Capítulo 3 - A ALGUNS PASSOS DO PARAÍSO

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As forças haviam se esgotado. Ainda assim, ela insistia em ignorar a dor do corpo, da alma, da mente. Desprezava até o ferimento na perna direita, a qual se arrastava atrás dela com um pé retorcido, inclinado para o alto numa angulação no mínimo estranha. Não bastava a névoa dificultar a visão. A noite era a mais fria do ano, pelo menos sentia assim desde que havia escapado, pois, bem ou mal, aquele lugar oferecia um canto coberto e aquecido. Mentira. Sujo, úmido, decrépito, fedido. Durante seu período de confinamento, descobriu que o inferno não cheirava a enxofre, mas sim a sangue, suor, merda e carne podre. Também não havia o alarido de vozes, gemendo, chorando ou gritando o desespero da prisão eterna. Tudo era silêncio, como se o apocalipse tivesse devastado o mundo, poupando-a apenas para servir como o vigia do nada. Um castigo por seus erros enquanto humano desprezível.

Ela prosseguia na estrada escura, de terra batida. Sem enxergar o que estava adiante nem a ameaça que continuava lá atrás, apenas desejava não ter confundido o caminho pelo qual a haviam trazido há, há... Fácil perder o tempo quando se tem todo o tempo do mundo para fazer coisa alguma, senão permanecer quieta, quase invisível, e obedecer às ordens que te berravam. Primeiro, seguiam uma rotina lógica que lhe permitia diferenciar dia e noite, horas e minutos, hoje-ontem. Mas, depois, a fim de enlouquecê-la mais depressa e matar o resto de humano ainda nela existente, passaram a diminuir o intervalo entre um berro e outro, entre uma refeição e outra, até se calarem por completo, fazendo-a perder a noção de tempo que impedia seu cérebro de minguar e derreter.

Agora, contudo, o mundo se reconfigurava aos poucos e, ainda que não conseguisse enxergá-lo bem, percebia sua existência através dos sons e ruídos que lhe chegavam a todo instante. Por mais sutis que fossem, para o ouvido acostumado à companhia da quietude e da escuridão, soavam com a potência de centenas de decibéis. Por isso os sobressaltos, cada vez que uma ave noturna piava, que o vento sibilava, que o matagal e as folhas das árvores farfalhavam, e um animal corria ou se arrastava em algum ponto próximo a ela. Também os odores tornaram-se outros. Mais fresco e salubre, o ar viajava direto para seu cérebro, desencadeando lembranças esquecidas durante o confinamento, e ela percebia com certa perplexidade como era fácil se adaptar ao pouco oferecido pelas circunstâncias, como se aquele pouco representasse tudo o que sempre existiu. Assim, conseguia até sentir o gosto do mato, da terra, daquele vaga-lume que atravessou seu caminho e das flores, além de coisas ainda não identificáveis, mas que a agradavam da mesma forma. Então, ela se perguntou, outra vez, quanto tempo faltava para chegar à suposta ponte que a levaria para a estrada principal e, enfim, casa.
A imagem borrada de sua casa surgiu quando a névoa pareceu desenhá-la diante de seus olhos. Aquele lugar que sempre fora um pedaço de inferno – uma vez que ela ainda não tinha conhecido o verdadeiro – agora significava aconchego e pedaço de torta de limão, degustado diante da televisão colorida ainda da primeira geração. E, por isso, a ideia de modificar algo naquele pedaço de mundo conturbado ou nas pessoas que o habitavam se apresentava tão absurdo quanto desnecessário. Ela sorriu... Mas, de repente, um medo diferente rebuliçou dentro de sua barriga. Será que se esqueceram dela? Será que sua ausência foi sentida? Será que brigaram por ela?

Como a resposta sussurrada em seu ouvido não lhe agradou, ela guardou o sorriso e concentrou na caminhada cada célula de seu corpo miserável, pois o melhor era não pensar.Caso tivesse um relógio, saberia que sua fuga já durava cinquenta e três minutos e, há trinta, encontrava-se naquela estrada de terra batida. Porém, como não podia adivinhar o tempo transcorrido, sentia que a busca por liberdade já durava horas, quase uma noite inteira, e, então, começou a duvidar se aquela era a estrada correta. Chegou mesmo a se perguntar se o melhor não teria sido permanecer naquele lugar à espera da morte, porque esta não tardaria, certo? Talvez.

Ela percebeu a garganta se transformar em nó e os olhos arderem de desamparo, temendo que seu esforço se revelasse vão. Mas ela não podia chorar. Chorar sugava o resto de energia que a compelia a seguir adiante, a não desistir, embora não soubesse aonde aquele caminho a levaria. Contudo, no momento em que o desespero a envolvia, sentiu um cheiro distinto, ao mesmo tempo que a audição captou o som de água corrente. Dessa maneira, os olhos que começavam a chorar voltaram a sorrir, assim como os lábios. Estava perto, estava muito perto. E, de uma só vez, a força se renovou e ela procurou se locomover com mais agilidade.

Mais alguns minutos de caminhada, conseguiu vislumbrar por entre a névoa parte das balaustradas arqueadas da ponte. Nesse mesmo instante, um ruído a alcançou. Voltou-se para trás. Nada podia ver àquela distância, mas sentia sua aproximação. As sobrancelhas se crisparam. Ela sentiu o coração se afundar até o estômago, enquanto o peito arfava como um fole desenfreado e o desespero retornava a seus olhos, ao se dar conta que a perna ferida havia deixado um rastro que os conduziria direto até ela. Droga! De um lado a outro da estrada ela olhou, em busca de um escape mais rápido, mas sabia que seu conhecimento daquela mata era ínfimo em comparação ao de seus predadores.

Virou-se para frente. A ponte, sua única esperança. Respirou fundo, engolindo choro e desespero. Procurou acelerar o passo para alcançar logo a passagem elevada. Puxou o peso morto atrás dela. Olhar grudado no adiante. Eles se aproximam. Não escute, ande. Eles se aproximam. Desajeitada, ela correu. Braços estendidos à frente do corpo, como se paraalcançar a ponte mais rápido. Eles estão mais perto. Sua respiração ofegante ecoava na noite fria e escura. A ponte, a apenas três metros, nunca pareceu mais distante. Eles se aproximam. E, enfim, ela alcançou a construção que ligava as duas margens do rio. No entanto, havia apenas ruínas de uma ponte desabada. Lá embaixo, embora não o enxergasse, o rio corria veloz, batendo em pedras e nos paredões rochosos.
Desolada, ela olha para a outra margem, para trás, para o fosso escuro, para trás. Sabe que eles já a alcançaram. Outra vez, ela encara a escuridão ruidosa lá embaixo, sentindo o coração espancando o seu tórax, olha direto nos olhos deles e

OFICINA 666 - DOS OLHOS E DA FOICEOnde histórias criam vida. Descubra agora