia certeiramente a cabeça e o peito, todas as manhãs. Seis tiros, igualmente divididos.

Inácio sempre praguejava ao acordar sobressaltado pelos estampidos secos que saíam da arma do homem, que gostava de praticar sempre às cinco horas da manhã, houvesse chuva, houvesse sol. Os vizinhos, nenhum reclamava com o velho, talvez por medo de se tornar o próximo alvo do homem, que sabia se camuflar melhor que um camaleão. Mas acredito que seria inútil confrontá-lo, pois duvido que abandonasse seu hobby por causa de vizinhos, dos quais ignorava a existência.

Mas fazia semanas que não ouvíamos os tiros de seu Geraldo ecoarem pela rua, até aquela madrugada fria de outono.

Durante muitos dias, assistimos à desalentadora partida dos carteiros e dos entregadores habituais que, ao tocarem a campainha, não viam ser aberta a portinhola. Os da luz e água continuaram a comparecer, já que o que interessava a eles estava do lado de fora da casa e pouco importava o que acontecia do outro lado do muro alto e cinzento, embora as contas se avolumassem na caixa de correspondência. Enquanto isso, do lado de cá do muro, inquietação e chuva e frio foi o que envolveu os vizinhos durante aquele período de ausência e silêncio na casa de seu Geraldo.

Inácio era o único que não tomava partido das discussões calorosas que tentavam desvendar aquele mistério. Continuava a se ocupar do que quer que fosse, já que acreditava ter sempre algo mais importante a fazer do que perder tempo em descobrir o que se passava na casa do vizinho. No entanto, mesmo sem querer se meter, foi ele quem levantou a hipótese pela primeira vez.

Um silêncio pavoroso nos encobriu. Olhamos para Inácio como se víssemos um louco ou um Deus. Não nos atrevemos a quebrar o silêncio, muito menos a repetir suas palavras, temerosos de torná-las reais. Um por um, retornamos para nossas casas, ainda quietos; trancamos nossas portas e nos fechamos em nossas caixas de concreto com o incômodo da possível verdade a nos assombrar.

Passaram-se mais alguns dias, até nossas casas serem invadidas por uma luz radiante, depois de seis estrondos curtos quebrarem o silêncio da madrugada.

Todos já dormiam ou, pelo menos, tentavam encontrar o caminho do sono, quando o brilho atraiu nossa atenção. Levantamos de nossas camas, saímos de nossas residências e nossos olhos refletiram o fogo que consumia a casa de seu Geraldo, enquanto a névoa sufocante se espalhava ao nosso redor.

Atônitos, nenhum de nós teve a iniciativa de ligar para os bombeiros nem de, ao menos, tentar apagar as chamas com baldes de água... Mas não iria adiantar, de qualquer forma. O fogo estava faminto e, na sua fome, engoliu a bela propriedade de seu Geraldo em poucos minutos. O estrondo da ruína era tão poderoso que não sabíamos discernir se o que escutávamos eram os gritos das vítimas ou da própria construção. Mas nunca esquecerei o som macabro, parecido com risadas, que durante muito tempo ecoou entre os chamas; se não tivesse sido Inácio, eu não teria conseguido dormir.

Enquanto contemplávamos a morte da casa de seu Geraldo, Inácio me cutucou, acenando, discretamente, para frente. Só de relembrar aquela visão, todos os pelos de meu corpo se arrepiam do mesmo jeito que ocorreu naquela madrugada. Inácio acenou, olhei atento e vi as três filhas de seu Geraldo caminharem ombro a ombro, atravessarem a multidão abismada e passarem ao nosso lado. Olhos vivos e brilhantes, como as chamas que deixavam para trás. Pela primeira vez, as vi sorrir.

OFICINA 666 - DOS OLHOS E DA FOICEOnde histórias criam vida. Descubra agora