Oito

177 29 202
                                    

Viemi concordou em oferecer os frutos na cidade vizinha, Puduá, que fica além do Rio Gwylio e levou Daikin com ele. Partiram uma hora depois que contei tudo a ele.

Então eu não tinha muito que fazer, já que não trabalhava mais na loja da Casa Olitha. Só conseguia ficar parada a porta, olhando a neblina no cume da Montanha que só aumentava. E a canção que não saía dos meus ouvidos.

Só saí da paralisação dentro de mim quando papai retornou no fim do dia, cansado e visivelmente preocupado, com um Daikin serelepe e risonho que se jogou em meus braços.

- Consegui vender em um piscar de olhos, Ali. Você tem muitos flus, agora. É uma matrona rica. - entramos em casa e seguimos para o meu quarto. Daikin parece com fome. Eu mesma não comi nada o dia todo.

Balanço a cabeça e sorrio.

- Jamais vou ser matrona da Casa Olitha. Não pertenço a ela.

Viemi sorri e pega em minha mão.

- Você pertence a minha Casa. A Casa Puran. Você carrega meu sangue. Se quiser construir sua casa e usar meu nome, tem esse direito dentro da Tradição, sabe disso. Ainda não há uma Casa Puran nesse vilarejo.

Coloco Daikin no chão e pego um fruto que guardei para ele. Meu irmãozinho nem hesita, come com vontade, sem dar importância a nós.

- Eu não vou ficar longe de vocês. Agora que a megera da sua mulher sabe que tenho flus e permite que eu permaneça aqui.

Viemi se aproxima de mim e segura meu ombro com uma mão, me entregando uma pequena bolsa de couro onde está o dinheiro dos frutos que ele vendeu. Papai conseguiu muitos flus.

- Se quiser ser a Matrona Puran, eu e Daikin vamos com você.

Olho em seus olhos. Ele sabe o que significa sair desta casa, deixar Bouvae Olitha sozinha, sem herdeiros, sem Daikin para oferecer em casamento.

- Nem começa Ali. Temos os Batea, que não seguem a Tradição, que vão continuar como nossos amigos. Eu tenho amigos sábios em outros vilarejos que adorariam me verem livre da Matrona. E minha família voltaria a me ver. Eles não vem há anos por causa dos maus tratos de Bouvae Olitha. A vida só melhoraria para nós.

Ele tem razão e não tem medo do que vão dizer. Daikin é responsabilidade dele segundo a Tradição. Se houver rompimento no casamento, o sábio tem a responsabilidade sobre os filhos meninos, assim como a matrona tem sobre as meninas. O que raramente acontece, pois as Matronas são as provedoras de suas casas e se um sábio for rejeitado, ficará na rua e morrerá de fome com seus filhos meninos. É muito raro uma família receber de volta um homem que foi rejeitado.

- Tudo bem, então. Vamos sair dessa casa e fazer tudo como disse. Acho que a gente precisa disso. Amanhã vou até a construtora e ver onde podemos construir nossa casa.

- Vamos todos! Depois podemos visitar os Batea e contar a novidade.

Sorrio, pensando em Pili. Ele vai gostar de saber que serei uma Matrona Puran e que me desligarei da casa Olitha.

O dia seguinte amanhece nublado, dando às casas do vilarejo um tom de cinza nada agradável. Eu só consigo pensar que é a neblina da Montanha sobre nós, mas não digo nada a meu pai, ele provavelmente está pensando a mesma coisa.

Saímos para ver a construtora, a matrona da Casa Cumus que constrói as casas do nosso vilarejo.

Na verdade quem constrói é o sábio da Casa, a matrona é quem cuida do dinheiro.

Ele é alto e tem a pele da cor dos favos de mel. Seus olhos verdes, suas roupas discretas. Ele é muito esnobe, trata as pessoas de acordo com o prestígio que têm diante do que seguem da Tradição. Ele sempre nos tratou bem, mas quando soube que a nova casa seria para mim, começou a nos desprezar. Sabe que estamos rompendo com a Casa Olitha.

Depois de acertar tudo com o construtor, pagamos por metade de todo o trabalho. É claro que a Matrona Cumus não recusou. Na verdade, é o dinheiro que dita as regras nos vilarejos. A Tradição é fraca quando compete contra a ganância de certas pessoas.

- Agora vamos almoçar na hospedaria da Casa Sonfi e depois vamos ver os Batea. Pode ser papai?

Viemi sorri e pega Daikin do meu colo, enquanto seguimos tranquilamente pelo vilarejo.

- Essa neblina... Estou preocupado Ali, como conseguiu sair de lá?

Dou de ombros. Também tenho minhas preocupações, mas não posso paralisar de medo.

- Corri pai. Eu e Pili ouvimos uma canção estranha. Que falava de alguém com olhos brancos. Quando a música parou eu sabia que tinha que correr. Então corri.

Lembro do sonho que tive há dois dias e me pergunto se foi somente um sonho, se não vaguei mesmo por aquela floresta na chuva.

- Pili adorou, tenho certeza.

- Ah, sim! Parecia uma criança.

Entramos na hospedaria e sentamos em uma mesa mais isolada. Sei que a Casa Cumus já espalhou a novidade quando vejo a imensa Matrona da Casa Sonfi nos olhar torto. Nossa vida vai ser assim, a partir de agora. Sabíamos disso.

Viemi pede nossa refeição e ajeita Daikin ao seu lado. Fico observando as pessoas a quem sei que pertenço. Eles são sangue do meu sangue e só eles importam.

Os moradores da floresta rejeitaram minha mãe. Então não pertenço a eles. Serei a Matrona Puran e cuidarei de Daikin e de papai.

Depois de uma refeição saborosa e de deixar uma gorjeta bem pequenina, seguimos para a Casa Batea, andando tranquilamente pelas ruas. Nosso vilarejo é chamado de Xiador por causa do barulho do vento e nesse momento, o vento está silencioso apesar de forte.

- Vem tempestade por aí. Não acha melhor irmos para casa, Ali? - papai diz, olhando as densas nuvens sobre nós.

Os trovões começam a rugir, os relâmpagos cortam o céu. Eu vejo algo nas nuvens. Algo majestoso, negro, antigo. E a canção recomeça em meus ouvidos.

Estou tão apavorada que não consigo me mover

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Estou tão apavorada que não consigo me mover.

Quem vejo descendo das nuvens... Não posso dizer se é jovem ou velho, se homem ou mulher. Ou se é humano. Mas sei que é rico pelo fino manto negro que carrega sobre o corpo. Não consigo ver o rosto, mas conforme se aproxima vejo cabelos brancos compridos fugindo do véu que é balançado pelo vento. Ele ou ela, o ser vem em minha direção.

Não posso correr, nem me mover. É como se estivesse presa a sua presença. É como se isso estivesse acontecendo para mim.

O ser chega ainda mais perto, até que posso sentir sua respiração contra minha pele. Seus olhos estão fechados, apesar do canto que oprime meus ouvidos sair dos seus lábios. Sua pele é de um negro com pontos brilhantes como o céu noturno pontilhado de estrelas.

A canção cessa, mas a chuva cai forte e gelada. E nada posso fazer a não ser contemplar a beleza do ser a minha frente.
Então seus olhos se abrem.

São infinitamente brancos com um círculo negro delimitando a íris. Os meus são diferentes, riscados de linhas negras, mais parecidos com o dos humanos. Esses olhos brancos são opacos, sem vida. Olhos de um morto vivo.

O ser sorri e me beija.

Véu Negro (EM REVISÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora