Capítulo VI: Uma morte imortal

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Minha história se aproxima do fim. Os eventos de agora aconteceram ontem e dois anos depois dos eventos do quarto pedaço. Ajudei algumas pessoas aleatórias pelo caminho desses dois anos, uma garota que teve a pele transmutada em escamas, um cara que teve a mão seus olhos transformados em lava e alguns outros. Mesmo assim, já fazia tempo desde a última vez que encontrei com alguém que havia cruzado a fronteira, uns onze meses. Eu ansiava o próximo, eu havia me viciado no sobrenatural. Ana vivia mandando eu esquecer sobre aquele lado de lá, eu devia me focar no que era visível para todos. Talvez ela estivesse certa. Não, nem eu quero enganar? Claro que ela não estava. De que importa a morte, diante de explorar essas terras desconhecidas?

Veja, eu sou desprezível e mesquinho. Isso é inegável. Essas experiências se tornaram uma forma de me conciliar comigo mesmo: se eu ajudasse aquela pessoa estava bom. Eu não ajudava para salvá-lo, na verdade eu nem mesmo me importava com eles; eu os ajudavas para me salvar. Porque eu morrerei! Eu preciso comprar meu espaço no céu, a dor que vivi em vida, já bastava. Não sofreria de dores inimagináveis no inferno. Apenas a vida bastou.

A noite começa a se esfriar. Aysha daqui a pouco estará em minha porta, eu morrerei. Deixe-me contar a história nem um pouco interessante do quinto pedaço.

Ela caiu nos meus braços. Não digo de forma figurada, mas literal. Ela caiu da escada, caiu morta no chão, ou pelo menos pensei. Seu corpo então se refez, seus olhos, seus ossos, tudo. Ela estava ali revivida diante de mim. Pronto, achara mais um. Fiquei extremamente motivado em agir, ainda que não expressasse aquilo na hora. Ela saiu correndo, tinha medo do que faria, já que ela era imortal. Em resumo, era um monstro, uma desumanidade ambulante. Como se pode chamar de humano algo que não morre?

Eu a reencontrei na cafeteria, ela veio falar comigo, pedir sigilo, ofereci ajuda, ela aceitou. Ela nunca tinha visto aquele mundo atrás da neblina da nossa visão, os segredos do mundo se revelavam pela primeira vez pra ela. Ela sorria, ria e chorava, pelo que lembro. Me desculpe, ainda que seja eventos de ontem, tenho dificuldade em lembrar, por isso preencho os buracos com o que acho que caberia. Não se preocupe, não são mentiras, são verdades que não aconteceram.

Ela só precisava tirar aquela imortalidade do corpo, algo simples. Pedro com certeza sabia o que fazer. Levei-a para ele. Ela parecia ficar deslumbrada e assustada com as coisas que via. Eu fazia meu melhor para explicar aquelas coisas. Tomei até como paralelo uma história sobre Beethoven, foi extremamente belo, pena que o tempo é curto, então não caberia eu gastar tempo ao conta-la aqui. Apenas direi o por cima: não sabemos o que existe nesse mundo, não sabemos de nada.

Pois bem, eu a levei a Pedro, foi um reencontro comovente, conversamos, ela disse sua maldição. Um ritual iria resolver, simples. Pedro o preparou, afinal essa era sua função, preparar os rituais. Ela só precisava interagir com uns bonecos ou coisa assim, não sei.  Fui-me embora logo depois, porque eu já sabia que ela era a quinta. Os olhos de Pedro clamavam que ela era a quinta, eu não havia visto isso, mas era obvio que ela seria o quinto. Porque o quinto só poderia ser o pedaço da morte e ora quem melhor para ser o emissário da morte senão um imortal?

Eu não vi o ritual, fui-me embora logo quando começou e Pedro me disse para se cuidadoso, eu acho. Não sei o que houve com ela. Ah! Havia esquecido seu nome era Laura. Laura deve ter morrido, com certeza ela devia ter morrido.

Voltei à minha casa vazia, dormi, acordei tarde, fui ao banheiro, comi, tudo isso já sabendo que Aysha viria novamente. Eu já havia resignado de minha vida, existem coisas que não se podem ser evitadas, a morte é uma delas. Por isso escrevo essas palavras, eu irei morrer, achei justo que minhas experiências fiquem abertas para o mundo. Um toque narcisista a minha morte. As pessoas talvez se lembrem de mim. Leitor, não se esqueça de mim, sem você eu não sou nada. Por favor, não se esqueça de mim.

Permita-me me despedir de você, o tempo da morte me chama, o tempo de reencontro se aproxima. Me pergunto se devo falar com amigos, me despedir de pessoas, na verdade eu abandono tudo isso, de nada me servirão na morte, que dia triste esse em que abandono até o abandono. Isso soou confuso, mas não reescreverei. Aysha está voltando. A noite está ficando mais fria.

Eu não tenho mais qualquer coisa para lhe dizer, a caneta não pesa nada, poucas palavras restam armazenada em seu cartucho de tinta preta. Noite fria. O vento entra pela janela. Não tenho mais palavras, para descrever. Cansei-me de escrever. Cansei-me de viver. Cansei-me.

Antes que essa caneta acabe, permita-me agradecer você, por ter lido tudo isso... por que você leu? Eu escrevo mal e minha história é enfadonha. Você não deve ter nada pra fazer... Talvez seja que nem a mim, esteja só esperando pela morte.

Desculpe, eu estou exagerando novamente. Eu sou exagerado. Eu te irrito não? Você saíra desse livro, exclamando como o narrador era chato. Tudo bem. Eu sou chato.

Adeus, leitor. A noite está fria. Aysha está voltando. Faltam dez minutos para que ela chegue. Ela é pontual. Ela é dramática. Deixo a caneta agora. Irei para a porta, ela me espera lá. Adeus, leitor.

Irei para a minha morte. Não precisa rezar por mim. Eu saio quite com a vida, assim espero. Já escrevo demais. Adeus.

                                             FIM da parte II

À espera do fimOnde histórias criam vida. Descubra agora