Capítulo 35

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Sim para velhos hábitos e conhecidos

MILA

A distribuição dos livros na prateleira da livraria para onde eu me conduzi sozinha é no mínimo bagunçada. Gêneros não se combinam, filhos da mesma escritora estão distantes um do outro. Não vale a pena organizar livros por cores pela atenção de uma foto se não é possível encontrar uma versão do Pequeno Príncipe.

Aposto no azul, passando os dedos entre as lombadas nesse tom. É necessário ser direta, sem me distrair com títulos que não vão caber na mala. Estou praticando o auto controle e pulando sinopses quando a mão de alguém toca meu ombro, fazendo com que eu dê as costas para a prateleira na minha frente, preparada para fazer uma pergunta a uma das vendedoras da loja.

— Mi. Oi. — O garoto a minha frente tem um sorriso aberto.

Os olhos dele estão apertados, examinando meu rosto, como se certificasse de que não me confundiu com uma estranha de franja. As sobrancelhas dele ficam franzidas, talvez em confusão por eu não ter dito "Oi, John".

— Clube do livro? Uns dois anos atrás? — Ele diz, intuitivo — Eu estava em Toronto em um inter...

— Você foi a pessoa que me corrompeu — Digo em tom imparcial, mas estou sorrindo.

Acabar com a saudade por um garoto com quem convivi durante onze ou doze dias é redundante, e até nulo. No mesmo sentido que rejeitar a empolgação por trocar palavras com alguém que se uniu a mim em idealizações anos atrás é um desperdício. Ao menos, eu espero que seja um desperdício.

Jonathan se aproxima, não estou compelida a recuar. Ao invés disso, meus olhos acompanham os traços esfumaçados da tatuagem de pássaro que ele tem no pescoço. As linhas que formam as asas se fundem com a cor escura da sua pele, sendo quase imperceptíveis. Isso e a barba rala não existiam, já o cabelo preto em cachinhos é o mesmo. Eu detalho o desenho de bússola e relógio que se estende por todo o braço em um Ace de poker e uma rosa cuja as pétalas são notas de cem dólares. Essa tatuagem estava incompleta quando nos conhecemos.

— Se as pessoas te ouvirem vão achar que não estamos falando de livros — Ele diz baixinho e se afasta, rindo da própria fala — Então como tá a vida?

— Ocupada. — Digo, caminhando em direção aos livros de capa bege no fundo da loja.

— Com qual livro?

Encontro a edição simples de Pequeno Príncipe, uma que é parecida com a primeira que li na infância e essa simbologia besta deixa meu dia bom um pouquinho melhor. Estou comemorando pequenas vitórias. Caminhar da casa do meu pai até aqui sem ansiedade ou pânico foi uma. Comprar um livro e falar com Johnny na máxima da minha espontaneidade é outra.

Na rua, Johnny veste o blazer que segurava e caminha comigo, pintando para estranhos a imagem de dois amigos que se falam com frequência. Eu não o afasto, não deixo o assunto morrer e não me aprofundo em nada que se dirija a mim. O que significa ficar calada sobre o episódio em que quebrei uma paleta de pintura, dois cavaletes e três quadros do estúdio do meu pai e fiquei estática na minha cama, manchando de tinta os lençóis, por horas completas. Conto coisas triviais a ele. Como fiquei feliz porque fiz uma bola de chiclete pela primeira vez dias atrás. E escondo outras. Como o Ethan debochou feliz de mim por conta disso, cantando uma música que ele inventou no momento.

John apenas ri de como eu fico animada por coisas bobas.

Essa parte da minha manhã me lembra da colega com quem Rô conversa nas ocasiões raras em que às duas se encontram por acaso. Claro que eu e John estamos longe de ser assim. Cidades diferentes, prioridades opostas. Mas a amostra grátis de conversar com alguém com a percepção de que nenhum tempo se passou desde a última vez está sendo degustável.

Era Amor Ou Uma Aposta?Onde histórias criam vida. Descubra agora