Capítulo V: Insônia

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Eu nunca confiei em ninguém, nem em mim mesmo. Sempre fui assim. Tudo que eu precisava se resumia ao que conseguia. Mesmo assim eu nunca achava que ia conseguir. Era sempre isso: eu contra o mundo, sempre fui assim. Por causa de tudo isso, eu tinha muitas dúvidas de como eu acharia o quarto ou como ele se apareceria... afinal eu não confio em ninguém, poderia ser qualquer um. Eu tinha uma ideia do que poderia ser, depois daquelas experiências que tive, eu já sabia que essas maldições gostam de ser irônicas, questionava como eu iria devolver meu próprio coração.

Desculpe, se estrago a surpresa ou se escrevo mal, sem tensão, somente é algo que não posso enrolar, ou mesmo usar palavras pomposas, o tempo está acabando: Aysha está voltando, preciso terminar essas palavras marginais rapidamente, rapidamente como o beijo dela.

Eu tinha dormido mal, já estava habituado a isso. Desde àquela noite, eu nunca dormi direito novamente. Eu revivia a luz da lua, o som do silêncio daquela noite, as estrelas mudas, o frio e maldição. Memórias e sonhos se confundem, no meu caso realidade e fantasia se mesclam criando: essa nova joia convexa, porém aberta, manifestada diante dos meus olhos da confluência dos reinos invisíveis. Isso foi perda de tempo, deixe-me voltar ao que importa.

Eu acordei, naquela manhã com meu corpo fraco, bambo. Fazia um trabalho árduo para me mover, caminhei em direção ao banheiro, mecanicamente, como engrenagem se movendo em um animal mecânico, eu não tinha mais alma, apenas pedaços. Eu não era um fantasma na máquina, mas uma máquina somente.

Entrei no banheiro, estava ainda escuro, a luz do sol mal estrava pela pequena janela, virei-me para o espelho. A figura que vi não era a mim. Não era uma máquina vazia, era um homem. Seus olhos não eram brancos como os meus, eram vermelhos como sangue. Aquilo não poderia ser a mim, eu tinha total certeza que aquilo não poderia ser eu. Ele sorria, eu chorava. A raiva me dominava ao observar aquela figura com meu rosto, com meu nariz, com minha boca, com minha pele, com meus braços, com meus cabelos, ele tinha tudo que eu tinha, menos os olhos. Olhos vermelhos. Olhos sangrentos. Vermelho como a raiva que me dominava. Eu observava aquele reflexo, não sei dizer se essa é a melhor palavra, porque aquilo não era eu, e a raiva me dominava.

Eu não poderia olhar para aquilo mais, jamais poderia olhar novamente aquilo eu exclamava.

Gritei. Minha mão se levantou. Sangue. Pedaços. Espelho quebrado. Enfim paz. Meus olhos. Tão cansados. Vermelho-sangue. Líquido escorrendo. Vidro posto ente meus músculos. Dor, muita dor. Lágrimas. Mais lágrimas.

O último parágrafo ficou mal escrito, não me importo. Eu sou um mau escritor e tenho pressa. Me desculpe. Já devo ter me desculpado demais nesse livro. Não pedirei mais desculpas!

Desculpa, eu exagero. Piada ruim, é eu sei. Só quero enganar minha mente um tempo, criar coragem para escrever os eventos subsequentes com o espelho, essas coisas deveriam ser mais fáceis, afinal eu vou morrer hoje. Eu pensava que poderia falar com facilidade de tudo, mas desde o capítulo anterior, percebo que prefiro levar ao túmulo algumas coisas. Algumas coisas somente as almas penadas tem direito de saber.

Pois bem. Eu tenho que contar um pouco sobre esse evento ainda, eu comecei a contar, contarei as partes mais importantes. Dos fragmentos de vidro espalhados, uma criatura saíra de dentro. Com os mesmos olhos vermelhos. Sua pele era desfeita, como se fosse uma carne de um animal morto carcomido, sua boca era presa na extremidade evitando todo e qualquer movimento, suas orelhas se fechavam, deveria ser surdo. Aquela figura tinha a minha altura, mas eu a olhava de baixo, ele era maior do que eu.

Suas mãos em formas de garras e com unhas pontiagudas se aproximavam de meu peito, eu não tentei resistir, não havia motivo. Abria meu peito com suas garras, mostrando uma caixa torácica vazia: o coração não estava lá. Eu via minhas entranhas, minhas vísceras todas expostas, ali senti o gosto da morte novamente, mas não tive medo. Porque o derradeiro gosto de morte viria de Aysha, isso eu sabia. Com aquela boca estranha e disforme, a criatura riu silenciosamente e, também, abriu seu peito mostrando um coração costurado, com linhas entremeadas, formando um novelo torto e feio. Sangue. Eu sentia um gosto de sangue na boca. Sangue.

A criatura arrancara o seu coração, os fios se perdiam e os buracos se tornavam visíveis. Eu observava tudo aquilo com meu peito aberto, buscando deduzir os próximos atos da criatura de olhos vermelhos. Ela introduziu o coração em meu peito aberto, senti as veias e artérias se fundirem àquele pedaço de carne pútrida que se instalava em meu peito, a dor é indescritível, nenhuma palavra da comunicação humana poderia ser usada para descrever como eu sentia tecidos e células se fundirem e morrerem. Uma supernova ocorria em meu peito, isso talvez sirva de comparação, apesar de achar ainda que não demonstre a real situação.

Após todas as ligações serem estabelecidas, eu tombei ao chão, apoiando-me em meus braços e pernas. Senti em minha boca um líquido viscoso escorrer, transpassando minha garganta e minha alma aquele líquido viria ao mundo. Vomitei um sangue negro, negro como aquela noite, negro como meus olhos eram.

Eu acordei no chão do banheiro, não havia rastro do sangue negro no chão, o espelho estava intacto. Mas eu via em meu peito uma cicatriz que nunca havia visto antes, na região coronária. Aí estava o que precisava. Um único indício de que aquilo acontecera, mesmo que em sonho. Ali estava recuperado meu coração supunha. Pensei em abrir novamente o peito, para confirmar aquela verdade, não tive coragem, apesar de já estar com a faca em mãos.

Então, assim eu me olhava no espelho, encontrara quatro pedaços, eu já estava perto da completude, poderia superar aquela máquina vazia que era e enfim voltar a ser um fantasma em uma máquina. Faltava somente um pedaço, somente um. O quarto pedaço deveria ser a esperança ou o desejo, porque a minha vontade de recuperar o quinto fora atiçada nesse dia, talvez por isso tive que esperar por dois anos para recuperá-lo.

Esperei pacientemente o quinto pedaço, feliz com quatro pedaços e com meus olhos vermelho. No dia que escrevo isso, eu recuperei o quinto pedaço. Permita então, acabar minha jornada como desalmado e enfim contar como recuperei o último pedaço.

À espera do fimOnde histórias criam vida. Descubra agora