O vento frio impede as páginas gastas de meu diário manterem-se paradas, mas isso não é capaz de parar o movimento brusco que minha caneta faz contra as páginas amareladas e enrugadas do meu velho caderno repleto de pensamentos.Enrugo o nariz com o odor das flores baratas do tumulo ao lado e sigo ignorando os olhares estranhos e curiosos das poucas pessoas que velam o mais novo vizinho de cova de meus pais. Eles haviam começado a missa cedo, antes das sete, e eu ao menos sabia que algo assim era possível, mas dado o fato de que o homem mais jovem de terno não era capaz de tirar os olhos do relógio caro de pulso, eu poderia apostar que ele era a razão pelo horário bizarro.
Ergo os olhos até a lapide a minha frente. Havia sido ideia de Jeremy colocar o símbolo do infinito entre os nomes de papai e mamãe, eles sempre haviam dito que o amor que sentiam um pelo outro era eterno e isso era o bastante para convencer a todos que meu irmão caçula tinha razão.
Fecho os olhos e respiro fundo, o ar ainda fede e ainda há sons de pessoas chorando enquanto o coveiro desce o caixão do falecido, mas em meio a esse mar de tristeza sou capaz de encontrar paz e por um instante lembro-me do rosto de mamãe, do seu sorriso doce ao deixar-me na escola, de seus intermináveis conselhos e suas risadas escandalosas sempre que eu lhe contava que havia errado mais um passo na coreografia das lideres de torcida, ao seu lado vejo papai, sempre sereno, cometido e até mesmo muito pensativo, usava palavras diferentes para se explicar e aconselhar, fruto de seu trabalho na promotoria – como dizia mamãe a Jer sempre que ele pedia explicações sobre o que papai havia lhe dito.
Éramos felizes, até que estraguei tudo. Abro os olhos e não me assusto ao perceber que o enterro do novo vizinho dos meus pais acabou, desde o acidente, há seis meses, eu havia adquirido a incrível falta de percepção de tempo e lugar.
Fecho meu diário deixando a caneta na pagina inacabada e o guardo em minha bolsa marrom gasta, levanto-me passando as mãos em meu traseiro limpando minha calça azul de malha de qualquer vestígio de grama solta, dou alguns passos incertos ate mais próxima da lapide e descanso minha mão sobre a mesma. Alguns segundos e pronto, dou as costas para a representação concreta dos meus pais e sigo o caminho até a rua de pedras que me leva para longe dali levando comigo o fantasma da culpa e da saudade.
"Você acha que eles são capazes de nos ver?", indaga-me uma voz desconhecida. Ergo meus olhos até uma figura alta e morena parada em frente ao novo vizinho.
Olho para a lapide que o rapaz encara e vejo um nome feminino escrito sob a mesma: Nicoleta González. E é isso, apenas um nome, mais nada.
"Isso faria você feliz?", indago de volta estranhando o tom rouco de minha voz. O moreno se vira para mim e vejo a infelicidade em seus olhos verdes, ele sorri de lado e da de ombros, dou um sorriso mínimo e cruzo os braços. "Eu acho que não há muito que eles podem fazer agora por nós, mas eu posso me sentir melhor sabendo que eles me vêem, então...", digo dando de ombros.
Ele olha-me por um longo tempo e acena a cabeça em concordância, dou um aceno para o estranho e volto a fazer meu caminho até a saída do cemitério.
Tirando a conversa não tão convencional com o estranho moreno, essa era a minha vida, não a vida que eu havia criado com os meus pais, mas a que eu tinha após a ausência deles. Acordar no hospital sentindo náuseas e sendo incapaz de respirar havia sido fácil, usar gesso no braço e fazer fisioterapia por dois meses havia sido moleza, mas me levantar todos os dias sabendo que não os tinha mais comigo era o meu abismo pessoal.
Puxo a velha jaqueta contra meu corpo fino e cansado e passo pelos pesados portões do cemitério dando bom dia ao coveiro, ele havia se tornado a pessoa mais razoável do meu dia, o único que não puxava assunto ou contava piadas tentando amenizar o fato de que a órfã estava por perto, mas também era apenas mais um que não se importava de fato com o que se passava em meu interior.
Respiro fundo e dou leves tapinhas em minhas bochechas geladas, encaro meus pés e me amaldiçoou por ter escolhido justo hoje para uma combinação nada agradável - perante o clima frio – de calça de malha e tênis all star.
Entro no carro branco estacionado em frente ao cemitério e olho para o rosto serio de JJ, ela olha minhas roupas e revira os olhos entregando-me um expresso quente de café, dou um sorriso – de verdade – para ela que olha pelo retrovisor.
"Jer? Arsenal", diz. Antes que eu beba um gole de meu café um casaco preto grosso cai em meu colo, reconheço primeiro o aroma e com apenas um toque sob o material as lembranças de papai o vestindo para ir trabalhar tomam conta de minha mente. "Não diga que não irá usar, os seus casacos são ridiculamente leves para o tempo que está por vim, nosso fundo este mês está escasso graças a reforma da garagem e você sabe que as irmãs não param de bater a porta pedindo para doarmos as roupas deles, temos que salvar o máximo que der", diz ainda seria dirigindo. JJ para no sinal vermelho e morde o polegar, um habito que aprendi que ela só faz quando se sente perdida ou encurralada, suas sensações que até mesmo eu me sinto agora.
"Não devíamos doar nada, são as coisas dos nossos pais", diz Jeremy do banco traseiro. Engulo em seco e bebo um longo gole de meu café, pois a verdade é que a adolescente revoltada e irritada quer concordar com cada palavra que ele disse, mas esse papel não é o correto, não quando sabemos que essa não seria a vontade deles.
"Papai cuidou de toda aquela gente, e mamãe sempre ajudava, principalmente no inverno, devemos tentar fazer o mesmo", digo encarando o casaco de papai em meu colo, ouço Jer bufar e o som de algum rock clássico estourar de seus fones de ouvido, a mão de JJ toca meu joelho momentaneamente e percebo que ela aprova minha fala.
Outra coisa sobre JJ: ela não é ligada a toques físicos, sendo assim, quando os faz é porque sente que deve nos recompensar com algo, como quando ela abraçou Jer de lado por ele ter retirado o lixo após quase uma semana de espera.
"Eu posso pegar vocês hoje, se quiserem", diz insegura. A volta para casa ainda era uma incógnita, já que Jeremy preferia ir andando por ser o horário que ele visitava nossos pais.
"Isso seria legal", respondo quando percebo que Jer ao menos deu atenção ao que a mesma disse, ela sorri aliviada, mas lança um olhar preocupado para Jeremy que apenas encara a paisagem com indiferença.
Para ele tudo era sempre pior e mais difícil, ele sentia-se lesado por ter tido tão pouco tempo com nossos pais e por ao menos estar na cidade quando tudo aconteceu, mas havia mais do que isso, quando ele pensava que eu estava distraída eu via seus olhares sobre mim e conseguia sentir a distancia que dia após dia crescia entre nós, no fundo, mesmo que ele não dissesse, seu coração me culpava pela morte deles.
JJ estaciona em frente à escola e se vira para mim sorrindo de forma encorajadora, eu sabia que ela havia lido isso em um dos tantos livros que ela havia comprado pela Amazon sobre como criar dois adolescentes, mas eu estava apenas contando os dias até que ela desistisse desse método e tentasse um próprio que não contasse com terceiros, apenas algo que fosse mais ela mesma.
"Tenham um bom dia", ela diz enquanto visto o casaco deixando meu copo pela metade no console do carro, sorriu para ela em forma de agradecimento enquanto Jer apenas desce do carro batendo a porta.
Seu sorriso desmonta, mas ela logo o recupera, penso em avisá-la para apenas deixar para lá, mas algo me diz que ela apenas quer ficar longe de nós e nosso drama diário. Saiu do carro e ando rápido até Jeremy, em meio aos demais ele é apenas um menino alto demais para quem acabou de completar quinze anos.
"Ei!", exclamo puxando-o pelo braço, ele olha-me assustado a principio, mas quando vê que sou eu retira os fones e arqueia as sobrancelhas, igual à mamãe, engulo em seco e me aproximo para que os que passam a nossa volta não sejam capazes de ouvir o que vou dizer. "JJ está tentando, você devia tentar também", digo.
Ele franze o cenho e sorri debochado. "Esse sou eu tentando", diz dando-me as costas.
Arfo indignada e o puxo de volta. "Não! Esse é você sendo um garoto mimado", afirmo. Jer franze os olhos e se aproxima.
"Eu não digo nada sobre como você lida com isso indo até o cemitério todos os dias às seis da manhã escrever naquele seu caderno velho, então não diga nada sobre a forma como eu lido com toda essa merda, você não é a responsável da noite Greta, mamãe e papai morreram e não vão mais voltar."
Ele me da as costas e caminha apressado em direção a entrada, engulo minhas lagrimas e olho em volta vendo todos apenas caminharem até a entrada, respirando fundo sigo o mesmo caminho apenas pedindo o máximo de vezes possível que o resto do dia seja um pouco mais tolerável.
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Yours
Fiksi RemajaRingues e gaiolas de luta, mundos subterrâneos, apostas altas e muito dinheiro. Esse é um universo que Greta jamais sonhou em conhecer, e que agora Daniel faz parte. Como um Jenkins ele deve assumir sua posição e ser forte, mas ele irá descobrir que...