- Sarah.
Vagando.
Estou vagando como uma sonâmbula desde o momento em que o carro capotou, horas atrás eu imagino, mais perdida do que um estrangeiro em terra de ninguém. Minha cabeça lateja a cada segundo, tem sangue saindo de lugares que não consigo identificar.
Se alguém me visse agora, poderia facilmente confundir com um deles.
Os meus pés doem, me obrigando a parar. Tem uma pequena construção de pedra adentrando um pouco as margens do asfalto, e dirijo-me para ela. No primeiro canto que encontro, me sento, não sabendo se é a parede que me segura ou se eu que seguro a parede, a sensação é semelhante a embriaguez, tudo gira. Como eu havia aguentado fazer aquele caminho todo até ali?
Piscadela após piscadela, já é dia novamente.
Olho para minhas pernas e vejo que estou sem um tênis, isso explicava o tamanho da dor que sentia na sola dos pés, e as minhas roupas estão destruídas e cheias de sangue parcialmente seco. Tem um gosto podre vindo de dentro da minha boca e sua origem só pode ser o encontro de ontem com aquele doente. A chance de eu estar infectada pelo vírus é de cem por cento.
Volto a ficar de pé, indo em direção à autoestrada novamente. Meu caminhar é vagaroso e certamente levarei um século até chegar ao meu destino, se sobreviver até lá, é claro.
Sem comida e com o efeito da adrenalina passando, a mortalidade se torna real como nunca antes, um passo após o outro só me levam a derramar lágrimas atrás de lágrimas, cheia de dor e rancor por ter tido a ideia estúpida de parar naquela droga de posto de gasolina.
Lembro mais uma vez do som de Sarila ganindo ao ser lançada, da forma como gritava de dor dentro do veículo no momento em que recobrei a consciência, nada nunca me despedaçou tanto quanto isso. Eu imediatamente me recordo da primeira vez que a segurei, um filhote minúsculo e peludinho, de olhos castalhos que derreteram todo o meu coração.
¨ - Augusto, olha ela - me derreto ao pegar o pequeno filhote.
- É feia que dói.
- Cala boca, é perfeita. - abraço-a, beijando sua cabeça. - Você vai para casa com a gente dona Sarila. ¨
Doeu lembrar que além de perder Augusto agora eu a perdi também.
- Merda, merda. - choramingo, fungando inutilmente.
Tocando a testa, sinto que não vou aguentar caminhar mais sem comer ou beber algo. Estou fraca e completamente debilitada. Indo em direção as árvores da beirada da estrada, observo os musgos e cogumelos que crescem ao longo de seu tronco e raízes. A chance de comer algo venenoso ou alucinógeno é simplesmente absurda, porém preciso arriscar.
Arranco alguns e jogo diretamente na boca, visualizando uma ou duas unhas quase arrancadas. Levo o pulso ao rosto, impedindo que cuspisse o que mastigo. Cantarolo e penso em coisas completamente desconexas com a realidade para finalmente conseguir engolir. Como Deus, se ele existia, poderia permitir que coisas tão horríveis acontecessem assim? Dizem que quando nos questionamos sobre onde erramos, geralmente os erros não são nossos pois nós sabemos exatamente onde e quando erramos. Então, Deus, onde foi que eu errei pra merecer tudo isso?
Enxugo outra lágrima que caí ao me dar conta da realidade em que estou.
Voltando ao caminho, depois de horas vagando como um deles, chego ao portal da cidade. Milhares de doentes zanzam de um lado para o outro entre os veículos abandonados, se eu quisesse chegar até o condomínio teria que fazer o caminho mais longo, pela rodovia e pegando a próxima entrada, adicionando mais meia hora de caminhada.
Logo ao recomeçar a rota, algumas cabeças se viram em minha exata direção, iniciando uma perseguição lenta e vagarosa. Se eles me seguirem vai ser difícil dispersá-los, tido isso em mente faço um esforço brutal para acelerar o passo, entrando em uma panificadora gigante às margens da rotatória da rodovia, fechando as portas após conferir com um assovio se algum doente estava no local.
Vou para trás do balcão, onde os doces esquecidos pelos desafortunados escondem minha posição. O enxame de doentes se coloca na frente da fachada de vidro da panificadora, observando dentro do local e erguendo as cabeças em alguns momentos para fazer o que parecia ser farejar o ar. Minha posição está ficando desconfortável, as pernas dormentes e feridas querem me obrigar a trocar de lugar. Olho para eles atenta enquanto me movimento com paciência, e ao tocar a borda do balcão na busca de suporte, faço força encima de uma prancheta antes despercebida por mim, que lança ao chão um baleiro antigo de vidro.
Este se espatifa em infinitos pedaços, com um estrondo semelhante ao de um trovão.
Imediatamente as mãos começam a se chocar na fachada, fazendo-a balançar como uma folha de papel ao vento. Levanto e corro para a cozinha, encontrando o que fora antes um funcionário, agora infectado, me esperando. Pensando rápido, nem dou chance para que este faça alguma coisa. Uma frigideira no fogão, contento ovos podres e carne, está ao meu alcance. Nem faço questão de tirar o conteúdo putrefato do recipiente, apenas junto-a com minha mão boa e desço em sua cabeça, uma vez atrás da outra até que nada sobrasse de seu rosto.
Um estrondo alto chega até mim, é a fachada se partindo e eles entrando, como um tsunami atingindo uma pequena vila, sedentos por mais.
Me obrigo a pegar fôlego por um segundo, estou fraca e o mundo começa a se borrar aos poucos, provavelmente tenho uma hemorragia, está tão frio. Na terceira golfada de ar tomado, a porta da cozinha se choca contra a parede e os doentes chegam.
Observo apavorada o cômodo, estou presa.
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Para sempre Sarah - A zombie novel ✔️
Science FictionSarah sente saudade de Augusto. Durante o fim de uma tarde de Outubro, algo inusitado a coloca em contato novamente com seu ex. Esse algo é nada menos do que pessoas doentes que atacam todos que vêem, assassinando à sangue frio os azarões que cruzam...