Capítulo III: Chuva fina

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Eu nunca gostei de cemitérios. Criança, me levavam para visitar o túmulo de alguns finados familiares que nunca cheguei a conhecer. Eu nunca gostei de cemitérios. O cheiro de velas queimando, incenso e morte sempre me causou enjoo.

Eu não fui no enterro dos meus pais. Mas eu tenho a lembrança do caixão fechando, das pessoas de preto. Eu não precisei ir para poder ter essa imagem na minha mente, enquanto chorava no quarto escuro. Eu sou uma péssima pessoa que nem pode ir no enterro dos próprios pais.

Peraê! Por que você ainda está lendo esse livro? Pare de lê! Eu não mereço chamar a atenção de ninguém. No fim Aysha está certa em me matar. Eu não valho muita coisa. Qual a diferença dos átomos de um corpo morto e de um corpo vivo? Eu não vejo nenhuma.

Desculpe. Eu sou exagerado. Mas você realmente deveria pensar no que está lendo e em quem passa a confiar. Eu posso estar mentindo tudo. Eu posso ter ido ao enterro dos meus pais. Ou talvez não. Possivelmente não. Com certeza não. Você sabe que eu não iria...

Desculpe por perder o foco. Eu odeio cemitérios, por isso eu estou aqui enrolando. Dois meses de morte. Aniversário de morte. Uma expressão contraditória, mas eu a usarei. Aniversário de morte de meus pais. Já havia recebido o aviso da profecia. Eu esperava o segundo. Eu sabia que ele viria.

No segundo mês eu fui retornando minha vida à normalidade. Voltei pra faculdade, fingia uns sorrisos aqui e outros ali. Dava pra enganar muita gente. A maioria nem sabia que eu não estava bem. Melhor assim. 

Nesse retorno à rotina, eu criei coragem de visitar o cemitério, eu acho que devia sentir que isso era meu dever. Ou quem sabe foi aquela profecia. Mal provável ser a profecia.

Chovia no dia, chovia de uma forma fina. Eu rio disso hoje. Chovendo, na minha visita ao cemitério, isso é extremamente ridículo, mas é verdade. Eu odeio cemitérios. Ainda mais em dias chuvosos. A chuva era fina. Não levei um guarda-chuva. Eu não ia precisar, a chuva era fina.

Meus pais estavam enterrados no túmulo ao lado de um avô que nunca conheci. Eu deveria dizer que isso me entristece ou que me gostaria de conhece-lo, mas na verdade eu nem lembro o nome dele. Eu andava cabisbaixo, olhando a terra molhada, deixando as gotas da chuva escorrer pelo meu cabelo e barba. Faltava pouco para eu chegar ao túmulo deles, quando eu levantei minha cabeça e vi um sujeito envelhecido, com cabelos brancos e pele enrugada. Ele chorava sobre o túmulo. Eu quis voltar, mas algo me impulsionava para ele. Lei da atração de corpos. Física newtoniana. Dois corpos no espaço são atraídos em função do produto de suas massas e do inverso do quadrado de sua distância. Acho que Newton esqueceu uma variável: o destino. Dois corpos irão se atrair se isso lhe for destinado. Eu só estou brincando. Eu não acredito em destino.

Ele chorava sobre o túmulo, quando cheguei. Ele não percebeu que me aproximava. Continuou chorando. E eu o observei, sem que me notasse. Passou-se um tempo, quase que quinze minutos. Ele continuou chorando. Não tem problema, eu tinha todo o tempo do mundo para esperar. Ele não falava nada, nem fazia qualquer barulho no cemitério vazio. Não parecia haver qualquer som no cemitério. Eu odeio cemitérios.

Ele, enfim, parou de chorar. Ele levantou a cabeça, surpreendendo-se com minha presença. Disse assustado:

-Meu jovem, o que fazes aqui?

-Eles são meus pais. Eu nunca tinha vindo aqui antes. – Nesse momento eu comecei a deduzir que aquele deveria ser o coveiro. Devia ter ouvido a história da morte de meus pais. Um coveiro gentil.

-Meu jovem! – Disse me abraçando. Lei da atração de corpos. Não sei lhe explicar, mas esse abraço não me pareceu estranho, era como a sensação de uma amizade antiga, de uma conversa com um amigo de velhos tempos que a muito não se vê. – A forma que eles foram... não precisava ser assim.

A chuva fina começou a se confundir com minhas lágrimas. A chuva fina não se misturou com as grossas lágrimas que ele derramava. Eu não sabia quem era aquele sujeito, mas de alguma maneira, ele me entendia. ...Ele sabia tudo que precisava saber sobre minha situação. "Eu odeio cemitérios" eu lhe disse. Ele me respondeu: "eu também". Nós afastamos e eu pude olhar pela primeira vez os olhos de capela que ele levava em sua face.

Ele se despediu. Disse que estava em sua hora, deveria ir, ele tinha que visitar outro túmulo. Ele foi abrindo caminho entre as lápides, eu observava suas costas ficarem cada vez menores. Eu não tinha perguntado seu nome, eu percebi. Já distante de mim e do túmulo de meus pais, eu decidi romper o silêncio do cemitério. Gritei perguntando seu nome. O silêncio do cemitério foi rompido novamente, quando ele me respondeu que se chamava Noé. Curioso nome, lhe respondi com um sorriso que ele não deve ter percebido, ele seguiu seu caminho em meio às lápides. E eu voltei a fixar meus olhos sobre o túmulo. Eu odeio cemitérios. O silêncio retornou.

Eu nunca soube rezar. Algumas pessoas dizem que é muito fácil: você juntas as mãos, fecha os olhos, começa a agradecer, pedir, perguntar, repetir o que você ouviu na missa; eu nunca consegui fazer isso. Esses atos me sempre foram estranhos, alheios a mim. Eu não poderia realiza-los, havia algo em mim que os evitava. Não me entenda errado, eu acredito em Deus. Só não sei rezar.

Mesmo assim, na frente do túmulo, eu juntei minhas mãos; uma gota de água percorria meu nariz, se mantendo fixa no fim, essa foi minha última visão antes de fechar os olhos. Eu, então, questionei o porquê de ainda estar vivo, tanto no lugar de meus pais quanto em relação ao caso de Aysha. Teria algum motivo maior para eu permanecer vivo ou a razão seria simplesmente o óbvio, estou vivo por estar vivo, sem qualquer motivo maior? Eu não obtive uma resposta direta, acho que ninguém recebe uma resposta direta de uma prece. Eu nem mesmo sei se eu entendi a resposta. Por isso que antes de morrer eu escrevo essas memórias, talvez eu possa enfim entender essa resposta.

Já era hora de ir embora do cemitério, começava a anoitecer. Eu me despedi do túmulo com um sorriso. Não sei justificar porque sorri. Eu sou inconstante, nem eu me entendo. Eu já disse: por que ainda lê esse livro? Eu apenas devo estar te irritando. Pois bem eu me despedi do túmulo, era hora de voltar a casa. Antes de ir embora eu parei e olhei o túmulo de meu avô que jamais conhecerei. Seu nome era Noé e lembrei do fato que o túmulo de minha vó estava em meio as sepulturas seguindo em direção ao norte. Eu realmente odeio cemitérios.

Curioso fui embora. Curioso voltei ao meu quarto. Curioso porque percebi ao me olhar no espelho antes do banho, haviam duas marcas de mãos em minhas costas. Eles estão aqui até hoje.

Essa foi a história do segundo pedaço de minha alma, um momento que eu pude recuperar a percepção de uma saudade e fé ainda que pequenas. Eu não sei dizer se esse pedaço seria sobre fé ou seria sobre coragem. Fé porque eu enfim ousei realizar uma prece, ainda que mal feita; coragem porque eu enfrentei meu nojo aos cemitérios.

Ou pode ser sobre lembrança. Marcas de memórias. Pode ser isso. Deve ser isso. Quem eu quero enganar? Eu não sei. A verdade é que eu não entendo nada disso que aconteceu nesse dia. Nem naquele momento, nem hoje, segurando a caneta. Eu não entendo nada. Por que você lê esse livro? Lê algo de alguém que não sabe nada. Você é tão estranho quanto eu.

Apenas para terminar esse capítulo, porque o tempo para a visita de Aysha se aproxima, permita-me te dizer que o que me sobrou dessa história é minha aversão a cemitérios crescer. Eu odeio cemitérios. Agora podemos seguir para o terceiro encontro e a traição.

À espera do fimOnde histórias criam vida. Descubra agora