Capítulo 2 - Parte 1/1

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Pequeno e indefeso, o bebê de lince-ibérico fuçava o ventre seco da mãe morta em busca de leite para saciar a fome de seu frágil corpinho, que já lhe comprimia as entranhas pelos dias que permanecia sem um único grama do sagrado alimento materno.

Uma doença epidêmica se alastrava pelos campos e florestas da Península Ibérica, levando à morte milhares de animais silvestres e empurrando para as vias da extinção o belo felino lince-ibérico, que já vinha se arrastando em lutas pela sobrevivência à matança indiscriminada por caçadores e à covarde ação do homem de erradicar os coelhos da região, considerados pragas por eles, porém o principal alimento de animais carnívoros como o lince.

As tetas secas da fêmea de lince já começavam a se putrefar como todo o resto de seu corpo.

O filhote, único ainda vivo da ninhada de quatro bebês nascidos a pouco mais de um mês, não possuía ainda dentes fortes o suficiente para destroçar a carne e aplacar a fome que começava a matá-lo também.

Seus irmãozinhos morreram um a um, capturados por uma loba prenhe e o último por uma águia que mergulhou dos céus sem que fosse percebida.

Agora só restava ele à mercê da sorte, caminhando para a morte lenta da inanição ou para ser a próxima refeição de algum outro animal infeliz que também lutava por sobreviver àqueles dias cinzentos de doenças e seca.

Desolado e infeliz, o pequeno lince caminhou em seus passinhos trôpegos, ainda mais pela fome e sede que o matavam, e saiu da precária segurança que a toca feita num tronco caído proporcionava.

Venceu os obstáculos e ganhou a clareira chamuscada pelo vento frio e seco que vinha da costa longínqua.

Aquele mundo gigantesco, aterrorizante e iluminado demais deixou o filhote ainda mais tristonho.

Ele começou a chorar em ganidos fracos, clamando por uma mãe que não mais existia e que jamais viria buscá-lo.

Apesar da fraqueza que ameaçava dominar todo o seu corpinho, os ganidos aumentaram de volume, tornando-se estridentes e histéricos.

O lincezinho se desesperava diante daquele mundo grande e insensível à sua dor.

O pequeno sentia-se, mais do que nunca, abandonado e faminto.

Seus ganidos curtos e secos apenas cessaram quando uma movimentação brusca em um arbusto mais à frente chamou sua atenção, aterrorizando-o ainda mais.

Os pêlos dourados se eriçaram e a cauda curta se espichou.

Do arbusto, um enorme lobo-ibero saiu a passos cautelosos, e os seus olhos ambarinos perscrutaram o filhote de lince por um longo tempo, até que brilharam de satisfação.

O instinto de sobrevivência do lince-ibérico o fez recuar e rosnar para aquela horrível ameaça que surgiu à sua frente.

Seus olhinhos dourados brilhavam de medo e terror.

Tentou fugir de volta para a toca e a mãe morta, mas os saltinhos de suas perninhas fracas foram totalmente inúteis.

Em dois passos o lobo-ibero abocanhou o dorso do filhote, prendendo-o em suas fortes mandíbulas.

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A cabana rústica, construída de toras e pedras, ficava no ponto mais alto da montanha, num pequeno planalto.

Ficava parcialmente oculta pelas árvores da floresta, que a seca outonal deixava com o aspecto desolado e lúgubre.

Mãe-Cegonha varria o terreno entorno da cabana.

As folhas ressecadas faziam um barulho áspero em protesto à vassoura de palha que a idosa usava.

A mulher possuía uma aparência estranha, quase deformada.

O corpo grande e redondo era sustentado por pernas finíssimas, que pareciam impossíveis de suportar tamanho peso.

Sua pele era branca-amarelada e seus cabelos curtos eram completamente brancos, de textura que lembrava a penas.

O nariz era longo, fino e adunco, e os olhos, o mais estranho da composição, eram redondos e vermelhos.

Certamente, com todas essas qualidades, Mãe-Cegonha não era uma pessoa que agradasse aos olhos exigentes e superficiais.

Toda a sua beleza estava em sua essência e sua secular sabedoria.

Quando terminou de juntar todas as folhas dentro do buraco que cavou, para que futuramente adubasse o solo pobre daquela floresta, percebeu a aproximação de um lobo que subia aos trotes pela estradinha que dava acesso à cabana.

Seu velho coração ribombou e seus olhos focalizaram de imediato a pequena presa que vinha balançando da boca do lobo.

Apreensiva, Mãe-Cegonha correu, esquecendo-se até mesmo de largar a vassoura.

O cinzento lobo-ibero mais parecia um cão alegre quando parou em frente à idosa, com o filhote de lince-ibérico cuidadosamente preso entre os seus dentes.

- Oh! Pela... Mãe... Criadora...!

A mulher estendeu suas mãos de dedos longos e finos, e o lobo depositou ali a sua pequena preciosa carga.

Amolecido, o filhote de lince parecia morto.

Mãe-Cegonha aconchegou o pequeno em seu busto farto, fechando os seus olhos redondos.

Uma luz rosácea piscou do meio de seu peito até se expandir e mergulhar o corpo todo da idosa num clarão intenso.

Filetes de energia amorosa envolveram o filhote, preenchendo o corpinho dele e nutrindo emergencialmente suas células debilitadas pela inanição.

Quando foi o suficiente, a luz retrocedeu para dentro do chakra cardíaco da mulher, e o lincezinho se mexeu como se despertasse de um sono profundo.

Mãe-Cegonha olhou para o lobo com olhos rasos d'água.

O lobo sorriu intimamente e uma nevoa eletrificada surgiu aos seus pés e se expandiu até cobri-lo por inteiro.

A névoa se alongou e raios de energia faiscaram até que ela se dispersou, revelando um belo rapaz de pele morena e cabelos castanhos acinzentados, de grandes orelhas lupinas e olhos amarelos.

Sorrindo feliz, deixando à mostra os poderosos caninos, Blasco Uchoa aproximou-se da mulher-cegonha, acariciando com as mãos terminadas em garras afiadas o dorso do filhote de lince, deslizando nos pelos sedosos.

O bebê ainda permanecia sonolento nos braços de Mãe-Cegonha.

- Depois de duzentos anos, a nossa Grande Mãe nos abençoa com um novo homem-cerval... este pequeno lince-ibérico é um de nós, Mãe... é um Encantado!

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Raptores - Episódio 1Onde histórias criam vida. Descubra agora