Inglaterra, 1809.
A infância de Julia havia sido incrivelmente feliz até os seus cinco anos de idade quando sua mãe veio a falecer. Esse trágico evento tornou-se um divisor de águas em sua vida. Antes dele ela só guardava momentos felizes e doces ao lado de seu pai e de sua mãe, depois, os momentos felizes tornaram-se cada vez mais raros, e a melancolia passara a tomar conta de seus dias.
O pai, barão de Highgrove, casou-se meses depois, e a cabecinha de quase seis anos de Julia mal pôde assimilar as mudanças que ocorreram na casa que um dia havia sido seu lar. O refúgio que fora o quarto de sua mãe, meses após a morte da mesma, agora havia sido completamente reformado pela nova proprietária do cômodo, sua madrasta, Agatha. As paredes de diversos tons de rosa e ouro, agora foram pintadas de verde oliva e Julia já não mais tinha permissão para adentrar o recinto, tampouco possuía alguma vontade de fazê-lo, afinal aquele lugar não mais lembrava-lhe da mãe, não mais cheirava a ela.
Seu novo refúgio, não tão tranquilizador ou nostálgico quanto o quarto rosa, agora era o vasto pasto da propriedade. Durante os dois anos que durou o segundo casamento de seu pai, Julia, em todo o seu tempo livre das aulas com sua preceptora, sempre deitava na grama úmida e se colocava a ler. O ar do campo enchendo seus pequenos pulmões e ajudando-a a lembrar os significados das palavras que ela demorava a encontrar no seu vocabulário infantil.
As atenções da madrasta pertenciam integralmente ao filho do primeiro casamento da mulher, Jonas, seu agora meio irmão, que tinha 13 anos na época. Agatha realizava todo e qualquer desejo do menino que, por sua vez, conseguia manipular a mãe sempre que queria.
Julia nunca gostou dele, sabia que um cavalheiro não deveria se comportar daquela forma, tão melindroso com a mãe, mas ela passou a de fato odiá-lo quando, em apenas alguns meses, ele cresceu muitos centímetros a mais do que ela e passou a olhá-la de uma maneira que ela detestava, com aqueles olhos verdes que eram frios demais para uma criança. Era como se quisesse abraçá-la, mas também machucá-la. Ela não se sentia à vontade perto dele, e por isso o seu terceiro refúgio passou a ser o seu pai.
Passava horas na biblioteca com ele e seu peito borbulhava de amor e gratidão toda vez que ele ignorava a madrasta quando a mesma dizia que Julia deveria ficar na ala das crianças, e nunca passar mais de uma hora na companhia dos adultos.
Essa reaproximação com o pai, quase dois anos após a morte da mãe, foi um bálsamo para o coraçãozinho partido de Julia. Durante os meses seguintes os dois ficaram inseparáveis, o pai até mesmo a ensinou a atirar e ela se sentia quase como uma adulta, amava o seu terceiro refúgio, até que este lhe foi tirado dela.
O pai morreu em um acidente na estrada quando faltava apenas um mês para o seu aniversário de oito anos. Foi a segunda vez que seu coração foi partido.
Julia permaneceu o mês inteiro trancada em seu quarto e passou o seu aniversário sentada ao chão, em meio à livros e roupas antigas da mãe que ela havia guardado para si, tentando imaginar se ainda conseguiria encontrar um refúgio depois de tudo.
Sua preceptora insistiu para que ela voltasse às aulas e Julia, por fim, cedeu. Toda vez que saía do quarto imaginava que seu pai estaria a sua espera no corredor, com um sorriso nos lábios a convidá-la a matar aula e irem pescar ou praticar tiro ao alvo. Toda vez que aquela fantasia não se realizava, ela tinha cada vez mais certeza de que jamais seria feliz de novo.
Quando Jonas estava em casa ela não se atrevia a sair de seu quarto. Não gostava de estar com a sempre fria e indiferente madrasta, mas com seu meio irmão ela não conseguia suportar. Não sabia o que significava aqueles olhares e sorrisos que ele dava a ela, mas a fazia sentir frio e medo. Ela o evitava a todo o momento, mas ele sempre estava plantado ao corredor, impecavelmente limpo para uma criança e olhando-a com aqueles olhos verdes gelados, daquela maneira que fazia suas entranhas revirarem.
Julia apenas ignorava tudo e saía do caminho dele, sempre foi assim, até que Jonas passou a invadir seu espaço físico: puxava-lhe o cabelo, lhe rasgava a saia do vestido, a empurrava. Ela já não sabia o que fazer, contar a madrasta seria apenas inútil, ela jamais poria a credibilidade e inocência do filho em jogo por causa de uma órfã como Julia, como ela sempre deixava claro, em qualquer oportunidade.
Após três meses da morte do pai, Julia havia emagrecido tanto que mesmo os grandes vestidos infantis não conseguiam esconder a sua estranha e incomum magreza para uma menina de apenas oito anos.
Certa tarde, quando ia buscar biscoito e leite para o lanche na cozinha, a única refeição que comia por inteiro durante o dia, encontrou Jonas no caminho. Ele estava quieto embaixo da escada do hall principal, quase completamente escondido pelas sombras. Ele era magro também, mas parecia mais alto do que os seus quase 14 anos, e quando a olhava daquela forma, era absolutamente mais assustador do que qualquer adolescente deveria conseguir. Um estremecimento de medo se apoderou de Julia quando ela viu toda sua figura alta e magra encolhida no escuro, a observando, como um felino à espreita. Decidindo não se importar em parecer covarde e, pela primeira vez, sentindo sua segurança verdadeiramente ameaçada, ela correu em direção à saída. Ouviu a risada sombria de Jonas atrás dela e sabia que ele estava em seu encalço.
O sol cegou seus olhos quando pôs os pés no campo, mas ela continuou a correr, sentia Jonas mais perto e percebeu que fora uma péssima decisão ter fugido para fora da casa. Olhou rapidamente ao redor, mas não havia ninguém a vista e com ele logo atrás não conseguiria dar a volta. Ela tentou regular sua respiração e correr ainda mais rápido, até sentir seus pés queimando. Por mais veloz que fosse, suas pernas eram muitos centímetros mais curtas que as dele, e Julia estava certa ao sentir o medo mais forte daquela vez, pois algo de fato havia mudado em Jonas, e dessa vez ele estava imerso em um determinação perversa. Ele a alcançou pelas saias e ela ouviu o tecido rasgar-se e sentiu o vento frio em suas pernas pálidas e magricelas.
Julia perdeu o equilíbrio e caiu com um baque surdo nas raízes duras de um grande carvalho. Sentiu uma pontada aguda na costela direita e quando tentou se mover, a dor cresceu a ponto de a deixar sem ar.
Jonas aproveitou-se da situação e atirou-se sobre ela. Julia viu, através dos olhos embaçados pelas lágrimas, quando ele desabotoou as calças. Ela não sabia o que ele faria, mas tinha certeza de que doeria mais do que suas costelas. Talvez doesse mais do que nas duas vezes em que seu coração fora partido antes.
Ela não permitiria.
Julia encheu uma mão com areia e atirou ao rosto dele, mas quando ela tentou levantar-se e fugir ele bateu sua cabeça contra as raízes e ela sentiu de imediato o sangue quente escorrer pela nuca. Jonas se aproximou, e mais do que nunca ela se sentiu como uma criança pequena e insignificante, cuja alma seria quebrada pela primeira vez.
Um grito feminino de horror fez com que Jonas parasse e se afastasse caindo com o traseiro no chão, Julia não olhou para a mulher que fora sua salvadora, apenas viu a oportunidade para fugir e assim o fez. A última coisa que ouviu foi a voz da desconhecida dizendo:
– Vá atrás dela, Marcus! Cuidarei deste pequeno monstro.
Julia correu às cegas pelo bosque, o frio fazendo seu corpo ter espasmos violentos. Sua visão se tornava cada vez mais turva e ela já não sabia se havia de fato se afastado ou se apenas estava correndo em círculos, não reconhecia nada ao seu redor e sentia que a qualquer momento suas pernas cederiam.
Até que ela deu de encontro com um corpo bem mais alto que o seu, o impacto quase a fez cair, mas mãos ossudas e gentis a ampararam.
– Acalme-se, não vou machucá-la, eu juro – disse o menino a sua frente, com a voz firme.
Ela sentiu cheiro de campo nele, cheiro de lama, notou que as roupas estavam sujas e desalinhadas, como uma criança deve ser.
Mas foi ao inclinar a cabeça para trás que ela viu aqueles olhos azuis, tão escuros quanto o mar depois de uma terrível tempestade, mas que de modo algum passavam medo ou crueldade, eram nada mais que gentis e, segundos antes de desmaiar, a última palavra que lhe veio à mente foi: refúgio.
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A Melhor Amiga do Conde
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