6. a boa negociadora kahei

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Mesmo Kahei sendo a única pessoa na face da Terra que eu poderia considerar como minha amiga, pensar em conviver com ela fora das redondezas da Block Berry era em certo ponto desconfortável, tanto na teoria quanto na prática. Nossa "amizade" — como nós chamávamos nossa relação, para parecer o menos estranho possível — basicamente se mantinha por causa de notas, comidas de graça e uma busca incessante em cair fora do tédio. Supríamos a necessidade uma da outra, não haveria motivos para precisarmos de ajuda no lado de fora.

E o inevitável acabou chegando. Sem escolhas, ao acordar, resolvi mandar uma mensagem à Kahei, pedindo para me encontrar com ela logo pela manhã. Ela correspondeu, e por dentro, torci para que nada acabasse soando esquisito entre nós duas no final.

Decidi fazer isso após o caso do sumisso de Yeojin e as consequências dos meus atos. Mesmo que mamãe não tenha nos pegado no flagra, eu me sentia culpada, e precisava arrumar um jeito de consertar as coisas, mesmo de um jeito nada haver. Por dentro, eu simplesmente explodia de vontade de falar com alguém sobre o que eu vira na casa de Hyunjin. Queria um ombro amigo, uma pessoa para me aconselhar, ou simplesmente ouvir meu desabafo. Talvez, comparado a mim, essa pessoa conseguisse ter coragem para fazer a denúncia anônima. Não sei. Apenas um sorvete diminuiria meu stress.

Na hora marcada, Kahei apareceu, e por incrível que pareça, manteve total neutralidade e generosidade comigo, como se estivéssemos em outra sede da BBC. Pedi o sorvete favorito dela, e enquanto eu jogava minhas mágoas no meu sabor de tangerina, Kahei contava as últimas novidades em relação a faculdade, o carro tão desejado e sua família.

A relação da família de Kahei era algo maravilhoso. E ela levava isso muito a sério. Pode ser por conta de serem chineses, e a religião influenciar muito nos costumes e tradições, mas mesmo assim, nunca deixaram de apoiar as decisões de seus filhos. Especialmente com Kahei, a filha mais velha, e a segunda da linhagem a frequentar uma faculdade.

Assim como a minha relação saudável de trocas com a chinesa, ela mantinha um estável e amoroso com seus familiares. Kahei tinha uma habilidade de fazer assumir favores e pedidos, e executava-os tão perfeitamente, que os outros acabavam esquecendo que a garota não era a sua amiga.

No fundo, eu fingia que isso era verdade.

— Agora, me conte, por que resolveu me chamar para sair? — Kahei arqueou as sobrancelhas. Terminei meu sorvete, e me afastei um pouco da mesa.

— Minha cabeça está explodindo, então precisava de alguém para contar logo, antes que eu enlouqueça. — Olhei seriamente para Kahei. — Sabe aquela garota, da pista de patinação? — A chinesa assentiu. — Acho que ela sobre violência dentro de casa.

Kahei ficou de boca aberta, e aproximou mais os ouvidos de mim. Suspirei, indo próximo a garota.

— Anteontem, encontrei ela em uma loja de artigos e presentes. Quando estava indo embora, eu corri para pegar o número dela. — Kahei balançou a cabeça em negatividade. Mais uma vez, eu era a besta da relação. — Só que ela mora perto da loja. E quando cheguei, vi ela toda machucada e com uma mulher obesa e brava. Acho que era a mãe dela, pois eram parecidas. — Me afastei, cruzando os braços. — Não sei o que posso fazer sobre isso.

Kahei levou a mão ao queixo por alguns segundos, até me encarar cheia de fúria.

— Você precisa denunciá-la! — Exclamou, chamando atenção de algumas pessoas ao nosso redor. Fiz sinal para ela abaixar a voz, e Kahei bufou.

— Não sei se tenho coragem... E se não for verdade? — Questionei. Kahei pegou seu sorvete.

— Heejin, sendo ou não verdade, nunca custa verificar. Pode ser alguma coisa grave e esse seu grande medo de decepcionar a sua paixonite só vai atrapalhar. — Senti minhas bochechas esquentaram. — Se você não ajudá-la, é aí mesmo que ela nunca vai reparar nos seus sentimentos.

— E se eu não quiser que ela repare? — Argumentei, mas todos nós sabíamos o que eu queria, e aquilo era mentira.

— Pelo menos, você salva uma vida do sofrimento.

><><><

A volta para casa parecia ser mais cruel do que a saída. Todos os meus sentimentos estavam embaralhados, vários pensamentos surgindo, interagindo com o certo e o errado, acabando por confundir minha percepção. Eu sabia o que deveria fazer, mas não tinha coragem. Meu medo se espalhava por diversos setores. Tanto em relação à Hyunjin, quanto à situação em si, se era verdade ou não. Ah, por que eu tinha que ser tão indecisa?

E como se meus pensamentos ganhassem vida, adivinhe quem eu vejo brincando na pracinha.

Hyunjin corre alegre pela areia, escapando de um garotinho selvagem, idêntico ao que eu tinha visto acompanhando-a na primeira vez. Outro estava se balançando sozinho, e gritava contente: "Hyunjin, Hyunjin! Olha o que eu posso fazer! Posso voar até o céu!"

Não soube por quanto tempo fiquei parada no mesmo lugar, mas já era tempo de Hyunjin ter reparado em mim, uma marmanja apaixonada parada feito estátua. Quando aconteceu, meu coração deu um salto ao mesmo tempo que Hyunjin, que balançava as mãos para cima.

Aproximei-me dos três, um pouco tímida. Cumprimentei todos, e torci para minhas mãos não começarem a suar dentro do casaco jeans.

— Oi, Heejin. Estava indo para casa? — Perguntou, e o garotinho selvagem puxou a camiseta de Hyunjin.

— Quem é essa, Jin? Quem é você?

— Heejin, uma... — Travei, encarando Hyunjin, sem saber o que dizer. — ... Uma conhecida dela.

— O que seria uma conhecida? — Gritou o menino no balanço, e Hyunjin riu.

— Um tipo de amiga, mas não igual a isso.

Os meninos balançaram a cabeça, entendendo uma lógica que meu cérebro não fizera muito esforço para compreender.

— Se ela é sua conhecida, ela pode brincar com a gente? — Perguntou o menino selvagem, e dei de ombros.

— Se a Hyunjin deixar, eu posso brincar. — Respondi. Faltava duas horas para o almoço em casa, e eu não tinha nada para fazer. Perder uma oportunidade daquelas de ficar com a minha crush? Jamais.

Os meninos imploraram para Hyunjin, que fez brincadeira de durona, mas no fim deixou.

Por uma hora e meia, aquela foi minha distração da realidade. Ocupar-me cuidando de duas crianças que eu mal conhecia, apenas pelos nomes — Eunjae e Sungjae —, para passar um tempo e conhecer mais a garota que havia roubado meu coração. Desse jeito, parecia bem fácil conseguir conquistar seu coração, e lutar por Hyunjin não aparentava ser um longo caminho pela frente. Desde que eu seguisse pelos atalhos, assim como Jiwoo fazia nos jogos de corrida do fliperama.

Mas uma hora, eles poderiam acabar. E eu teria que seguir na estrada reta, dura e difícil. Fazer a denúncia não era uma questão de paixão, agora era a vida de outra pessoa quem estava nas minhas mãos. E pior, sem ela mesma saber disso.

eu, tu, nós e eles ☆ loonaOnde histórias criam vida. Descubra agora