Pequeno e indefeso, o bebê de lince-ibérico fuçava o ventre seco da mãe morta em busca de leite para saciar a fome de seu frágil corpinho, que já lhe comprimia as entranhas pelos dias que permanecia sem um único grama do sagrado alimento materno.
Uma doença epidêmica se alastrava pelos campos e florestas da Península Ibérica, levando à morte milhares de animais silvestres e empurrando para as vias da extinção o belo felino lince-ibérico, que já vinha se arrastando em lutas pela sobrevivência à matança indiscriminada por caçadores e à covarde ação do homem de erradicar os coelhos da região, considerados pragas por eles, porém o principal alimento de animais carnívoros como o lince.
As tetas secas da fêmea de lince já começavam a se putrefar como todo o resto de seu corpo.
O filhote, único ainda vivo da ninhada de quatro bebês nascidos a pouco mais de um mês, não possuía ainda dentes fortes o suficiente para destroçar a carne e aplacar a fome que começava a matá-lo também.
Seus irmãozinhos morreram um a um, capturados por uma loba prenhe e o último por uma águia que mergulhou dos céus sem que fosse percebida.
Agora só restava ele à mercê da sorte, caminhando para a morte lenta da inanição ou para ser a próxima refeição de algum outro animal infeliz que também lutava por sobreviver àqueles dias cinzentos de doenças e seca.
Desolado e infeliz, o pequeno lince caminhou em seus passinhos trôpegos, ainda mais pela fome e sede que o matavam, e saiu da precária segurança que a toca feita num tronco caído proporcionava.
Venceu os obstáculos e ganhou a clareira chamuscada pelo vento frio e seco que vinha da costa longínqua.
Aquele mundo gigantesco, aterrorizante e iluminado demais deixou o filhote ainda mais tristonho.
Ele começou a chorar em ganidos fracos, clamando por uma mãe que não mais existia e que jamais viria buscá-lo.
Apesar da fraqueza que ameaçava dominar todo o seu corpinho, os ganidos aumentaram de volume, tornando-se estridentes e histéricos.
O lincezinho se desesperava diante daquele mundo grande e insensível à sua dor.
O pequeno sentia-se, mais do que nunca, abandonado e faminto.
Seus ganidos curtos e secos apenas cessaram quando uma movimentação brusca em um arbusto mais à frente chamou sua atenção, aterrorizando-o ainda mais.
Os pêlos dourados se eriçaram e a cauda curta se espichou.
Do arbusto, um enorme lobo-ibero saiu a passos cautelosos, e os seus olhos ambarinos perscrutaram o filhote de lince por um longo tempo, até que brilharam de satisfação.
O instinto de sobrevivência do lince-ibérico o fez recuar e rosnar para aquela horrível ameaça que surgiu à sua frente.
Seus olhinhos dourados brilhavam de medo e terror.
Tentou fugir de volta para a toca e a mãe morta, mas os saltinhos de suas perninhas fracas foram totalmente inúteis.
Em dois passos o lobo-ibero abocanhou o dorso do filhote, prendendo-o em suas fortes mandíbulas.
A cabana rústica, construída de toras e pedras, ficava no ponto mais alto da montanha, num pequeno planalto.
Ficava parcialmente oculta pelas árvores da floresta, que a seca outonal deixava com o aspecto desolado e lúgubre.
Mãe-Cegonha varria o terreno entorno da cabana.
As folhas ressecadas faziam um barulho áspero em protesto à vassoura de palha que a idosa usava.
A mulher possuía uma aparência estranha, quase deformada.
O corpo grande e redondo era sustentado por pernas finíssimas, que pareciam impossíveis de suportar tamanho peso.
Sua pele era branca-amarelada e seus cabelos curtos eram completamente brancos, de textura que lembrava a penas.
O nariz era longo, fino e adunco, e os olhos, o mais estranho da composição, eram redondos e vermelhos.
Certamente, com todas essas qualidades, Mãe-Cegonha não era uma pessoa que agradasse aos olhos exigentes e superficiais.
Toda a sua beleza estava em sua essência e sua secular sabedoria.
Quando terminou de juntar todas as folhas dentro do buraco que cavou, para que futuramente adubasse o solo pobre daquela floresta, percebeu a aproximação de um lobo que subia aos trotes pela estradinha que dava acesso à cabana.
Seu velho coração ribombou e seus olhos focalizaram de imediato a pequena presa que vinha balançando da boca do lobo.
Apreensiva, Mãe-Cegonha correu, esquecendo-se até mesmo de largar a vassoura.
O cinzento lobo-ibero mais parecia um cão alegre quando parou em frente à idosa, com o filhote de lince-ibérico cuidadosamente preso entre os seus dentes.
- Oh! Pela... Mãe... Criadora...!
A mulher estendeu suas mãos de dedos longos e finos, e o lobo depositou ali a sua pequena preciosa carga.
Amolecido, o filhote de lince parecia morto.
Mãe-Cegonha aconchegou o pequeno em seu busto farto, fechando os seus olhos redondos.
Uma luz rosácea piscou do meio de seu peito até se expandir e mergulhar o corpo todo da idosa num clarão intenso.
Filetes de energia amorosa envolveram o filhote, preenchendo o corpinho dele e nutrindo emergencialmente suas células debilitadas pela inanição.
Quando foi o suficiente, a luz retrocedeu para dentro do chakra cardíaco da mulher, e o lincezinho se mexeu como se despertasse de um sono profundo.
Mãe-Cegonha olhou para o lobo com olhos rasos d'água.
O lobo sorriu intimamente e uma nevoa eletrificada surgiu aos seus pés e se expandiu até cobri-lo por inteiro.
A névoa se alongou e raios de energia faiscaram até que ela se dispersou, revelando um belo rapaz de pele morena e cabelos castanhos acinzentados, de grandes orelhas lupinas e olhos amarelos.
Sorrindo feliz, deixando à mostra os poderosos caninos, Blasco Uchoa aproximou-se da mulher-cegonha, acariciando com as mãos terminadas em garras afiadas o dorso do filhote de lince, deslizando nos pelos sedosos.
O bebê ainda permanecia sonolento nos braços de Mãe-Cegonha.
- Depois de duzentos anos, a nossa Grande Mãe nos abençoa com um novo homem-cerval... este pequeno lince-ibérico é um de nós, Mãe... é um Encantado!
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Raptores - Episódio 1
ChickLit🔥 História Completa e Finalizada 🔥 Raptores é uma série literária em 3 episódios. O que estará postado aqui no WattPad é o Episódio 1, que equivale ao primeiro livro. Raptores são seres híbridos de humano e animal, que surgem espontaneamente entre...