Capítulo IV: Ela chegou atrasada

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Ana voltou da viagem pela África. Eu tinha esquecido do seu retorno. Não fui até o aeroporto, não fui a sua casa, nem liguei. Ana claramente ficou brava comigo. Ela estava claramente brava quando eu a vi na universidade. Tive que pedir algumas desculpas, ela fez um certo drama, mas enfim a amizade tinha que continuar, não iria acabar apenas por uma coisa como aquela. Eu me pergunto o quanto esse meu esquecimento impactou na traição dela? Eu sempre confiei em Ana, não consegui prever que ela me venderia... na verdade eu nem sequer havia percebido que isso poderia acontecer.

Pedro já tinha me avisado que as pessoas que eram próximas de mim poderiam se tornar alvo de alguma maldição, de alguma coisa para me atingir, para que Aysha pudesse enfim arrancar o frio elixir da vida que resistia em meu corpo. Mas eu não confiava tanto assim em Pedro. Ele sempre foi cheio de si, tomava as decisões pensando somente no melhor para ele, não se importava em pisar nos outros, faria qualquer coisa por seus objetivos. Ele era um rei, afinal. Eu não sei dizer porque demorei tanto para perceber sua realeza, mas isso eu contarei depois.

Ana, até hoje, sempre se preocupou como as pessoas a olham, por isso ela gosta de se parecer ideal: tirar notas boas, ficar sempre bonita, ficar de bem com a família e por aí vai. A questão era que seus pais nunca iam entender que ela não gostava disso, ela não queria estar naquela universidade sentada, numa aula sobre parasitologia, ela queria andar pelo mundo, atravessar os desertos, conhecer pessoas, amar quem amasse, ou seja, ela só queria viver nesse mundo como um todo. Mas ela não pôde, ela ficou pressa à essa cidade, ao pais e a palavras que prometia sem pensar. Eu sempre percebi isso, assim como percebia quando estava triste, eu sempre a dei apoio no que escolhia, por isso ficamos amigos: um sempre apoio o outro, eu, quando a máscara dela caia e sentia um vazio, ela, quando eu não conseguia mais me manter são e eu começava a ter meus exageros e buscas por sentido em qualquer coisa. Nós dois éramos extremamente complicados, complicados até demais, mas ninguém sabia disso. Eles viam na Ana a garota perfeitinha e, em mim, um cara qualquer que não tinha nada pra impressionar ninguém, nem por fora ou por dentro. Eu não tinha como esperar que ela me traísse.

Na verdade, eu diria que ela não teve escolha. Eu deveria ter percebido mais cedo. Ela voltou com uma marca no pescoço, uma espécie de aranha. Eu só notei isso tarde demais. Toda a universidade falava nela, mas aos poucos a conversava foi sumindo. Passei a vê-la raramente na universidade, o ano foi se passando e eu já esperava pelo terceiro encontro, isso começou a me ansiar, eu ficava refletindo uma forma desse evento acontecer, como ele poderia acontecer? Ele já acontecia e eu não notava.

Eu deveria ter percebido, ao escrever essas palavras eu noto minha falha, eu deveria ter percebido... você deve se questionar se realmente eu compreendia Ana, eu também me questiono, sua dúvida é justificável, seu julgamento também. Talvez você estranhe a franqueza com que o atinjo com essas palavras, mas a verdade que um homem condenado a morte se sente em fim livre. Eu não tenho porquê para esconder minhas falhas ou meus defeitos. Eu admito que nessa vida deixarei um débito, ainda que muitos acreditem que deixarei crédito. Eu falhei bastante, talvez ninguém perceba isso. Talvez só eu percebo que eu sou falho. Triste, as pessoas serem cegas as falhas dos outros. Me desculpe. Esse é outro dos meus exageros. O tempo está acabando. Aysha vai voltar. O delírio começa a me dominar. Eu tenho que terminar essa história. Eu tenho que terminar essa história. Permita-me continuar, sem mais delongas.

Ana sumia, ela desaparecia. Logo ela que sentia todos os olhos do mundo voltados para si, aquilo devia ser uma benção, mas na realidade aquilo feriu ainda mais sua alma. Aysha a encontrou. Ela disse que poderia curá-la se ela me entregasse. Não sei como posso descrever a reação de Ana, porque este parágrafo são somente minha deduções e hipóteses. Também gostaria de saber se ela sentiu dificuldade em me vender, se refletiu noites, se ponderou, o que pensou, eu gostaria de saber o que Aysha disse a ela e até gostaria de saber se Ana aceitou a proposta sem qualquer dúvida, mas eu não sei de nada. Deixo, então, à cargo de você, meu leitor, julgue essa pessoa que mal descrevi, que mal contei seu passado, escolha como ela agiu. Julgue sem preocupações, você nunca a encontrará, nem mesmo precisará esclarecer o motivo de ter escolhido a venda direta sem dúvidas ou a venda duvidosa, refletida e sofrida. Escolha, essa é minha tortura com você leitor, escolha. Eu o torturo, eu sou um péssimo autor. Eu sou uma péssima pessoa. Porque na verdade eu não sei de nada, por isso torturo a todos com minhas perguntas.

O que posso dizer sobre isso que a maldição que Aysha havia posto em mim era maior do que esperava, quando ela chegou em minha casa acompanhada da Dama Branca, eu pensei que ali tinha acabado, mas a maldição era mais forte. Ela não conseguiu devorar minha alma, uma barreira entre nós dois era erguida. Era isso que acontecia, quando as engrenagens do destino começam a se mover, nada as para, elas se movem até ao final. Aysha teve de recuar, deixando Ana às portas de minha casa. Aysha sumira na noite, exclamando que poderia demorar, mas a minha alma iria ser dela.

Ana foi deixada em frente à minha casa, esvanecendo da existência. Ela chorava, mas suas lágrimas já se tornavam invisíveis. Eu a olhei por apenas alguns segundos, mas esse tempo pareceu ter durado o infinito da criação do cosmo; eu não quis ajudar, mas eu ajudei. Ela era a terceira. Eu a ajudei. Eu não sei se eu deveria ainda ficar em contato com os cincos da maldição, ou se deveria evita-los. Pedro diria que eu devia ficar perto, porque assim minha alma se fortaleceria. Eu não consegui manter contato com os outros, somente Ana permaneceu em minha rotina. Estranho. Somente aquela que me deixou mais perto da morte, ficou em minha vida.

Levei Ana até Pedro. O ritual era simples. Ela deveria assumir o que era, tudo que verdadeiramente era. Eu não sei o que ela disse, ela assumiu muitas coisas, Pedro as escutou e nunca me contou. Nem mesmo ela. Pedro aplicou um feitiço nela, para que esquecesse de que me traíra. Ela não sabe disso, nem saberá.

Me desculpe se escrevo esse capítulo de uma forma mal detalhada, eu só não quero lembrar muito desse encontro, ele me causa um certo arrependimento. Essa foi o pedaço que retornou: a dúvida. Dúvida dos outros, de minha ação, do que sou, da verdade. Talvez você não entenda, você deve ser um daqueles cheios de certezas: amigos, amor, família, trabalho... você deve ter muitas certezas, assim como deve ter dúvidas que busca esconder. Permita-me lhe dizer que não adianta você tentar esconder a dúvida, elas são a única verdade, as certezas são meras ilusões.

Sim. Eu exagero novamente. Eu já disse eu sou inconstante. Que livro de qualidade duvidosa! Eu somente escrevo coisas sem sentido esperando a morte me abraçar. Eu não deveria lhe dizer, mas eu duvido até dessas lembranças, às vezes, acho que estou, apenas, enlouquecendo ou já seja louco. Bom, mas que seja! Apenas farei a única coisa que nesse momento alivia minha morte e destrói minhas incertezas: irei continuar a escrever.

À espera do fimOnde histórias criam vida. Descubra agora