1. Hotel

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1. Felicidade extrema

Um vento forte e frio batia em meu rosto e um sorriso se abriu aos poucos. O cheiro do asfalto molhado por conta da chuva da madrugada passada me deixava calma. Os fios roxos da metade direita do meu cabelo entravam na frente da minha visão, coisa que não me incomodava, porque logo fechava meus olhos e sentia a calmaria.
Todo o meu corpo estava em paz, nenhum pensamento infeliz dominava a minha cabeça nesse momento, eu me sentia feliz e relaxada, sem toda a pressão de onde eu vivo.
Essa viagem de carro que meus pais pensaram foi uma ótima desculpa para me afastar daquelas pessoas horríveis do meu antigo colégio, que zombavam dos meus dentes por serem separados e de alguns dos meus vídeos em que eu cantava na internet, que mesmo depois de anos que me formei e fiquei famosa, ainda me vêem na rua, apontam os dedos pra mim e riem, mas o pior é quando querem forçar alguma amizade. Já quis chorar quando eles colocaram um desses vídeos no meio de uma aula, já quis arrancar os olhos deles, já quis dizer o quanto eles eram insignificantes para minha vida, mas infelizmente, eu me importava, sentia que devia algo, sempre devemos, não é mesmo?
Também foi uma ótima desculpa para sair da minha casa e relaxar depois de tanto estresse nos últimos anos.
A música que minha mãe ligou no rádio estava baixa para não atrapalhar os meus pensamentos, mas alta o suficiente para o meu irmão, que estava do meu lado, aproveitar e se empolgar. Ele balançava a cabeça para frente e para trás e batia a mão na coxa junto com a batida. Minha mãe fazia o mesmo que eu, ela olhava a paisagem e curtia seus próprios pensamentos, e meu pai dirigia bem concentrado na estrada, olhando só algumas vezes para mim, com um olhar de carinho e pena.
Isso é algo que eu não sei o porquê deles estarem fazendo, meu pais e meu irmão estão me olhando com um certo olhar de pena, como se eu estivesse mal, a beira de uma doença grave, mas eu estou bem, juro, saudável, só não estou louca porque minha amiga Jackie me ajuda como pode, mas tirando isso estou bem.
- Essa viagem vai fazer bem pra todo mundo - disse minha mãe, uma hora antes de entrarmos no carro, enquanto ajudava meu irmão com os sanduíches - principalmente pra você, meu amor - ela limpou as mãos e apertou minhas bochechas, me obrigando a fazer biquinho.
O lado de fora do carro era lindo. O céu claro, poucas nuvens, o que é estranho pela chuva que teve. O vento frio batia no meu rosto e fazia com que um arrepio descesse pelas minhas costas. O campo depois da estrada era de um verde ofuscante, alguns animais andavam por ele, deixando a vista ainda mais linda.
Meu celular vibrou e eu saí do meu trance. Era Jackie mandando mensagem.

JACKIE: Vcs já chegaram?

MELANIE: Não, ainda falta algumas horas.

JACKIE: Quando chegar me avisa, e não se esquece de tirar fotos e me mandar, hein!

Dou uma risada. Abro a câmera do celular e tiro algumas fotos da paisagem, até faço um pequeno vídeo onde eu apareço, colocando a língua pra fora e fazendo o "V" com a mão e mando para Jackie.

JACKIE: Parece um sonho...

MELANIE: Agradecida que não é. Mas seria mais perfeito se vc estivesse aqui comigo, sdds de vc, amiga.

JACKIE: Também tô com sdds, mas daqui a pouco vc volta.

MELANIE: Não fala isso!! Estou dando graças a Deus que saí, só queria que vc estivesse aqui comigo mesmo, o resto que se foda.

JACKIE: Só vc mesmo, né? Errada não tá.

Jackie me ajudava em tudo que tinha dificuldade. Ela é a minha melhor amiga e sempre esteve ao meu lado. Uma vez se pôs a frente de um grupo do colégio que me zoava assim que decidi pintar metade do cabelo.
- Vão cuidar da vida de vocês, seus fodidos! - disse Jackie, não deixando que eu visse os rostos deles, tarde demais, porque vi o suficiente pra lembrar deles quando tive um pesadelo - Pelo menos ela tá sendo original, e olha, conseguiu ficar linda fazendo isso!
Só lembro de passar a semana agradecendo ela.
- Diga aos porcos-espinhos pra desistirem de provocar a minha amiga, porra! - gritou Jackie, naquele mesmo dia, para fora da janela do seu quarto.
- Um dia eles vão querem um sussurro de mim, porque todos eles vão me assistir em suas TVs. Mas e quanto a pequena e velha eu? Aquela que sofreu bullying por causa de seus dentes? - mal pensei quando disse aquela frase, somente soltei quando estava deitada na cama de Jackie, com uma caixa de lenços no colo e uma música na cabeça, não pensei que um dia iria se tornar verdade.
Depois disso algumas garotas queriam que eu sentasse com elas no recreio e eu nem pude acreditar na cara de pau delas. Falando merda e causando brigas no próprio grupo, isso não era coisa para mim, saí fora daquilo antes do sinal tocar.
Jackie fez uma festa de aniversário para mim. Fiz vinte e quatro nesse ano e ainda não consigo acreditar nesse fato. A festa foi incrível, realmente não queria passar a data em branco, e Jackie conseguiu me enganar tempo o suficiente para que meus pais preparassem tudo na minha casa.
Jackie também nunca reclamou quando fumei maconha no quarto dela, na verdade, ela adorava quando eu fazia isso, amava pegar o celular e tirar fotos minhas, me exibindo com a fumaça.
- Vamos fazer uma parada? - Meu pai perguntou, já parando o carro em um posto de gasolina - Preciso abastecer.
Ao lado do posto tinha um mercadinho e consegui ver a placa do banheiro ao lado dele, corri para lá assim que consegui tirar o cinto de segurança, mas o caminho também foi complicado, meus cadarços estavam desamarrados e eu ficava tropeçando neles toda hora, mas estava com muita pressa para ter que parar e amarrar. Minha mãe me fez experimentar cada sabor de suco que tinha, e eu fiquei cheia, não o suficiente para ir ao banheiro antes de sairmos, mas agora que eu parei para ver e a minha bexiga estava quase explodindo.
Depois de fazer o que queria, saí do banheiro de mãos lavadas, e vi que o carro estava vazio, entrei nele pra pegar meu celular e por um momento olhei para o medidor de gasolina e vi que estava quase cheio. Fechei a porta do carro assim que ouvi outro carro chegando, era uma van dourada.
Entrei no mercadinho e comprei uma cartela de chiclete, e enquanto pagava, olhava em volta, procurando meus pais.
- Boa sorte - disse a balconista, que era uma senhora de meia idade, pele escura e cabelo amarrado em um rabo de cavalo, usava uma blusa pólo roxa com a gola dourada, achei fofo na hora, ela virou a sua atenção para o celular.
- Como assim? - perguntei, mas ela só colocou os fones de ouvido, fechou os olhos e pude ouvir a voz da Nina Simone saindo dos fones.
Guardei o chiclete no bolso da saia e saí do mercadinho. Olhei para o carro dos meus pais e eles ainda não estavam lá. A van que tinha visto estacionar estava lá, toda aberta, e pelo que vi, alguém morava lá, até preparou uma cama na parte de trás, mas também não havia ninguém dentro ou perto dela. Voltei a olhar para a balconista pelo vidro da frente do mercadinho, que me olhava de maneira curiosa, parecia que ela esperava que algo acontecesse, e aos poucos, ela foi virando, uma expressão de medo, a mão sendo colocada no rosto e o reflexo de um homem aparecendo atrás de mim no vidro.
Ele me segurou pela cintura e eu comecei a me debater, sentia que ele era mil vezes mais forte que eu, mas mesmo assim queria lutar, não iria desistir de tentar sobreviver. Curiosamente uma música que escrevi veio na minha cabeça. Eu gritava para que parasse, tanto a música quanto o homem. Vi a minha vida passando pelos meus olhos, tudo que passou e tudo que poderia passar, eu queria continuar viva e segura, mas era muito tarde para desejar aquilo.
Outras pessoas apareceram, todas com máscaras roxas. Um deles estava com uma seringa, que não teve pena ao aplicar o líquido estranho que estava nela em mim. Senti meu corpo pesar, a vontade de sobreviver ficava maior, mas a disposição que tinha antes iria diminuindo, mal conseguia me mexer. Fui colocada na van, deitada, e uma forma feminina tirou o meu cabelo da frente do meu rosto e ajeitou a minha cabeça no travesseiro.
- Vai ficar tudo bem - ela disse, com uma voz calma e suave.
- O que... tá... acontecendo? - foi tudo que consegui falar, com muito esforço.
- Vai ficar tudo bem, querida - ela disse novamente.
Não repeti a pergunta, a minha cabeça estava girando, eu estava confusa, até vi a minha família dando tchau antes de fecharem a porta da van. Já estava imaginando coisas.

Lavanda (Fanfic Melita)Onde histórias criam vida. Descubra agora