Capítulo I - Aqui no jardim, à tua espera...

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   Estava um dia enevoado, mas nem isso impossibilitou Laila de esperar por Margarida no jardim em frente à academia de dança onde treinava. Sabia que ela iria chegar em breve e que desanuviaria um pouco o ambiente com as suas histórias que a amiga fazia por serem leves, face aos episódios porque fora marcada a sua infância.
   Á frente de Laila, estava uma universidade com o nome de um dos maiores poetas portugueses e atrás dela, um lago com patos. Se no lago estivessem cisnes, sabe-se lá o que Margarida poderia comentar, quando lá chegasse. Uma alusão ao bailado do "Lago dos cisnes", uma reflexão sobre a dor, a morte e a sedução.
   A verdade é que Margarida era uma pessoa peculiar devido à sua história, mas Laila não lhe ficava atrás.
   Talvez a maior diferença entre as duas é que Margarida tudo tinha guardado com paciência, esperando o dia em que poderia finalmente começar a viver segundo as suas próprias regras e vislumbrar o melhor de si. Laila, que encontrara um dia na dança o seu refúgio e o seu suporte, pouco a pouco deixara-se levar pelas regras dos outros.
   Aniquilando um pouco da dança que existia dentro de si, aniquilando-se a si mesma. Apercebendo-se da sua postura, das suas lesões, do seu sacrifício, Laila colocou a mão sobre a bolsa que estava pousada sobre o banco de jardim.
   Analgésicos, eram analgésicos o que lá tinha, mas eu conhecendo a história dela, conhecendo a história de Margarida, consigo duvidar que essa dor fosse real. Sentir-se-ia satisfeita se fosse capaz de sentir uma dor física, mas a sua principal dor era emocional, por isso, quase insanável, enquanto os problemas da sua vida não se resolvesssem.
   A miúda forte, a que fora capaz de desenvolver uma arte tão bonita como a dança, começou a falhar no momento em que tornou o seu refúgio uma obsessão e começou a fechar-se nele.
   Fora um erro grosseiro, porém praticado de forma simples e inocente. Afinal, ela nunca haveria de ser como os pais ou como o irmão e estava imune dos processos comportamentais deles.
   Margarida tinha-lhe dado esse privilégio, ou não?
   Era uma pergunta difícil de responder, porque não era um poder da garota por quem esperava salvar ou condenar vidas, mesmo que, algures no tempo, lhe tenha estendido a mão e mostrado um caminho de salvação. O caminho teria sempre de ser percorrido por ela, não numa perspectiva de dentro para fora, mas sim de fora para dentro.
   Era necessário assumir a dor, perceber o estrago que fizera na sua alma, para depois a libertar e não ser consumida por ela.
   Porque Laila não era só a menina que esperava uma amiga num jardim, era alguém cuja família magoara.
  Magoara-a talvez sem querer algumas vezes, para outras tantas em que o fizera de propósito, para prazer deles mesmos.
  Quem não conhecesse Laila podia apelidá-la de "garota estranha", mas tinha a ver com o meio onde nascera.
  Os pais de Laila eram alcoólicos e o irmão, não o sendo, acabara vertiginosamente por incorrer por caminhos paralelos que podiam levá-lo lá. Os avôs tinham sido e no meio disto tudo, alguém acabara por concluir que era um mal de família. Como se não fosse o principal mal daquela família, todos se terem precipitado por um caminho em que a dor era o seu principal prazer, a principal aliada com que procuravam destruir-se a si mesmos.
  Era impossível para a garota também não a sentir como uma companhia.
  Porque era complicado viver-se assim, era complicado ser-se Laila. E podia até prever que a vida de Margarida era, na mesma, complicada, não por estes meios, mas por outros. Porque resistia aos mecanismos de dor que a deviam consumir, a dor de Margarida parecia menos verdadeira, aos seus olhos.
  A amiga que não estava com os pais há sensivelmente 10 anos e que, todos os dias, rezava (porque era crente) para os voltar a ver. Que esperara até à sua emancipação e agora, vivia cheia de documentos atrás a tentar perceber o que acontecera nestes últimos 10 anos aos seus amados pais.
   Á primeira vista, Margarida e Laila não podiam ser mais diferentes, não havia amizade possível entre elas, era para chocarem de frente.
  E haviam chocado, Laila quisera o confronto. Mas, não o suficiente para não se encontrarem na sua humanidade similar.
  Colegas de escola desde os doze anos, a primeira coisa que chocara Laila fora a esperança de Margarida.
   Era como se a miúda não se enxergasse. Tinha sido retirada dos pais por alegadamente viver na miséria. Pois, fora para a miséria que vira Margarida lutar, dia após dia, para lá voltar.
   A verdade é que ela, mesmo proibida de os ver, viveria sempre com o intuito de fazer 18 anos para, por fim, se reencontrar com eles e dizer que nunca os esqueceu.
  "Quando chegar a hora de veres os cotas, eles já estarão no caixão", dissera Laila à amiga por quem hoje esperava, um dia antes de ela lhe estender a mão.
  E, na circunstância em que o fez, também fosse estranhíssimo para outra pessoa, ainda para mais para um adolescente ou pré-adolescente, conceber que ela precisava de ajuda.
  Nem ela mesma entendeu, no momento, o abismo para onde se poderia ter atirado.
  Laila estava prestes a trair a melhor amiga e a si mesma, quando Margarida a resgatou do seu mecanismo de dor.
  Fora uma tarde complicada, precedida de uma manhã horrível, como pode ser horrível uma manhã em que tens de lidar com o que uma patente cirrose pode fazer à tua mãe. Adormecera com os gritos dos dois, perturbados pelo efeito do álcool e acordara com a mãe, vomitando vinho e sangue.
  Assustador? Já fora! Já fora muito, mas, naquele momento, já fazia quase parte da sua rotina diária. Não a fazia sofrer menos por isso. Porque, uma das perguntas que mais se fazia era: onde poderia aquela situação ir parar?
  Depois, foi para a escola. Roubou cinco euros a uma garota que apanhara distraída a falar numa rede social em vez de prestar atenção às aulas e assegurou o seu almoço.
  E sentiu uma tristeza profunda ao entardecer. Ignorou que não era uma tristeza só de agora, mas a soma de muitas tristezas juntas.
   Baldou-se a uma aula e foi dar passas num cigarro para trás da escola, com o que muitos chamariam de más companhias. Era para relaxar um pouco.
   A melhor amiga e o seu namorado também estavam lá. A melhor amiga dava uma passa no cigarro e depois, colocava-lho na boca para que o namorado o fizesse também.
   Laila quis, naquele momento, ter alguém em quem se grudar, para partilharem juntos as faltas de ânimo que os afetassem. Lembrava-se de ter pensado isso, momentos antes de ter feito a asneira.
  Uma Laila rebelde diria que a culpa tinha sido da melhor amiga da época por se ter levantado e ido embora, mas ninguém a tinha colocado no colo do seu namorado, ninguém a obrigara a beijá-lo, lambê-lo, fosse o que fosse.
  De um momento para outro, haviam resolvido naufragar juntos, numa dor intensa que os consumia.
   Levar porrada ter-lhes-ia dado o mesmo prazer que haviam conquistado com aqueles beijos.
  E sei que é um conceito um tanto complicado de aceitar, mas Margarida tinha-o percebido logo à primeira vista.
  Explicou-lhes mais tarde como o detetara, quando finalmente lhes pediu que parassem. Eles demoraram a assentir ao pedido. Depois, com a revolta que os levou contra Margarida, ameaçaram bater-lhe se contasse a alguém. Foi nesse momento que a garota começara a falar e eles começaram a perceber que havia alguém que os percebia melhor que eles próprios.
  Falara-lhes de dor, da dor que sabia que os consumia, da dor que os levava à perdição, mesmo parecendo para a maioria dos que os cercavam que eles nunca tinham experimentado alegria ou excitação igual. Era importante também esta última parte para a dor sentida ser maior.
  Na verdade, para chegar ao cerne da questão, os outros que não os percebiam só precisariam de olhar para si mesmos, a ampliar o seu próprio comportamento a outros campos.
  Estavam por trás da escola. A maior parte das pessoas estava a fumar, algumas tabaco, outras ganza. Viviam num caminho de perdição, de afastamento deles mesmos.
  Margarida fora lá parar por engano. Porque, alguém decidira que seria divertido gozar com a garota inocente e contida que ela parecia ser.
   Mafalda era o nome desse alguém, uma miúda que se mexia seguindo a sequência de passos de dança e que estava sempre à procura de se mostrar superior aos outros. Mais entendida, mais madura, mais mulher, com os mesmos catorze anos de Margarida e Laila. Tentava esconder a forma como se sentia inferior, porque o sonho da dança nunca fora dela, mas da mãe e ela nunca estava à altura do nível elevado que a sua progenitora pretendia. Também ainda não encontrara a dança pelo caminho, naquele momento só treinava passos de dança, sem qualquer emoção e tendo em vista a perfeição técnica, duas vezes por semana.
   Incitou Margarida a ir pedir uma caneta aos "marmelos" que estavam escondidos na entrada do edifício em ruínas e abandonado que um dia servirá como um balneário quando as aulas de Educação Física daquela escola eram dadas ao ar livre e não dentro de um pavilhão. Dizia ela que, mesmo que não fosse possível vê-los dali, existiam sempre ali pessoas a descansar e que ajudariam sempre uma menina simpática como ela, um anjinho incapaz de fazer mal a uma mosca.
   Margarida deixou-se levar, não porque fosse aquele anjinho de que Mafalda falava, mas porque viera da rua, ajudara moradores de rua (crianças e adultos) a encontrar o seu rumo. Não conseguia fugir ao seu instinto primário de ajudar quem precisasse de ajuda ali mesmo, no sítio em que se encontrava agora, naquela escola.
   Queria provar a Mafalda que não havia razões para ignorar aquela zona da escola, para a considerar assustadora, nem para ignorar quem lá se encontrava. Que podia falar tão civilizadamente com eles, como falava com ela, porque, no fundo, ocupando lugares diferentes na sociedade e dentro da comunidade estudantil, fora nos mesmos erros que se haviam precipitado.
   Aproximou-se de Laila e Ricardo, os dois demasiados envolvidos nos seus beijos penosos para perceberem o que se passava à volta.
   Margarida tocou no ombro de Laila e abanou-a. Colocou as suas mãos como barreira entre os dois corpos e de cócoras, como que anunciou:
   - O meu nome é Margarida. Sou do vosso ano. Vim buscar uma caneta.
   Ricardo foi indelicado. Empurrou-a e questionou aborrecido:
   - Não vês que estamos ocupados?
   Margarida riu-se:
   - Consigo ver que estás ocupado e consigo ver também que estás ocupado com a garota errada! Ou não era a Daniela até umas horas atrás a tua namorada?
   Ricardo riu-se:
   - Namorada que se preze não deixa sozinho o seu namorado e dá à sola para ir para a casinha dos papás. - e reivindicando o que era seu, afastando-se de Laila e batendo no peito - Ela deveria saber que não há nada a esperar dos cotas. Os cotas são porcaria! O futuro dela sou eu, não eles! Só eu lhe posso dar segurança!
   Foi a vez de Margarida se rir, continuando na mesma posição.
   - Não sei se ela se sentirá muito segura, depois de saber o que se passou aqui hoje.
   Laila riu-se, em inquieta despravação.
   - Tu não lhe irias contar! Não serias burra a esse ponto!
   A garota resolveu ignorar, por aquele momento, a ameaça. Levantou-se e afirmou:
   - Eu não quero contar! Só o farei se for obrigada a isso! Espero conseguir a vossa confissão perante ela, antes disso.
   Foi Laila a responder, desta vez:
    - Podes esperar, sentada! Sabes lá se ela não o merece! Nem sequer a conheces! Nós somos as pessoas que melhor a conhecemos dentro da escola e resolvemos colocar-lhe os chifres. Devias pensar nisso!
   Margarida indagou para os dois:
   - Não me parece que nenhum de vocês esteja apto a conhecer os outros ou a protegê-los, enquanto não quiserem libertar-se da dor que vos atormenta. Caso quisesses enfrentar essa dor, serias os primeiros a condenar o vosso acto, a pará-lo e a confessá-lo! Vá lá, sejam honestos: porque estão assim, porque fazem tal coisa? É porque gostam um do outro ou porque a vossa amiga vai ter afecto de seus pais e vocês não podem fazer o mesmo, não tem pais capazes disso? Uniram-se um ao outro em busca de afecto e nenhum sabe bem o que procura, porque não o tiveram, pelo que se fazem companhia, enquanto se destroem juntos. É isto que eu vejo. Estou enganada?
  Laila defendeu-se:
  - Claro que sim. Ou, por acaso, conheces os nossos pais?
   Margarida sorriu com alguma doçura para a garota que estava à sua frente. Ela não se aperceberam do que fizera. Sem dúvida, não se apercebera. Não se apercebera que ao dizer aquilo não negara o próprio mecanismo de dor em que estava mergulhada, não desmentira ou ficara estupefacta face ao que lhe fora revelada. Apenas defendera a sua pele, tentara mostrar que não era possível no seu caso, mas demonstrou conhecê-lo.
   Margarida respondeu da seguinte forma:
   - Não conheço os vossos pais, mas conheço-vos a vós. Não intimamente, não ao ponto de conhecer a vossa história, mas suficientemente bem para saber que o caminho que trilhais não é o certo! Consigo observá-lo, mesmo estando distante de vós, porque já o vi muitas vezes a sucumbir outras pessoas. É algo humano, a proteção humana, o desvaneio humano que destrói a própria Humanidade, algo sobre o qual preciso que abram os olhos!
   Ricardo constatou, falando da sua sexualidade:
   - Olha para nós, Margarida, estamos muito mais acordados do que tu. Deita-te aqui connosco se quiseres, há espaço para mais um. Ainda te ensinamos algumas coisas de graça!
   Margarida acercou-se de Ricardo.
   - Não há nada que me possas ensinar de especial valor, enquanto achares que viver na dor é o caminho. Que destruíres-te assim é o caminho!
   Laila riu-se, entrando na mesma onda de Ricardo.
   - Agora, os beijos destroem. Estás mesmo ultrapassada, Guida querida.
   A garota continuou, como resposta a quem a desafiava:
   - Eu sei o que estão a tentar fazer. É compreensível que o façam. Defendem a forma como vivem, desviando as verdadeiras atenções do que se está aqui a passar. Porque, se eu me for daqui embora sem ter transmitido nada de importante e sabendo a verdade, de certa forma, vocês terão ganho. Simplesmente, porque também me conseguiram deixar mais infeliz. Podem descrer ainda mais da Humanidade.
   Laila advertiu, nervosa, ansiosa, querendo esconder, não sabendo do quê. De certa forma, tinha medo que a conversa fosse parar a assuntos familiares:
   - Não há nada para ganhar ou perder! Estás simplesmente a ser patética e inxerida! Deixa os outros viver em paz! Nós agradecemos - e olhando para o então namorado da sua melhor amiga - não é, Ricardo?
   - Sem dúvida, minha doce Laila. - respondeu o rapaz.
   Margarida foi paciente. Ia explicar passo a passo a verdade e que depois, cada um fizesse com ela o que quisesse. Esperava que tomassem a decisão certa.
   - Sabem, eu vivi na rua dois anos. Sei bem do que estou a falar. Não estou a romantizar nada, nem a exagerar. Mas, olho para vós e vejo o início de um caminho sem retorno. Porque, não são os vossos beijos ou lambidelas que me incomodam, mas a vossa traição e o que a causou. Que não é amor, não é afecto, é antes como se vocês fossem parceiros num crime. Vocês os dois escolheram a mesma maneira de viver a vida. - e após breves instantes de silêncio - Não era preciso ver o que vi para perceber isso, bastava-me olhar para as beatas dos cigarros no chão. Ninguém fuma porque está feliz, porque isso o deixa feliz. Isso só são respostas superficiais que servem para iludir quem se expuser à tua ilusão. Fumam exactamente pela razão contrária, porque não se integram, porque sentem dor. Vem de casa com a dor, algo excruciante, vossa companheira de viagem de longa data e não conseguem libertar-se dela, nem aqui na escola. Apesar de ser o desejo de não a voltar a sentir o que vos condena. Querem ser fortes, mas são apenas rudes. Querem vencer, mas deixam-se ir com o primeiro que aparece, vivendo o que estão habituados a viver. Um crescendo de dor que vem de casa e continua na parte de trás de uma escola. A primeira passa pode ser até inocente, mas depressa se apercebem que estão apenas a fazer o que sempre fazem, a viver com dor e para a dor. Não conseguiram dizer "não" ao vosso amigo que vos ofereceu tabaco que não queriam, porque vos faria mal à saúde. Porque, estão silenciados pela violência que vivem fora daqui, o vosso "verdadeiro eu" passa a viver recluso, num qualquer canto da vossa alma. E depois, vem a dor, uma dor ainda maior do que aquela que inicialmente traziam e a procura por uma dor tão intensa que extermine a vossa capacidade de sentir. Para que nunca mais voltem a sofrer novamente, como sofrem agora todos os dias. Num determinado momento, a dor tornou-se, para vós, um prazer e um caminho a seguir.
   Laila ficou meio perturbada com aquelas afirmações. De certa forma, revelavam um lado de si que ela não queria mostrar, nem muito menos enfrentar. E Margarida não sabia toda a verdade, não a poderia saber de maneira alguma, era a parte da sua história pessoal que ela preferia ocultar dos demais. Um patamar de desilusão em que Ricardo não a poderia acompanhar. Ora, não?
   Olhou para ele e depois, para Margarida. A verdade é que nem sequer sabia quem era realmente o rapaz que estava a beijar. Apenas sabia que o tinha feito e repetido e que a sua boca sabia a tabaco e capuccino. Que não gostava assim tanto dos beijos dele como deveria e que era profundamente imoral o que fazia porque ele era o namorado da sua melhor amiga.
   Respondeu à garota que os encarava de frente, da seguinte forma:
   - Acho que estás a pôr num saco demasiado grande as nossas vidas, quando sabes tão pouco sobre elas! E o que dizes, para mim, não faz sentido.
   Margarida olhou Ricardo e Laila. Ansiedade era o que via!
   - As pessoas são aglomerados de muitos acontecimentos que passam por elas. Tudo o que nos acontece nos marca! Claro que há momentos que nos marcam mais do que outros. Por exemplo, acredito que a primeira vez que a vossa mãe ou o vosso pai vos bateu, esse foi o momento em que bater vos doeu mais. Ao longo dos anos, sem outro teto em que abrigar a cabeça e tendo de conviver com eles dia após dia, os murros, as bofetadas, as palmadas tornaram-se uma banalidade, uma rotina no vosso dia-a-dia. Aprendeste a proteger-vos emocionalmente disso, do que deveria doer mais fisicamente, mas resolveu desafiar as leis da física e da mecânica e doer mais do que tudo no vosso interior. Aprendeste a proteger-vos, mas não da maneira certa, apenas aplicando de outra forma os ensinamentos que vos davam dentro de casa!
   Laila ripostou:
   - Os meus pais nunca me bateram! Se tem um problema, é outro! De resto, são bons pais!
   Margarida focou-se em Ricardo e respondeu a Laila, com o corpo virado para o namorado da melhor amiga dela:
   - Pois, acredito que tenhas apanhado pouco! Mas, não estaria aqui alguém tão tenso e sentado de maneira tão torta, se não se identificasse com as minhas palavras. Quanto a ti, bateram-te, então, mais com outros métodos. São os mesmos métodos que tu e o teu irmão estão a utilizar para destruir a vossa vida ou houve mais originalidade?
   Laila fingiu-se ofendida e contrapûs:
   - Não sabes nada sobre nós, nem sequer pertences ao nosso grupo! Mete-te na tua vida e deixa-me de merdas!
   Margarida olhou para a garota à sua frente de um jeito cúmplice e indagou:
  - Eu sei que não pertenço ao teu grupo. Mas, olha bem para ti. Achas que pertences a alguma coisa? Estás a trair os teus, estás a trair a tua melhor amiga com um qualquer e achas que pertences a um grupo. Não consigo imaginar pertencer a um grupo em que quem nos trai é quem nos devia amar e proteger.
   Ricardo resolveu interromper:
   - Eu não sou "um qualquer".
   A miúda não se retraiu:
   - Mas, vês-te como tal e comportas-te como se fosses um, dando a ilusão às pessoas de que podem fazê-lo também, que não te vão magoar com isso. Para a Laila, sei que, pelo menos, que o lugar que tentas ocupar agora poderia ser ocupado por "qualquer um" que aceitasse aliar-se à dor e destruir-se com ela. Mas, não és "um qualquer", nisso estás certo, porque ninguém, com um pedacinho de bom coração, é "um qualquer", será sempre "alguém", uma pessoa que devemos valorizar. E eu acredito verdadeiramente que a tua alma ainda tem conserto, ainda não foi completamente consumida pela dor. - e passado uns instantes - Disseste há um bocado e bem, Laila, que não pertenço ao teu grupo, nem ao do Ricardo. Tirando a parte de que nem vocês pertencem a um grupo, será que  aceitam a minha mão estendida, que é a mão da própria Humanidade que vos quer levantar, arrancar do chão e libertar do vosso vício em relação à dor?
   Ricardo riu-se.
   - Pareces um pastor evangélico a falar, nada mais! Nem sequer tu sabes o que dizes, minha!
   Margarida retorquiu:
   - Deve ser, então, porque sou católica. Mas, deixa de tentar mudar de assunto. Eu consigo contar-te a tua história, se quiseres. De um jeito rudimentar, claro e não sou nenhuma bruxa, nem consigo ler sinas. Vejo apenas dois seres humanos como eu, à minha frente, que pela minha Humanidade consigo compreender, ver que se perderam e desejar colocá-los outra vez no caminho certo. Não sou melhor do que vós, também erro. Mas, seria muito mau ver-vos errar da maneira que todo o mundo espera que vocês errem. - e apontando para Laila e Ricardo, enquanto falava - Sei três coisas: que os teus dois pais ou apenas um deles (a tua mãe ou o teu pai) te batiam, Ricardo; que os teus pais devem beber mais do que deveriam, Laila e o teu irmão está a  entrar pelo mesmo caminho de dependência que eles e que tudo isso vos fez sofrer. Podem dizer que não. Podem tentar ignorar a dor, para fingir que são fortes, quando, na verdade, ainda se encontram no patamar de quem é simplesmente rude. Mas, ainda não chegaram lá, consigo vê-lo, porque para se estabelecer uma força interior tão forte capaz de fazer frente a tão grandes problemas, teríeis de vos confrontar com a dor, de a libertar de vós. Só que ninguém vos ensinou isto. A Humanidade peca por fomentar sempre os caminhos mais fáceis. Tornar-se forte é um processo complicado e completamente oposto ao que vocês estão a seguir, mas é o único caminho possível de ser realizado para mantermos a nossa alma íntegra, inteira. - e após um breve período de silêncio - Não dá para tratares de uma zona do corpo com gangrena do que encarando a gravidade da lesão e retirando-a do teu corpo, primeiro. De outro modo, o tecido afetado iria contaminar o tecido bom e destruí-lo também. Não é por vos beijareis que sabeis dar o amor que os vossos pais não vos conseguiram dar ou que conseguia colecionar amizades ou amores. Para perceber isto, basta olhar para o exemplo dos vossos pais. De alguma forma, eles tiveram de vos fazer e o ato em si, o ajuntamento em si sem mais nada não os fez progredir. Continuaram os agressores a achar-se inferior que os outros, a reclamar território, a atormentar quem pudessem para silenciar o seu próprio tormento. E os dependentes a deixar de procurar o álcool para se anestesiarem e desligarem do mundo. Ambos requerentes do mesmo processo que vós, esperando perder a capacidade de sentir.
  Ricardo suspirou:
  - Lá estás tu com charadas!
  Na verdade, ouvia tudo o que Margarida lhes dizia e só desejava que aquilo acabasse depressa. Tinha estado aos beijos com uma garota, traído a namorada, mas pouco atingira o seu coração como as palavras daquela miúda começavam a atingir, naquele momento.
   Margarida queria-o fazer olhar para si mesmo, impulsionava-o nessa direção e tudo o que Ricardo tentará fazer nos últimos momentos fora fugir de si mesmo. Por isso, representava tanto e conseguira estar com duas garotas diferentes em menos de meia hora.
   A miúda olhou para ele, então, antes de olhar para Laila, novamente.
   - Olha para ti, olha como estás sentado. Lembraste da primeira vez em que te bateram, Ricardo ou sempre houve agressões? Sempre fez parte da tua rotina? - e tocando-lhe no ombro - Eu sei a resposta. E talvez a razão para não te lembrares seja aquela porque menos esperas: pelo tanto que emocionalmente te tocou. Mais do que pela tua idade. Não te lembras de quando tomaste conhecimento da primeira bofetada, do primeiro pontapé, porque te doeu de mais, doeu dentro de ti e o teu corpo e cérebro resolveu proteger-se dessa realidade. Aperceberias-te dela com o tempo, seria preferível a sentires na hora toda a dor dessa agressão. Com o tempo, conforme percebesses que levares era uma coisa ruim, cruel, conseguirias tornar-te nesta versão mínima de ti mesmo que hoje enxergo, que é ires morrendo aos poucos. Como os teus pais, fizeram com eles mesmos. Conforme te foste apercebendo que não conseguias combatê-los, começaste a viciar-te no modo de vida deles. Dor para ti que para os seres humanos, quando nascem e são inocentes, é algo que os repela, tornou-se o teu vício e o teu prazer. Era a guerra que poderias ganhar. Muito mais fácil de ganhar do que qualquer luta cuja recompensa fosse a felicidade verdadeira. Não tinhas nascido no lado certo da sociedade, na família certa para seres feliz. O objetivo básico da Humanidade não parecia em ti concretizável. Porque subir treze roles de escadas para a pessoa saudável é difícil, mas para alguém com insuficiência respiratória é praticamente impossível. Mas, vê o que eu não disse nesta frase. Não falei do tempo disponibilizado para subir estas escadas, nem do método para o fazer. Garantindo-se a vida da pessoa com insuficiência respiratória, administrando oxigénio, dando-lhe tempo, deixando-a até rastejar, porque não haveria esta pessoa doente de subir os treze roles de escadas? A pessoa que apelidei aqui de "saudável" também só chamei de "saudável", porque não tem nenhuma doença conhecida. Esqueci-me de equacionar as doenças desconhecidas. O que me garante que não caía para o lado com um enfarte, ao fim do primeiro role de escadas? Tu, no início, podias ter até algumas limitações, mas não estavas sabotado à primeira. A natureza não te sabotou em ser capaz de sentir e pensar. Tu foste quem, no meio da caminhada, se sabotou a si mesmo. Batiam-te duro, ias para a escola (porque tinhas esse privilégio), há aqui clubes de arte (dança, escrita, pintura), passaste-lhes à frente. Dia após dia, sem pedir ajuda, sem dar outro rumo à tua vida, sem te libertares da tua dor. - e passado uns instantes - Vou falar da tua história, do que adivinho nela. Um dia, chegaste aqui, vinhas magoado, cansado, infeliz. E parecia tudo mais ou menos igual a ti, embora se rissem e passassem uma imagem de rebeldes, o sistema que os domava era outro, não o da rebeldia. O facto de não passarem uma imagem de fracos te seduziu. Pensaste para ti mesmo: " eu consigo ser igual a estes tipos". Impôr respeito como eles impôs. Foi um acto singelo, foi passar a ser simpático com quem te repelia. Cromo, sabias bem que ias sofrer. Arranjaste o mesmo na escola que tinhas em casa. Só que estes eram mais moles, não deixavam marcas a nível físico. Era mais a nível psicológico. Mais destrutivo até. Era estares cercado de amigos, entre aspas e te sentires desconfortável no meio deles. Era fumares, não por interesse (porque vamos ser práticos, não é o sonho de infância de ninguém fumar e não existe nada de interessante em puxares fumo para os teus pulmões), mas para poderes continuar a pertencer ao grupo. Para não seres largado até por aquelas pessoas que pareciam as únicas capazes de amar alguém tão doente, estranho e infeliz como tu. Perdias a tua inteligência por um instante, ignoravas a parte de fazer mal à saúde e tinhas companhia. Na primeira vez, não pensaste que fosse doer tanto, doer tanto pôr-te de lado. Mas, talvez o tabaco anestesiasse a parte emocional, sabesse lá. Não anestesiou no momento, não te fez sentir mais seguro. De um momento para o outro, só parecia que estavas na tua zona de conforto. Em casa, na escola, era sempre a mesma bosta. Menino Ricardo sem se revelar, sem opinar, sem reclamar, seguindo uma corrente que a bom lado não ia parar. Foste-te apercebendo que farias qualquer coisa por aqueles mafiosos. Porque a culpa por te baterem em casa devia ser tua. Não te parece, Ricardo? Devia haver algo completamente horrível em ti para os teus pais te baterem e os pais dos outros bacanos não fazerem o mesmo que os teus. Inconscientemente ou conscientemente, sei lá, assumiste essa culpa. A culpa que te levou a ser demasiado permissivo em casa e cá fora. Tentaste desesperadamente não aborrecer os teus pais para que não houvesse motivos para que te batessem e aos rufias, grupo ao qual pertences, agradar, para que isso nunca chegasse a acontecer. O miúdo crescido a comandar a situação. Mas, naquele momento, não era para seres miúdo, muito menos crescido, apenas um menino com sonhos por realizar. Em vez disso, eles iniciaram-te no caminho da perdição. Estavas tão necessitado de te perdoares a ti mesmo que seguiste caminho com eles. Direto, daqueles expressos em que não mudas em nenhuma central de transportes. Não encontraste nada do que querias, deviam ser tão parecidos a ti que padeciam dos mesmos problemas, sem perspectiva de resolução. Começo pelo tabaco, porque é o erro mais básico. Muitas pessoas de bem o cometem. Tabaco é uma droga como outra qualquer, só que dizem com efeitos mais ligeiros. É mais fácil do que começar por uma droga pesada ou agredindo os indefesos, mais socialmente aceite. Fumaste e sentiste-te longe de ti, mas perto dos outros. De repente, é como se partilhassem um segredo. O segredo que consumiu mais um pouco da tua alma. É que depois da dor de te teres submetido a uma merda destas, veio um prazer enorme. É que, de repente, sentiste-te colapsar, silenciado. A tua essência silenciada. Não conhecias a maneira de mudares isso. Já não olhavas as coisas com essa perspectiva, com a de um fim verdadeiramente feliz. Mas, o fingidamente feliz e confiante era possível. Era possível transformar-te numa versão má de ti próprio, era possível seres venerado dessa forma. Quem sabe, suprimires desta forma um pouco da culpa que sentias. O teu prazer veio da dor, porque a dor orientou-te num caminho. Talvez não pudesses ser a melhor versão de ti mesmo. Mas, se um caminho nos é bloqueado, porque não experimentar outro. Porque, não tornares-te numa versão ruim de ti mesmo? A necessidade de pertença seria anulada e terias finalmente controlo sobre a situação. Não tinhas direito a marcar na agenda o dia e a hora da próxima agressão, mas sabias que ela vinha a caminho e isso deixava-te feliz. Assim, como te deixou feliz saber que fumar não seria quase de certeza a tua última asneira. Haveria a droga para causares sofrimento a ti mesmo e sufocares um pedaço da tua alma com isso, aquela que morre ao sabor dessa dor. Há as traições, os roubos, o tráfico para causares dor aos outros e, na certeza desse gesto, causares dor a ti mesmo, porque és incapaz de não seguir o protocolo. Há um prazer nessa dor que cada caminho desviante te dá. Porque há uma dor de base que não libertaste, nem trataste. As outras dores que causas a ti mesmo deviam silenciar a antiga, o domínio que encontras em destruir a tua vida devia trazer-te paz.  Mas, dor nunca cura nada, esconderes-te dentro dela muito pior, porque é como quereres fugir de um lobo, juntando-te a uma alcateia. A alcateia vai proteger o lobo e o lobo que antes era solitário e tinha um certo receio de te enfrentar, encontra coragem para te desfazer ao interagir com os seus semelhantes. Mas, tu já deves ter percebido isso. Acredito que agora, a única coisa que queiras é nunca mais sentir. Na tua cabeça, alcançá-lo-ás quando atingires a tua dor máxima, aquela que dizima, aniquila a tua alma. Não te digo que isso seja mentira. Tornar-te-ás um criminoso se continuares neste caminho e os criminosos não se caracterizam por sentirem muita coisa. Mas, pensa agora enquanto a dor ainda não corrompeu por completo a tua alma. Achas que a tua existência valerá alguma coisa, nessa altura? Para os outros e principalmente, para ti?
   Ricardo estava confuso. Margarida falava de mais, mas o que o estava a chatear não era essa parte, era a forma como o que ela dizia parecia bater certo com a sua história. Não sabia como fugir dali, proteger-se de encarar a realidade. Tinha de continuar a trilhar o seu caminho de dor, mas cada vez se tornava mais difícil.
   Apenas respondeu:
   - O que vale a minha vida, agora?
   Chateou-se consigo mesmo por ter respondido assim, mas as suas defesas estavam a baixar.
   - Por agora, ainda tens hipótese de te tornares alguém melhor, alguém cativante pela positiva, uma inspiração para os teus.
   Foi Laila a indignar-se desta vez:
   - Sim, porque os nossos tem sempre problemas, não é?
   Margarida sorriu.
   - Não, porque estão mais perto de vocês e vocês os entendem melhor. O vosso problema não tem a ver com bairros, com meios ambientes, mas com a própria alienação humana. O ser humano perde-se nesta terra, neste mundo, da sua própria essência, porque a sua alma não pertence a este mundo.
   - Mais charadas, mas nada prático que nos mostre um novo caminho, nem nos retire os erros que já cometemos.
   Margarida não se retraiu:
   - Eu gosto de escrever, mas empresto-vos a dança, por ser mais intuitiva. Já fiz isto antes e correu bem. Dou-vos a conhecer o breakdance ou partes dele. Podemos começar por Top Rock.
   Laila riu-se.
   - Sim, porque é mesmo esse o nosso problema, não saber dançar e Hip Hop em particular. É isso que vai fazer os meus pais pararem de beber?
   Ricardo ficou surpreendido, não conhecia este aspecto da vida de Laila e o facto de ser ela a admiti-lo não deixava margens para dúvidas.
   Margarida respondeu:
   - Saberes uns passos não faz de ti uma dançarina. Para pararem de beber instantaneamente, só se lhe tapares a boca. Mas, isso não faz retrocesso no mecanismo que os levou ao álcool, não afeta a dependência emocional conferida por eles ao álcool. Contudo, se é uma experiência de família e os teus pais aprenderam com os teus avós a empoleirar as suas dores na bebida e o teu irmão está a aprender com os teus pais o mesmo estilo de vida, quão bom não será haver alguém submetido ao mesmo mecanismo que conseguiu manter-se à tona e proteger a sua essência? Não fugas da bebida e te coloques sobre o efeito de outras fontes de dor. Que é mais ou menos a forma como vives agora! A tua traição face à tua melhor amiga demonstra isso, derespeito por ti mesma. E o derespeito por ti mesma provoca-te dor. A mesma coisa que os teus pais fazem quando bebem. Fazem-no para se anestesiar e pela dor que sentem, quando o efeito da bebida acaba e percebem que falharam consigo mesmos. Reabilita-te e mostra-lhes outras formas de lidar com a dor, quando te redescobrires!
   - Eu não quero dançar Top Rock! - disse Laila - Só se forem Power Moves!
   A expressão da garota, de Margarida abriu-se para um sorriso rasgado. Sentiu que Laila estava a equacionar a hipótese que ela propusera.
   Sabia bem porque ela queria começar pelos Power Moves (parte em que os dançarinos parecem parecem ginastas) e não pelo Top Rock (em que o dançarino só pode fazer os passos do breakdance que não envolvam ir ao chão.
  Caso fosse para correr mal, correria mais depressa, porque para os Power Moves seria bom ter apoio técnico.
  Era o seu coração a equacionar a hipótese e a sua mente a arranjar uma artimanha para voltar à sua zona de conforto, para o mecanismo de dor que lhe dava prazer e consumia a sua alma. Era ela não o dizer, mas acreditar que ia falhar muito rapidamente. E garantir o seu sofrimento para quando falhasse a tentar. O impacto de falhar depois de se terem apercebido da maluquice que era seguir o caminho de perdição que insistiam em trilhar ia fomentar neles que de facto tornarem-se maus, medíocres era o único futuro possível.
   Margarida fez Laila e Ricardo se aperceberem disto e ainda acrescentou:
   - Quero que comecem pelo básico e que no básico coloquem a vossa alma. E depois, tentamos o impossível, seja Footwork, Power Moves ou Battles de Top Rock. Mas, não tentem logo o mais difícil, sem aprender a colocar a alma no básico. Porque, se não, ides entrar em pânico por causa da técnica, sem perceber o poder libertador deste estilo de dança em particular e da maior parte dos estilos de dança. Usando esta experiência apenas para argumentar que a arte não é para todos, que a tentasteis, mas a vós não vos serviu. Porque, treinaste técnica vazia de alma. Na verdade, existe muita gente por aí que faz isto e alguns até conhecidos. Expôs passos de dança, sem entender o tamanho e a importância da cultura que exprimem. Não se preocupando com a parte de que a arte levou membros de gangues a deixarem a vida criminosa e focando-se apenas no que membros de gangues eram antes da dança. Tentando ser tão durões como eles. É fácil a resposta: os membros de gangues antes da dança eram criminosos, pessoas perdidas. Porquê tanta atração pela perdição? - e passado uns instantes - No vosso caso, fazer o mesmo que as pessoas que descrevi anteriormente fazem é seguir o exemplo dos vossos pais a outro nível, sempre agregados ao mesmo mecanismo causador de dor. É como quando a tua mãe ou o teu pai ou mesmo o teu irmão de quem andas sempre em cima dizem que vão parar de beber, Laila. Eles deixam de beber por uns tempos, mas dispensam ajuda especializada. Dizem: "Sozinho, eu consigo". Eles põe-se a perder, porque o que nunca permitiram é libertar-se da sua dor. A bebida é um problema para eles, mas o que é verdadeiramente problemático é não encararem a dor que os levou a beber, aquela que intensifica cada dia com a bebida e que deve destruir a sua alma com o tempo e aniquilar a sua capacidade de sentir, quando atingir o seu expoente máximo. Vivem com ela mesmo quando estão tentam mudar de vida e por isso recaem, voltam à dependência, que nunca ficou verdadeiramente adormecida e acrescem ao seu estado inicial, a dor de terem falhado na reabilitação. Ou quando os teus pais, Ricardo, te batem, juram não voltar a fazê-lo, mas como não se distanciaram do mecanismo de dor que dá prazer e em especial do mecanismo que lhes transmite dor através da dor dos outros e por isso prazer, voltam à mesma violência, passado pouco tempo. E falhar no processo torna-se para eles uma recompensa. Não façam isto com o breakdance, não o utilizem como meio de falha, não façam isto com vocês mesmos. Só com uma alma plena é que é possível encontrarmos a verdadeira felicidade. Através do amor, da amizade, da alegria, nós conseguimos elevar, tornar-nos mais fortes. O desprezo por nós mesmos, a criminalidade, os mais sentimentos, condenam-nos a uma infelicidade extrema. Tornemo-nos pessoas malvadas, suicidas ou ficando pelo caminho das duas coisas. O que pode ser mais cruel para nós, para os outros e para o mundo do que não nos tornarmos aquilo que nascemos para ser, o projeto que Deus desenhou para nós.
  Laila e Ricardo estavam, nesse momento, separados. Olharam um para o outro e tremiam ambos, pela incapacidade de negar a veracidade do que ouviam.
   Ricardo falou pelos dois:
   - Já fizemos merda, hoje!
   Margarida apenas respondeu:
   - Pois, amanhã não a voltes a fazer!
   O garoto sorriu:
   - Amanhã, já não tenho namorada!
   - Podes vir a ter uma amiga! Na verdade, olhando as vossas relações, é fácil perceber que são superficiais. Vou-te dizer porquê! Porque se tu, Ricardo, amasses a tua namorada como um homem deve amar uma mulher, não terias posto o mecanismo de dor acima da felicidade dela, terias cuidado do coração, mesmo ela não estando por perto para o proteger. E se tu, Laila, amasses a tua melhor amiga como este título o sugere, terias feito o mesmo. Mas, ambos não chegaram ao nível ainda dos sentimentos profundos. Também não tiveram exemplo para isso.
   Laila e Ricardo levantaram-se e voltaram a tocar-se, agora para auxiliar um ao outro na caminhada.
  - Apresenta-nos, então, o breakdance! - indagou Laila. - E o Top Rock, primeiro!
   Laila estava perto do choro e Ricardo, também. Mas, nada disso era ruim. Quem chora, normalmente consegue encarar o problema porque chora. Eles nunca tinham encarado os seus problemas, porque as suas lágrimas tinham secado.
  Margarida foi, então, até junto de Mafalda e apresentou-a a eles, primeiro.
  - Esta moça não é igual a nós! Ela é da elite! O que nos queres mostrar através dela? É que os plebeus tem um pouco de dificuldade a deixara-se ensinar pela realeza. Esta moça não é alguém do breakdance. - começou Laila.
  Margarida apercebeu-se da necessidade de aclarar alguns aspectos, algumas ideias sobre o que é ser humano.
  Mafalda ficou intrigada com o facto de Margarida e os outros dois marmanjos estarem a vir na sua direção. E até preocupada!
   Será que aquilo era uma revolta contra ela? Mas, tudo o que ela pedira para a Margarida é que fosse até eles pedir uma caneta. Claro que fora para os gozar, mas se a abordarem sobre isso, negaria tudo.
   Laila e Ricardo não eram flores que se cheirarem. A Mafalda até saberia bem envolver-se numa briga com eles, mas a sua cobardia também era fonte de dor e dominava a maior parte dos aspectos da sua vida. Não podia envolver-se numa briga, porque isso poderia provocar-lhe uma lesão e assim ela não poderia sacrificar-se para realizar os caprichos da mãe.
   Deu a si mesma a vantagem de ser a primeira a falar e logo que eles, os desfavorecidos, pararam perto de si, perguntou a Margarida pela caneta.
   Esta última não se deu por achada. Disse-lhe que não fora ter por eles por causa de uma caneta, mas para ser a ponte de ligação entre Mafalda e o resto da malta e pediu-lhe que olhasse para eles.
   - Eu não tenho nada a ver com esta corja!
   Margarida riu-se e consolidou a ideia que a fez rir numa frase audível:
   - Pois, quando era para eu ir ter com eles, eram só gente boa. Agora, na tua boca, viraram corja! Mas, tenho uma surpresa para vocês todos: vocês são mais parecidos do que julgam e tem coisas a ensinar uns aos outros. - e orientando o seu corpo especificamente para Mafalda - Mafalda, tu és o exemplo do que eu não quero que eles façam com a dança. Porque, aprendeste passos de dança e até podes ser boa nisso, mas da dança não conseguiste retirar a arte. É que é só quando atingimos o patamar de arte seja dançando, escrevendo, cantando ou pintando entre outras tantas formas de expressão do corpo, que conseguimos alcançar a expressão da alma. A tua alma ainda não se expressou, se não, não havia em ti uma incapacidade tão grande de dizer à tua mãe o que sentes face às exigências dela e de perceber a tua similaridade com aqueles com quem secretamente gozas. - e passado uns instantes, desfocando a sua atenção - Laila, Ricardo, vivei a dança por inteiro e mostrai-lhe que ela se pode entregar a ela, porque se ela não for o seu desejo, será a sua própria dança a dar-lhe a força para não a tornar numa atividade de tempo inteiro. Mafalda, deixa-me mostra-lhes a partir de ti que o problema não é do sítio onde nasceram, mas do mecanismo de dor que corrompe toda a Humanidade, que te corrompe, corrói e consome também a ti. Deixa-me mostrar-lhes  como é possível alguém com uma vida economicamente mais favorável sentir-se inferior a vós. E colocar-vos no caminho certo, através do que cada um tem a oferecer aos outros.
   Mafalda não gostou nada daquela introdução. Tinha de se mostrar superior àqueles comentários e não conhecia forma melhor de não se dar por achada do que negando-os.
   - Eu sentir-me inferior a ti ou a eles? Estás louca! - retorquiu a garota - Eu estou quase a tornar-me a primeira bailarina da academia e a mais nova aquisição de uma renomada companhia de ballet. Eu não preciso de vocês para nada. Vocês é que deviam lamber o chão que eu piso, enquanto é o mesmo que vocês pisam. Talvez assim, pelo menos a vossa língua chegasse a valer alguma coisa.
   Margarida riu-se e com um gesto de empatia (um ligeiro toque no ombro), respondeu da seguinte forma:
   - Quem te ouvir até pensa que és vaidosa, que estás orgulhosa do que alcançaste ou ainda podes vir a alcançar. Mas, eu sei que não. Não o sei porque respiras, como é óbvio! Vi-te uma vez com a tua mãe. Estava a atravessar o jardim do lado em que há a academia de dança e tu estavas a sair de dentro do carro dela. Ela até se deu ao trabalho de sair também do carro para te incitar a ser melhor do que os outros, a vencê-los no seu próprio jogo. Ela sorria por te deixar ali, mas quando te separaste dela, tu não estavas a sorrir. Suspiraste até de desânimo ao olhar para a academia, mas continuaste em frente, obrigando a ti mesma a escolha deste caminho. Nem uma única vez sorriste. Não me pareceu a reação de alguém que amasse aquilo que fazia.
   Mafalda contrapôs, espantada por ter sido observada, sem se ter dado conta:
   - Há dias em que nos apetece fazer mais aquilo que nascemos para fazer do que outros.
   Margarida não se retraiu:
   - Claro, mas isso não justifica teres tido uma cara enquanto conversavas com a tua mãe e outra quando ela foi embora. A tua mãe parecia fascinada e tu uma muleta no seu fascínio, não muito feliz pelo papel que desempenhava. Depois disso, descobri que a tua mãe tinha sido bailarina na mesma academia, colocada de lado por uma lesão. E depois de falar uma ou duas vezes contigo, a minha ideia deixou de, na minha cabeça, ter o valor de uma mera especulação. A minha ideia correspondia à realidade.
   Mafalda ainda abriu a boca para se defender, mas sem sucesso.
   - Margarida, como podes afirmar uma coisa dessas? - interrogou.
   A garota não respondeu à pergunta que lhe tinha sido colocada. Não tinha porque o fazer, afinal já o tinha feito anteriormente.
  Mafalda, que passava a vida a movimentar-se utilizando passos de dança, apenas estava em negação das suas próprias fragilidades e procurava uma maneira de Margarida se enterrar nas suas próprias palavras.
   A miúda, no entanto, apenas prosseguiu o seu discurso da seguinte forma:
   - Não precisas de ter vergonha por este facto. Porque, devendo ter tanto, estás tão longe de alcançar alguma coisa. Não é um problema só teu. É um problema da Humanidade. O Ricardo e a Laila e tantos outros miúdos sofrem com isso por aí porque acabam por seguir os maus caminhos que outros programaram para eles. Para ti, programaram uma vida de sucessos e não te devias queixar muito com isto. Mas, é na concretização desse caminho de sucessos, que te magoas, que consomes a tua alma, porque quanto mais alto chegas, mais longe da tua essência te encontras. És alguém que teve muito cedo de aprender o que é ser genial, sem, no entanto, ter ferramentas para isso. Vocês padecem do mesmo mal, procuram uma felicidade falsa no mesmo mecanismo de dor. E embora a Humanidade, protegendo o seu mecanismo, possa dar mais méritos a ti, Mafalda, do que a eles, bastava-lhe deixar ela própria de ter sérios problemas funcionais, para perceber que vocês são iguais.
   Mafalda ameaçou ir embora e Laila indagou:
   - Miúda, nós já ouvimos um sermão ali e tu não o vieste travar, porque também não foste corajosa o suficiente pra nos impedir de prosseguir o caminho de merda que nos fez chegar até ele. Mas, fez-nos bem a nós, faz-te bem a ti. Topas, mana? No stress. Peace and love.
   Margarida sorriu. Não queria acreditar que Laila lhe tivesse dito aquilo, mas ficou feliz por perceber que aquele comentário não vinha da ganza. Naquele dia, tinha sido só tabaco, ela sabia. Mas sim, de um modo geral, o que ela tinha dito fazia sentido. A garota era chata, mas queria-lhes bem e se falava tanto e sentia uma necessidade tão grande de explicar as coisas é porque desejava a felicidade deles, como a sua própria. Vê-los felizes traria paz e felicidade à sua alma.
   Margarida continuou, então, para além do que Laila dissera e sem lhe dar especial relevo:
   - Eu sei, Mafalda, que te estou a expor. Mas, não o interpretes como uma coisa má, por favor. Não é de maneira nenhuma uma coisa má. É preferível a encerrares essa dor dentro de ti e permitir que ela repetidamente, de forma continuada mesmo, te sufoque. Tens de te libertar dela. Reconhecê-la, enfrentá-la e deixá-la seguir em frente. Para tu também conseguires continuar em frente, trilhando os bons caminhos. O que a arte te devia proporcionar. Porque, tu tens dor dentro de ti, colocada aí desde a primeira vez que a tua mãe te mostrou o caminho rígido que terias de trilhar para satisfazer os seus anseios; pela primeira vez em que enxergaste o sofrimento da tua mãe e não o conseguiste aniquilar, nem reduzir; pela primeira vez em que sentiste que a culpa desse sofrimento eras tu e por todas as vezes em que tiveste que ignorar a dança que podia existir dentro de ti e dominar os teus instintos mais básicos para reverter a música em apenas passos de dança.
   Mafalda interrompeu-a, irritada:
   - Não teria dedicado oito anos da minha vida ao ballet, se não quisesse aprender mais que passos de dança. O que dizes? Estás louca? Que ando a dominar a dança que existe dentro de mim? Dança é uma coisa exterior, é movimento. É complicada e nunca foi fisiológica.
   Margarida sorriu.
   - Só porque agora a tens de aprender, não quer dizer que não foi primariamente um instinto, que não é um instinto, desencadeado por uma música que nos toca a alma. É sim, mas progrediu à medida que a própria Humanidade ia completando mais anos sobre a terra. Progrediu como progrediu a própria alimentação, que começou a ter horas até para ser feita. Claro que não é algo tão mundano, vital ou fisiológico. A alimentação procura satisfazer necessidades do corpo, enquanto a dança e as outras artes procuram satisfazer necessidades da alma, a necessidade de se libertar do que de ruim a terra lhe impingiu e se elevar. - A bailarina mostrava sinais de confusão, o que fez Margarida tentar explicar-lhe a situação de uma maneira diferente: - Olha, para ti, Mafalda! A tua mãe quis que fosses bailarina e por isso, começaste a detestar a música e a dança desde muito nova. Tu não podias detestá-la, era a razão pela qual a tua mãe haveria de te amar, mas era também a razão porque ainda não te amava e não te aceitava. Porque, embora a dança nunca te fosse dar o amor que dela pretendias, se dançasses como ela queria, talvez ela chegasse a sentir afeto por ti, porque através do teu corpo, tu chegarias àquilo que ela amava. Foste às primeiras aulas de ballet e ouviste a música, mas havia tanta expectativa perante a tua performance, não a sentiste. A tua cabeça baralhada. Querias detestar cada batida porque te era imposta e ao mesmo tempo, amá-la porque talvez isso incutisse amor por ti no coração da tua mãe. Tão nova e já sabendo duas coisas: bastava-te relaxar para dançares, mesmo sem saberes os passos de dança ou podias aprender passos de dança, sem nunca chegar a dançar. Pensaste na tua mãe e na maneira como se comportava. Tentando concretizar, através dos outros, os sonhos que abandonara. Ela que gostava de se afirmar como bailarina exemplar, a um passo da perfeição, não tinha um comportamento concordante com essa categoria. Não libertara a sua dor, como qualquer bailarino faz, permitira que ela a corrompesse, lhe consumisse um pedacinho da alma e que se transcrevesse na obsessão de te fazer sofrer, para nutrir o seu próprio sofrimento, a sua dor. A tua mãe devia ser tão boa bailarina como tu foste no teu primeiro dia e o és agora, porque a evolução quando não conferes à arte sentimento é nula. Talvez com alguém a pressioná-la para que fosse a melhor, como acontece contigo. A verdade é que olhar para o comportamento dela levou a que tu própria não conhecesses o ballet. Duvidaste da dança e escolheste o caminho mais fácil. Pensaste que seria um reduzido instante de provação, que não te envolveres emocionalmente com a música te levaria a atingir os objetivos da tua mãe mais rápido. Uma dor naquele momento ao excluires-te da equação, ao excluir a dança da equação e uma rápida curva de aprendizagem para poderes fugir daqueles movimentos sem sentido. Mas, como nunca chegaste a sentir a dança dentro de ti, mesmo antes de a exteriorizares, também nunca chegaste ao nível desejado. Os professores não conseguiam explicar. Até sabias os passos, mas na hora H, faltava-te algo. Rodavam-te um pouco a perna para ficares melhor no movimento, endireitavam-te um pouco as costas e ficavam a observar o visualmente perfeito, à espera que na posição perfeita fizesses algo que os arrepiasse. E tu que tinhas um instinto ao ouvir a música que podia ser traduzido naqueles passos de dança, sufocavas-o. Olhavas e pensavas que tinha sido assim a tua primeira vez. Que era o método da tua mãe. Caminho certo ou errado, não fora um caminho escolhido por ti. E a dor que era pequena, reprimida e inclausurada, tão perto de se descobrir uma arte, tornou-se um novelo. Um novelo que sentias a necessidade de alimentar. Tinha sido escolhido por outros que morrerias de sede ao lado da fonte, mostraram-te a fonte e disseram-te: "Não é para beber a água, é para morreres a sonhar com ela." E de tal forma te incutiram isto, que mesmo quando te deram espaço para beber, não o fizeste. Começaste a gostar da maldade que te faziam, era o que de mais próximo de terias de uma partilha. Afinal, eles também tinham fontes à beira e não bebiam. Era triste e viciante aquele desafio. Dava um certo prazer definhar, com a salvação do lado. Mais do tudo, quando os outros se iam embora, sentias o amargo da tua forma de vida. Não era bom viver assim. Mas, vá lá, se não bebia com eles, também não bebia sem eles. Se fosse para morrer à sede, que não demorasse muito tempo. - e olhando para Mafalda, com olhos de ver - Já está a demorar tempo a mais, não achas? Eu acho que todos vocês, Mafalda, Laila, Ricardo beneficiariam de tentar perceber o que é beber a água. Não por desafio à autoridade, não por revolta, antes porque vocês ainda conseguem perceber o absurdo da ordem e como quem vos lha deu, está no mesmo fundo de poço que vocês.
   Mafalda tremia sem saber porquê. Sem querer perceber porquê.
   - Eu faço pontas, pliés, jetés, grande battements...
   Margarida questionou, face aos queixumes da garota:
   - O que são pontas?
   A miúda exemplificou, apesar de ter umas sapatilhas e colocar-me naquela posição a magoar.
   - Não será para todos os bailarinos igual, mas com as pontas há quem tente alcançar o céu. Retificamos a postura, esticamo-nos todos e exemplicamos com o nosso corpo o que a alma quer, a elevação. Para de pensar que quem fez isto pela primeira vez o guardou por causa do movimento. É patético pormo-nos de pontas, dá cabo dos pés. Mas, tinha uma mensagem a passar, conseguiu-o através desse movimento e partilhou-o com a comunidade que o podia entender. Assim, eles também podiam utilizar o mesmo movimento para expor os seus sentimentos, aquilo que vivia inclausurado dentro de si, bom ou mau. A sua busca pela elevação espiritual e a sua fraqueza ao tentar alcançá-la. Porque, as pontas podem ser usadas para as duas coisas e quando os bailarinos expressam a dor  que consome a sua alma, libertam-se dela, ajudam também a expulsar aquela que vive na alma dos seus espectadores e quando expôs a sua felicidade, ela é ampliada por aquela que a própria plateia lhe oferece, preenchendo ainda mais a sua alma. - e tocando no ombro de Mafalda - Na academia de dança onde ensaias também há lugar para outros estilos de dança, certo? Como o breakdance?
   A miúda respondeu, seriamente:
   - Sim, é verdade. Ballet não é o único estilo de dança que se aprende lá, mas não conheço como funciona a academia para os outros estilos de dança, apenas sei que existem.
   Margarida contrapus:
   - Ajudavas a Laila e o Ricardo a entrar na academia, se eu te pedisse?
   Mafalda indagou como resposta:
   - Margarida, eles não são do tipo que frequenta a nossa academia, nem quando se trata de street dance. Podem até ter a história, mas não tem o potencial. São delinquentes. Podem não estar no seu auge, mas hão-de chegar lá. Assim, como eu hei-de chegar ao topo dos meus anos de carreira, sem nunca ter encontrado a dança ou ter entrado numa companhia de dança de renome (a menos que a minha mãe e o dinheiro do meu pai os consigam comprar), mas sempre tendo o porte que a minha condição social me permite. Preferia que não soubesses a verdade, que não me ilucidasses dela. Mas, sim, disseste o que pensas e eu posso até concordar. Achas, porém, que vai mudar alguma coisa por o teres dito? Mesmo que tentássemos, seríamos um bando de garotos contra o mundo. Facilmente, seríamos vencidos por ele. E, quando falhassemos, podia eu até ter resistido da minha escola de dança e encontrado a dança longe longe de tudo disso e a Laila e o Ricardo serem bons b-girl e b-boy, respetivamente. Arranjaríamos uma nova forma de alimentar o nosso mecanismo de dor. Até porque, a minha mãe não aceitaria e eu sentiria um desespero enorme ao ter destruído os seus sonhos, ainda mais quando descobri a dança que ela, sem nunca ter descoberto, idolatra. E Laila e Ricardo, eu não sou adivinha, mas quase que consigo ver o desconforto deles ao ultrapassarem os seus pais e os outros habitantes do seu bairro. Não é suposto sermos melhor que os nossos. É suposto fazermos-lhe companhia nos seus desânimos! Como se o modo com que eles encaram a vida fosse uma característica herdada por nós. É possível uma mãe de um meio desfavorecido ter um filho bem sucedido e feliz, se mesmo ela sendo pobre, encarar a vida de frente, lhe mostrar o que é força interior e o ensinar  a batalhar por aquilo que deseja. Nessa situação, a atitude de resiliência da mãe influenciaria o próprio filho e tudo o que ele tinha de fazer era a sua aplicação num terreno e num tempo que as pessoas querem que pareça mais fértil para os lutadores. Não é o nosso caso! A nossa felicidade contrastaria com a infelicidade das pessoas que nos são mais próximas, que nunca conseguiram alcançar um objetivo enriquecedor para a sua alma. Não quero ser causa de maior infelicidade para os que me são mais próximos, por olharem para mim e aperceberem-se do vazio em que está a sua vida! Não me quero aperceber, se estiver bem, que existe uma impossibilidade de os socorrer, porque já andam nisto de se desfazerem de si próprios há tempo de mais!
   Laila e Ricardo encontraram alguma verdade no que aquela moça acabara de dizer. Estavam com medo. Eram um pouco impulsivos, mas a verdade era o que Mafalda dissera, abrangendo outros tópicos. A mudança de atitude perante a vida que queriam adquirir a partir daquele dia, podia influenciar de muitas formas as suas vidas e de quem estava à sua volta. Margarida foi rápida na resposta que deu:
   - Quando chegarem ao ponto de não irromperem por mecanismos de dor, à procura da falsa felicidade, quando estiverem a atravessar o caminho para a verdadeira felicidade, será quando finalmente perceberão de que maneira os poderão ajudar. Serão as pessoas que mais próximas estiveram de cometer os mesmos erros que eles e que vingaram na vida. Poderão dar-lhes as ferramentas para se libertarem da aniquilação voluntária e própria a que se submeteram. E espero que, nessa altura, tenham a arte como aliada. Na versão que desejarem. Podem escrever um artigo para um jornal e fazer a vossa verdade irromper no vosso bairro, Laila e Ricardo. Na tua casa, Mafalda. De dentro para fora e de fora para dentro, a humanidade a ser coesa na sua intervenção. Podem dançar, pintar ou cantar para lhes chamar a atenção. Aos da vossa casa e aos de fora. - e passado uns momentos - Nunca será um caminho sem mérito, sem privilégios, porque haverá sempre alguém para quem poderão fazer a diferença. Espero que também tenham a sorte de conseguir fazê-lo com os vossos pais. Penso que conseguirão porque, acho que o pedacinho de Deus que existe em cada um de nós, ainda não foi consumido pela dor com que pretendem destruir a sua alma. Aquela porção que nos torna verdadeiramente humanos e com que cada um de nós nasce. Um pedacinho de bondade, que faz com que o ser humano não seja um poço de maldade, como se diz. Se os vossos pais nunca sentiram amor, nunca foram capazes de viver nenhuma emoção e ainda por cima, lhe acrescentaram dor é provável que também essa parte termine por ser destruída. Mas, esse seria o momento que não haveria nenhuma preocupação da vossa parte em relação a eles. Porque, nunca vos terias relacionado com uma pessoa, apenas com um corpo. É o momento que vocês alvejaram, que termina com as emoções. Se esse momento tiver chegado, não há nada para recuperar. E será uma benção não passar muito tempo perto deles, porque estaremos a falar de pessoas com a alma totalmente destruída, inundada em dor e ruins, como ruim só pode ser alguém que nunca tenha sentido ou se tenha esquecido dos bons sentimentos que podem cultivar a alma humana. Estaríamos provavelmente a falar de psicopatas. Mas, sinto que ainda não é este o caso pela forma como falaste neles. Ricardo, no teu caso principalmente, isto não quer dizer que devas permanecer com os teus pais.
   Ricardo interrompeu-a, abruptamente:
   - O que estás a dizer?
   Margarida encarou-o:
   - Sei que ainda não te tinha falado nisto, mas acho que devias falar com alguém como a psicóloga da escola para ela te colocar no caminho de pessoas que te possam acolher, para que a tua integridade física não seja posta em causa.
   - Guida... - começou o colega de Laila, namorada da sua melhor amiga.
   - Encontrares-te a ti próprio é uma boa maneira de os ajudares, mas, no teu caso, a forma que eles arranjaram de se destruírem, é destruindo-te a ti. Esse é um mecanismo perigoso que muito possivelmente não vais conseguir mudar, a menos que te afastes. A Mafalda e a Laila tem tempo, mas a ti pode acontecer alguma coisa grave.
   - Mas...
   - Se te afastares, vais fazer uma coisa fantástica por eles! Primeiro, vais impedir que destruam ainda mais a sua alma, pertetuando os seus crimes contra ti. Vais impedir que eles se tornem pessoas cada vez piores. Em segundo lugar, vais-te emprignar de valor, de tal forma, que da próxima vez que os encarares, saberás lidar com a situação. Reconstruir uma qualquer relação de pais e filho, sem criares dependência em relação a eles! Seria uma maravilhosa demonstração de amor!
   - Eu bazei de casa algumas vezes, do tipo nunca mais regressar! Caia na street e sobrevivia por lá! Mas, a bófia topou-me sempre. Vinha atrás de mim, porque faltava à escola! - indagou ele.
   - Ias para a street, porque querias colocar dor em ti mesmo! Comportavas-te como um pilantra, quando não tinhas razão nenhuma para ser perseguida por ela. Muito, pelo contrário, ela devia proteger-te!
   Ricardo tinha um expressão triste.
   - Guida, ninguém vai nunca proteger o rapaz do gueto!
   Margarida sorriu, compadescente:
   - Não há essa de rapaz do gueto, do bairro, do que quer que lhe queiras chamar. É fácil, para mim, pegar na situação da Mafalda e tratá-la segundo o padrão da alta sociedade e na vossa e tratá-la à moda do gueto. Mas, já vos disse que o vosso problema é transversal a toda a Humanidade. - e passado um instante de silêncio, continuando na sua linha de pensamento - Não há isso de racista serem só os brancos, de os homofóbicos serem só os heterossexuais. E essa cena de evolução social tem muito que se lhe diga.
   - Explica lá, então! - reclamou Laila.
   Margarida explicou que se tinham inventado muitas palavras para definir as diferentes variações da utilização dos mecanismos de dor. Quando se denotava que a variação desse mecanismo se relacionava com as questões da cor da pele, apelidaram o próprio mecanismo pelo qual a pessoa procura prazer e felicidade na própria dor de racismo. Quando estava relacionado com as mulheres, de violência de género. Não é que as definições estivessem erradas, mas na ideia que transmitiam, de problema único e com uma única direção, acabaram sempre por camuflar o verdadeiro problema, aquele que é transversal a todas estas definições e abrange toda a Humanidade.
   - Ricardo, os teus pais maltratam-te e causam-te dor, consumindo a sua própria alma pela dor que causa magoar em o que é seu, que os torna parecidos a quem os magoou a eles. Um pouco semelhante ao que aconteceu com os colonos quando invadiram África. De certa forma, és-lhes superior em virtude, por isso, o irritas. Na mesma óptica, tu te assemelhas ao escravo, que não tendo a alma tão consumida como a do seu senhor, acaba por encontrar prazer na própria dor e em ser o desgraçado. Torna-se ele próprio racista com ele próprio e acha que merece o que lhe aconteceu, por ser negro, assim como tu achavas que não merecias ser amado. - ia dizendo Margarida - Há, no entanto, quem sobreviva a estas tribulações porque, de alguma maneira desconhecida, o amor penetrou na sua alma e pela força interior que deu há própria alma, impediu que esta se subjugasse ou amantizasse com a dor. Esses foram os que fizeram a Humanidade livrar-se do racismo, encará-lo como uma coisa má. Infelizmente, prenderam-se a uma das definições das variações destes mecanismos de dor. Uma grande chatice, porque alguns dos que viveram como sofredores, acabaram por se tornar causadores de sofrimento, porque, acima de tudo, a dor era aquilo com que sabiam conviver. Era preciso arranjar uma forma de continuar a fazer funcionar o mecanismo! Hoje, o racismo não morreu, vive camuflado, como forma de sofrer antiga, mas sempre em voga, quando nos pode ser útil a nós. A escravidão passou a ser ilegal e hoje, chama-se tráfico de seres humanos. Não é necessariamente racista, é só uma forma bárbara que alguns homens arranjaram de continuar a destruir-se a si próprios, fazendo mal aos outros, quando o que restou da sua alma já é de tamanho bem reduzido. Tão semelhante a outro montão de coisas!
   Ricardo apenas respondeu:
   - Acho que já vi esse comportamento em que o escravo é o próprio racista, num filme. Era sobre um escravo libertado que queria matar os donos de sua esposa (como se fosse possível a um ser humano dominar outro, há sempre uma parte que não vão conseguir dominar). Havia lá um escravo que tudo fazia para defender o seu senhor, mesmo depois da derrota estar mais que garantida, contra os dele lutando!
   Margarida replicou:
   - Acho que sei de que filme estás a falar, é de um em que há uma cena em que o senhor obriga os escravos a lutar e sobre as ordens dele, o vencedor, acaba esmagando os olhos ao outro ou assim uma coisa! Já vi, mas foi há algum tempo!
   Mafalda queixou-se:
   - Vocês vêem coisas muito violentas. Depois, como hão-de não ser violentos?
   Margarida retificou:
   - O perigo não é assistir coisas violentas. O perigo é idolatrar essas cenas violentas. Que é o que a Humanidade anda a fazer nos últimos tempos. Dizem-se anjos, mas vibram quando o protagonista de um filme, que devia ser o bonzinho da história, arrebenta os miolos ao seu opositor, esperam isso ardentemente como se isso fosse uma valorização pessoal. Para o mecanismo que ainda não deixamos morrer dentro da sociedade e que prova que a violência de outras épocas pode regressar, porque os mecanismos que levam a ela continuam a ser transmitidos de geração em geração, condenados por uma sociedade que foi revigorada pelo amor. O amor que se expandiu de uma ou outra alma e penetrou na dos outros, acordando-os para a luz. Deu-nos uma nova mentalidade, com vários procedimentos certos, mas nem sempre com as pessoas certas para os defender. Por exemplo, alguém se manifesta contra as touradas. Alguém diz alguma coisa contra e em vez de se expor a incoerência dos argumentos dessa pessoa, acaba-a tratando de tudo e mais alguma coisa, porque ainda não chegou ao mesmo patamar de pensamento que ela, sem lhe fazer entender como este tipo de pensamento vem do que está ser consumido dentro dele. E, de repente, apercebes-te que a pessoa que se manifestou até pode estar do lado certo, mas utiliza-o apenas para ser valorizada pela sociedade que agora gosta destes pensamentos mais liberais. Mas, é um complexo de inferioridade. Aquela pessoa não consegue argumentar com a que está do lado oposto do seu, porque ela ainda não atingiu o nível que a faz entender a complexidade daquilo com que se opôs, a perdição em que joga os próprios toureiros. Ela e o seu opositor, até que consigam conversar cordialmente, são duas pessoas, que escolheram lados opostos, para se lançarem em mecanismos de dor autênticos. Começam-se a tratar mal e isso faz-os sentir dor, pela pequenez que sentem que tem e não conseguem esconder.
   Laila riu-se e partilhou um momento:
   - Sobre isso, vi uma publicação, há uns tempos. Dizia qualquer coisa como os gays serem os mais, mas eles serem incapazes de expulsar os familiares de casa.
   Ricardo entendeu o problema e indagou:
   - Não fossem eles seres humanos! Ser gay, agora, é pertencer a uma secção especial de ser humanos. Pertences a essa comunidade ou tens a sorte de nascer dentro dela e nunca mais errado na vida!
   Mafalda completou:
   - Preconceito é preconceito, confira-te benefícios ou malefícios. Ainda, não foi possível perceber, que somos todos diferentes, mas todos iguais? É assim tão difícil estas premissas?
   E, de repente, a miúda que treinava passos de dança, encontrou uma voz, que falou por Margarida:
   - Eu vou levar a Laila e o Ricardo à minha academia de dança, vou lutar para que possam aprender breakdance. E vou fazer as pazes com a dança, descobri-la dentro de mim, mesmo que a minha mãe possa não gostar das consequências. Falaste há pouco de uma luta de dois escravos pela sobrevivência, a cena do tal filme. Claro que se luta pela sobrevivência, é algo intrínseco a nós. Mas, só se luta tão afincadamente pela sobrevivência, ferindo o outro, quando falta amor. O amor é aquele sentimento em que deixamos de ser meros animais e nos tornamos humanos. Como quando uma mãe é capaz de pôr em causa a própria integridade física por um filho, porque o ama. A partir de agora, quero abrir o meu coração a todos os verdadeiros amores que podem reparar a minha alma. E a amizade é uma forma de amor!
   A garota quis uma mudança e concretizou-a e como fora Margarida a proporcionar a mudança para todos e porque nunca a abandonara, ali estava Laila, naquele banco de jardim, tantos anos depois, à espera dela.
   E a verdade é que tinha uma vida melhor do que tinha na altura em que estava a trair a melhor amiga, agarrando-se ao namorado desta. A própria melhor amiga dela a tinha perdoado com o tempo pela traição, a ela e a Ricardo, depois de bastante tempo e ao mesmo tempo que se foi apercebendo que a história que tinha com o namorado não era uma história de amor. Apesar disso, nunca mais estiveram tão próximas como haviam sido um dia. E Ricardo e Laila também se haviam afastado, ainda que frequentassem a mesma academia de dança e partilhassem o gosto pelo mesmo estilo de dança. Tiveram de o fazer, após todo o julgamento escolar de que foram alvo. Falavam de vez em quando e Laila gostava de quando falavam um com o outro, porque se entendiam perfeitamente nas suas vivências. Acabaram a saber muito um sobre o outro, graças ao poder de união que Margarida exibia. Pois, esta última falava com os três: Ricardo, Laila e Mafalda. E sabia como iam as suas vidas, alegrando-se das suas vitórias.
   No caso de Laila, as vitórias que alcançara tinham-a impulsionado no caminho das Battles e a tornar-se numa das melhores b-girls do país. E era engraçado, porque apesar de entender dos Power Moves, de Footwork, a parte que mais a seduzia era a do Top Rock.
   Gostava de vencer as outras raparigas em algo que ninguém esperava, de as desafiar no que elas achavam básico. Mas, não era. Para que elas pudessem compreender o caminho que tinham que traçar para se tornar verdadeiras dançarinas.
   E, graças a esta vontade que tinha de passar uma lição com a sua história de vida, com a dança que produzia, acabou voluntariando-se para alguns projetos na comunidade. Dando aulas às sextas à tarde a quem viesse ter com ela à rua, num dos pátios que compunha o seu bairro. E, às quartas, dando aulas na academia de dança em que treinava. Parece um contra-senso, mas tinham sido os próprios professores dela a sugerir a ideia. Dava aulas de introdução ao b-boying e ao b-girlyng na academia e recebia algum dinheiro por isso.
   E talvez, destes dois factos, tenha derivado uma constatação na vida de Laila que ela nunca tinha equacionado: é que o trabalho que fazia pago a ajudava a organizar as contas, mas a que fazia de livre e espontânea vontade, sem receber nada em troca, a transformara num mito. E um mito, não devia fracassar.
   Mas, ela fracassava de vez em quando, sentia-o na sua bolsa, em forma de caixa de analgésicos e a atormentar o seu coração, com a imagem da sua mãe e irmão.
   Na verdade, a mãe já estivera melhor do que estava, naquele momento. Afinal de contas, quando Laila lhe começou a mostrar que tudo era possível para um ser humano, independentemente do lugar onde está inserido, dona Amélia deixará de beber. E estava numa situação muito complicada, pré-cirrótica. Descobriram-o, quando a convencera a fazer exames. Porém, quando começou a demonstrar vontade de viver, os médicos começaram também a lutar por ela. Foi proposta para transplante e no ano seguinte, foi transplantada com um fígado de um portador de PAF que morrera num acidente de viação, sem muito tempo para desenvolver a doença.
   Laila sabia aquelas informações, porque a mãe quisera por tudo saber quem lhe tinha dado um pedaço do seu fígado, queria dar alguma coisa à família. E a família do jovem aceitara encontrar-se com ela, mas lamentaram ao perceber o estirpe de mulher que o seu filho ajudara a salvar. Nunca lhe aceitaram nada, mesmo ela tendo pouco para ofertar.
   O seu pai, por sua vez, nunca abandonara o álcool. Enchia o copo ao pé da esposa, recém-transplantada e antes mesmo de o ser, quando estava em processo de desintoxicação, e botava-o abaixo, enquanto dizia: "Se não serves para beber comigo, não serves para minha esposa".
   Quando perceber que a esposa não ia cair na lábia dele, começou a detestá-la e ameaçou bater-lhe. Fora aí que Elton, o irmão de Laila, ameaçara o pai e o colocara para fora de casa. A partir, o pai bêbado de Laila saíra de casa, para ficar o irmão bêbado de Laila no seu lugar. Este último, pelo menos, não espicaçava a mãe, apenas consumia no seu desgosto.
   E uma paz ocre reinara em sua casa até há um mês. Laila estava lesionada e como o mito tinha de se manter de pé e a dançar, começou a tomar analgésicos, num primeiro momento para aliviar as dores. Ao mesmo tempo, sabe-se lá onde, a mãe voltara a desencantar o seu pai e trouxe-o para casa.
   Para Elton, este regresso nunca foi pacífico. Foi interpretado como uma afronta, apesar de, naquele momento, o pai e ele se estarem a transformar em seres cada vez mais parecidos.
   Nada foi possível a Laila fazer porque, o regresso tinha acontecido em versão lua de mel. Agarravam-se em todo o lado: sala, cozinha, quarto... E os filhos que se desviassem, se lhes apetecesse. Elton zangou-se também com a mãe, nessa altura, mas de uma forma mais ligeira, na base da deceção. Fora aí também que descobrira, ela e Elton, que a mãe achava que tinha uma grande dívida para com seu pai. Ao que parecia, Laila tinha sido um acidente, uma noite de bebedeira que acabara em noite de sexo, mesmo antes de serem casados. Dona Amélia tinha enchido a barriga e se não fosse o pai deles a contornar as coisas, seria até hoje uma mulher falada. Não perceberia ela que era na mesma falada por outros motivos?
   Acusações à parte, um mês se passara e as coisas só tinham piorado, depois do regresso daquele homem. Elton não deixara de beber, apenas intensificará o seu consumo. Dona Amélia regressara ao álcool e tornara cirrótico um fígado transplantado. O pai nunca deixara o vício. E Laila para continuar a assistir a toda esta decadência calada e continuar um mito, ficara agarrada aos analgésicos.
   Portanto, este encontro com Margarida não era só um encontro com uma amiga, transformaria-se num pedido de socorro a esta. A esta amiga que envelhecera, se apaixonaram, fora magoada, mas que esperava Laila e não tinha razões para desconfiar do contrário, continuava a mesma. A mesma que compreendia e tentava encontrar soluções.
   A passividade do jardim apoderou-se dela. Não vinha preparada para falar dela, não queria abordar os analgésicos, mas será que ela podia repescar isso dentro dela.
   Laila gostaria imenso que isso acontecesse naquele lugar, onde dança, escrita e música se encontravam, ressalvando o poder da arte.
   Queria abrir-se com ela, ao mesmo tempo, que sabia que Margarida precisava de ser ouvida. Sobre o caminho que trilhava para rever os seus pais.
   Margarida aparece em frente de Laila, vai sentar-se no banco. As folhas na mão. E muito para ser dito e ainda feito.
   Que outros capítulos de história podem advir daqui?
 
  
  
  
  
  
  
  
  
  
 

De regresso a casa...Onde histórias criam vida. Descubra agora