Uma sutil flor no mar

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Eu me encontrava solitário, não que me fosse novidade estar assim, meu corpo se transformou, mas a alma é a mesma, nesse quesito nunca vou deixar de ser o velho Ethan. Depois de sair da floresta, aprendi a sobreviver por conta própria, peregrinando nesse novo mundo. O que eu poderia ser considerado? Monstro ou animal? Penso nessas coisas enquanto bato asas por entre montanhas. Pergunto-me, quanto tempo passou desde que abandonei as montanhas? Meu corpo cresceu nesse período, mas só consigo caçar algumas bestas. Só eu sei o quão difícil foi sobreviver, ter de me adaptar a esse novo ser, se soubesse de meu futuro, teria sido um caçador na vida passada, assim não hesitaria quando o sangue das minhas caças, respingassem em mim. Cheguei a passar fome, muita fome, por medo de caçar, lutar, e de morrer outra vez.

Até este dia não tive contato com humanos. Interrompi o bater de minhas asas acima de uma colina. Existia um ponto que evitava ultrapassar, porque adiante conseguia ver algumas aldeias povoadas, por humanos, ou pela raça imperante deste mundo, sei que não estou pronto para os conhecer e hesito em continuar. Se viesse voando as suas portas o que eles diriam: "Que belo dia, senhor dragão!" Não... Com certeza não. Agitando-as voltei aos céus procurando um lugar para chamar de lar. Lembro-me da primeira vez que ousei voar, sentir meus pés se afastando do chão, e o terreno se distanciando enquanto me entregava livremente as nuvens, no fim, penso que continuo humano, preso a sentimentos e emoções.

Com um longo tempo de voo, declinei meu rosto para olhar abaixo, passeava acima de um tapete azul que se estendia além do horizonte. Fechei minhas asas, despenquei do céu em queda livre, perfurando as nuvens e cortando o ar até estar rente ao mar, então as abri, atravancando a queda, terminando por levantar suas águas. Continuei voando nivelado a ele, que mais me parecia um espelho. Até hoje não me acostumei com essa aparência, este... Sou eu, não é?

Sentia-me pronto para retornar as nuvens, até que, com o canto dos olhos, avistei um objeto vindo me acertar, bati fortemente as asas, elevando a altura de meu corpo e o deixando passar batido. Olhei para sua origem, agucei minha vista para ver no mais distante, dois navios emparelhados trocando tiros de canhões. Apesar de não ter nada a ver com o assunto, meu coração pulsou, meu instinto de sobrevivência dizia para tomar precauções.

Mudei o curso me deslocando até o local da batalha, subi mais alto para ter uma visão panorâmica. Um dos navios se encontrava em péssimo estado, permanecendo na defensiva, enquanto tentava se afastar do outro. O disparo partiu de alguns deles, se acidental ou não pouco me importava, desci velozmente observando ambos mudando a direção de suas navegações, desconfiava já estar em suas miras. Tomei folego preenchendo o meu pulmão de ar, e quando no limite, rugi, pousando na proa de um dos navios. Disse não estar pronto para conhecer humanos, mas não podemos fugir de certas artimanhas do destino.

Os disparos pararam de ser efetuados com minha chegada, sentia o odor de seus medos, humanos, iguais aos da terra. Soldados rasos vieram com suas lanças até mim, mas o que pretendiam fazer com essas armas? Acostumei-me a cor do sangue mesmo que fossem somente os de animais, porque jurei não matar humanos, não poderia fugir a essa regra, se o fizer, quantos inimigos irei criar? Mas sabia que devia preservar minha segurança. Ao levantar voo, desferi minha cauda na vela mestra do navio, quebrando o mastro como se quebra um galho. Então voei e pousei no navio aderente, mas o que vi me deixou paralisado, poderia destruir facilmente este como fiz com o outro, entretanto, hesitei ao os ver.

Não são humanos, supus ao avaliar suas aparências. Agitados, eles formavam guarda entorno de uma garota, com arcos e flechas apontados para mim. Valentemente, uma mulher dos cabelos rubros empunhou sua espada, caminhando ao meu encontro, até que a garota a ser protegida pronunciou algumas palavras, a fazendo retroceder, e com seus cabelos oceânicos se aproximou de mim. Amedrontados, seus companheiros a tentaram impedir. Sentia raiva a cada vez que seus passos se tornavam próximos, queria bradar para que se afastasse, mas, de súbito, os canhões do outro navio voltaram a serem disparados, destroços voavam e soldados morriam.

O sangue em meu corpo ferveu, tive a certeza do que deveria ser feito. Deixando o navio daquelas pessoas peculiares, ambicionei o atacante. Com um voo rasante deslizei minhas garras em suas laterais, destruindo os canhões e os arremessando no fundo do mar. Suas lanças vieram ao meu encontro, as ter acertando meu corpo eram como pedras atiradas contra uma armadura de aço. Destruía com voracidade as partes do navio, até em um pequeno distrair, ser atingido por uma luz cristalizada e brilhante, minhas asas endureceram, bruscamente cedi ao mar. Aquela luminosidade as congelou e meu corpo pesado, agora se entregava as profundezas do oceano.

Teria me precipitado? Ainda que dragão, cogito ser apenas um filhote se comparado aos outros existentes, e sem pensar, entrei em uma batalha sem ter conhecimento das vocações dos meus inimigos, decerto essa insensatez acarretaria em meu fim. Justo quando pensei ter deixado a tolice de minha vida passada, me vejo enjaulado a essa própria ignorância. O gelo não se quebrava e meu ar se esvaia, outra morte patética me esperava, e suspeitava que o destino me deixaria ir para sempre dessa vez. Meus olhos visualizavam a superfície ficando distante, até ver uma agitação em meio aos destroços da batalha que afundavam junto a mim, alguma coisa nadava ao meu encontro como uma linda sereia. Quando seus olhos se encontraram aos meus, percebi ser a garota de antes.

Ela tocou minhas asas ficando a me afrontar, um calor repentino senti e o gelo passou a derreter. Recuperei meus movimentos quebrando o resto que me aprisionava, a apanhei com minhas garras, ela que ao meu ver estava um pouco debilitada, e avancei de volta a superfície emergindo aos céus, até me livrar do peso da água que segurava meu corpo. Voei a deixando em seu navio, seus aliados me olhavam furiosos e ao mesmo tempo, assustados. Sem me importar, investi novamente contra meus recém declarados inimigos e desta vez, quando a luminosidade procurou me encontrar, desviei de seu trajeto. Observei ter sido disparada por um humano em roupas emblemáticas, mas sem tempo para pensar no que poderia ser, voltei a atacar o navio até o incapacitar de continuar navegando, e no fim, recuei junto a ela da batalha.

Voando afastado, acompanhei o navio da menina até que estivesse a uma distância de seus inimigos, não queria admitir, mas ela salvou minha vida. Muito fragilizada, ficou sobre os cuidados da mulher dos cabelos flamejantes, seus lacaios procuravam reparar os estragos causados pela batalha. Quando a garota despertou, caminhou até a borda da embarcação e olhando para o alto, estendeu sua mão em minha direção. De asas pesadas eu precisava descansar, perdido em mar aberto só me restava usar seu navio. Deslocando-me até ele, voltei a pousar na proa sacudindo a embarcação, ela se afastou de mim. Encobri meu corpo com minhas asas confiando que me deixariam descansar, e ousei fechar meus olhos até adormecer.

O renascer - Aprendendo a viver.Onde histórias criam vida. Descubra agora