Vinte e um

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Como é possível que Bouvae tenha dominado fogo? Uma simples humana.

Percorremos todas as casas do Xiador, mesmo aquelas mais arruinadas. Encontramos algumas pessoas vivas, conhecidos apenas de olhar. Nada dos Batea ou das outras famílias do comércio.

Nas outras casas até encontramos corpos carbonizados e irreconhecíveis, mas não encontramos nada na casa dos Batea. Somente cinzas.

— Acha que eles podem ter fugido? — Ragok pergunta.

Pessoalmente estou tão confusa que não consigo pensar em qualquer lugar em que possam estar.

— Não sei... Não sobrou nenhuma casa.

A visão do Xiador é atordoante. A vida que seguia seu curso aqui foi destruída. Simplesmente destruída.

Fizeram isso só para me afetar?

— Pense. Tente se lembrar de algum lugar fora do vilarejo.

Chacoalho a cabeça, caindo de joelhos. Apoio as mãos no chão lamacento.

— Zoí devia ter feito algo. Zoí devia ter parado esse monstro! — sussurro.

Sinto os braços de Ragok me ampararem. E por mais que eu tente controlar o choro que me oprime, não consigo.

Chego a chorar alto, para tentar aliviar um pouco do que estou sentindo.

É difícil ficar calma depois do que vi, mas não há lágrimas que possam cair eternamente.

Me coloco de pé, olhando ao redor.

— Há um lugar, Ragok. A Montanha.

Ragok está meio confuso, mas antes que eu possa explicar qualquer coisa, vejo sublimes chegando pelo céu.

Golag e Dihdre lideram o voo, trazendo um grupo de dezenas de sublimes.

Dihdre, ajudando humanos. Mesmo depois do que fiz.

— Me mostre onde eles podem estar. — Ragok pede, segurando minha mão.

Olho em seus olhos. Seu rosto e cabelos sujos de fuligem. Sua determinação emanando do olhar. Como posso me sentir tão próxima de alguém assim?

— Na Montanha da Floresta. Há uma caverna na encosta. Eu e um amigo descobrimos. Talvez ele esteja lá.

Golag é a primeira a pousar. Ela parece triste.

— Petice ficou para proteger Kairon. Vamos ser rápidos aqui.

Concordo com um gesto e observo enquanto ela berra comandos para os sublimes. Eles começam a remover os escombros, apagam chamas que persistem e cuidam dos corpos.

Levo Ragok até a caverna. Se Pili conseguiu escapar deve estar lá.

Não havia corpos na casa dele. Me dói perceber que todos perderam tudo.

Do que os sobreviventes vão viver agora? Como irão sobreviver?

A caverna está escura e vazia. Observo os sublimes trabalhando no Xiador.

— Pili Batea, onde você está? — sussurro.

— Essa caverna é maior do que parece. — Ragok explica. — Lá no canto tem uma passagem. Vai na frente, Ali.

Sigo para o fundo da caverna. Ragok conjura uma esfera de luz. E depois de alguns minutos podemos ver um grupo de humanos assustados e encolhidos contra a rocha.

— Sou Aliatra Olitha. Do comércio. Há alguém dos Batea com vocês?

Nenhum deles responde. Há crianças chorando baixinho. Mulheres agarradas a homens cheios de pavor nos olhos.

Todos esses humanos deveriam ter sido ensinados a se defender justamente por viverem ao pé da Floresta Negra. Algo que nem mesmo Zoí se preocupou.

— Ali? — ouço um deles chamar.

Um rapaz alto, de pele marrom se aproxima de mim. Quando está a minha frente, posso ver o azul dos teus olhos. Posso ver o olhar do meu amigo de infância.

Pili está vivo!

— Pili?

Ele corre até mim e me abraça. Está tão diferente do garoto teimoso que conheci. Mas é ele. Posso ver isso em seus olhos.

— Achei que não ia te ver de novo. — ele sussurra.

Seu rosto é diferente do que me lembrava. Mais maduro. A voz também mudou. Ele sorri.

— Eu devia ter vindo antes. Devia ter protegido vocês. — digo a ele, apertando sua mão.

— Ali. — Ragok me chama. — Estão erguendo casas.

Vou até a entrada da caverna e observo o trabalho dos sublimes. Realmente foram rápidos. A lama sumiu, os escombros também. Casas de madeira são erguidas. Eu preciso ajudar.

— Vou descer para ajudar Pili. Depois podem retornar. Vamos proteger o Xiador.

Eu deveria ter protegido o Xiador antes.

Viro para me despedir e vejo Pili com uma criança no colo. A menina tem cachos lindos, os olhos azuis e a cor de pele marrom avermelhada. Sorrio. Parece que Pili seguiu sua vida.

— Não vai ficar? — ele pergunta.

— Não posso. Preciso aprender algumas coisas.

— Você se casou? — Pili pergunta, olhando para Ragok.

Acompanho o olhar de Pili, observo Ragok me esperando.

Depois de tanta tristeza e sofrimento eu não deveria pensar nisso. Mas se há alguém merecedor de dividir a vida comigo... Há tantas coisas entre nós. Eu jurei não me casar.

— Não. Você está feliz? — volto a olhar para Pili.

Um homem se aproxima dele e o abraça. É claro que ele tem medo de mim, mal me olha. Sou alguém a quem ele deve temer.

— Estou mais feliz do que pensei que poderia. — Pili responde.

— Você tirou alguém da rua? Deveria. — digo sorrindo.

— Ah, você não sabe de nada! — ele aponta para um grupo de crianças abraçadas umas às outras. — Meu companheiro Haiti e eu somos os maiores benfeitores do Xiador. Essas crianças são nossas. Todas tiradas das ruas.

Que alegria. Ele não está só feliz. Também está levando felicidade aos pequenos. Posso sentir mais orgulho dele?

— Seus pais, Pili?

— Fora da cidade.

Ainda bem. Apesar das perdas e da imagem do Xiador em cinzas, é bom saber que alguém sobreviveu. É bom saber que Pili está bem, que está feliz e produzindo felicidade.

— Preciso ir. O Xiador vai ficar bem. Se cuida.

Pili se aproxima e me abraça. É mais difícil me despedir do que parece.

— Vem me visitar, Ali. — ele pede.

Eu queria dizer que se voltar, ele vai estar bem mais velho e difícil de reconhecer. Que talvez seus filhos estejam crescidos. Que talvez ele adote outros filhos até que eu apareça novamente. Ou que talvez ele já tenha ido para o mundo dos mortos.

Mas como eu poderia explicar tudo isso?

— Assim que eu puder. — digo a ele e sigo em direção a Ragok.

Descemos a encosta rapidamente, mas quando chegamos ao chão me jogo sobre Ragok e o abraço forte. Ele me envolve com seus braços e beija minha testa.

Pili tinha uma insistência boba de casar comigo e trapaceava para ganhar as nossas corridas. Eu o amava como a um irmão, desde criança. Pili representa uma parte da minha vida que jamais vai voltar, que eu não pude participar. Uma parte que virou cinzas.

Por causa de Nigde. Por causa de Bouvae Olitha.

— Quer voltar para Kairon? — Ragok oferece.

Olho em seus olhos sem me soltar de seu abraço. Para os olhos que mudaram tanto desde a primeira vez que os vi. Para a compreensão e lealdade neles.

— Quero ficar e ajudar.

Véu Negro (EM REVISÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora