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E. T. A. HOFFMAN
◣◢◣◢◣◢◣◢◣◢◣◢◣◢◣◢— • I •—
Uma tarde de inverno, à espera do último dia do ano, senti de repente o sangue queimar-me nas veias e o coração gelar-me no peito. Lá fora, rajadas de tempestade agitavam a noite. Esta crise do céu transmitia-me descargas elétricas ao corpo; meu cérebro fervia como metal em fusão. Quando todos os meus nervos ficaram saturados desse fluido desconhecido, a que se dá o nome de febre ou delírio, não pude mais ficar em casa e corri para fora, sem manto, os cabelos ao vento. Os cataventos das casas guinchavam como gatos enfurecidos e parecia-me distinguir, entre as vozes confusas da tempestade, o tiquetaquear do relógio que assinala a queda das horas no abismo da eternidade.
Coisa bizarra! A véspera de Ano Novo que é, para toda gente, uma data alegre, encontrava-me preso de fundas dores morais. Seria porque, a cada festa de Natal, contando os dias que haviam decorrido e sentindo-me envelhecer, eu entrevisse mais de perto a aproximação do fim? Pressentia-o apenas e não podia evitar que um terror misterioso de mim se apoderasse; tanto mais quanto o diabo sempre teve o cuidado de reservar-me, para o São Silvestre, qualquer nova desventura.
Ontem, por exemplo, ao entrar num salão, deparei, sentada em companhia de um grupo de damas, com uma figura de feições angelicais... Sim, era Ela! Ela, a quem eu não via há cinco anos!... "Deus seja bendito", exclamei no fundo da alma; "Ela voltou para mim". Fiquei interdito, como se a varinha de um mágico me houvesse tocado. Nesse instante, o dono da casa tocou-me levemente o ombro:
—Então, caríssimo Hoffmann — disse me ele — em que pensas?
Voltei a mim, muito envergonhado de minha inépcia, e aproximei-me da mesa de chá para sair do embaraço.
Nesse momento, Ela me viu, levantou-se e veio dizer-me, num tom de voz cheio de indiferença:
— Tu aqui? Encantada de ver-te. Como tens passado?
Depois, sem esperar resposta, sentou-se novamente, dirigindo à sua vizinha estas palavras, que me trespassaram o coração.
— Teremos, então, na semana que vem, um belo concerto no palácio?
Um raio, caindo a meus pés, não me teria perturbado tanto. Figurai-vos que experimentaria um homem que, ao aproximar-se de uma rosa cultivada com amor, para respirar-lhe o perfume, sentisse uma vespa sair do cálice da flor e picar-lhe o nariz. Recuei de modo tão brusco, os olhos turvados pelo sangue que me subira à cabeça, que derrubei ao chão uma travessa de sorvetes. Rolou tudo sobre o tapete; nesse instante, desejaria estar enterrado a cem toesas de profundidade. Por sorte, um artista célebre acaba de entrar. Fui esquecido e pude contemplar Ela, Júlia, em todo o esplendor de sua beleza.
Pareceu-me mais alta, mais cheia de formas, mais sedutora do que nunca. Suas vestes, de imaculada brancura, ondeavam, em pregas, sobre seu corpo. Suas espáduas e seu pescoço se destacavam, como um bloco de neve, contra o decote enfeitado de rendas; seus cabelos de um negro de ébano, desatavam-se em cachos cambiantes, que lhe davam à face um caráter seráfico. Ao passar perto de mim, voltou-se e acreditei ter lido, no seu olhar de um azul tão doce, não sei que expressão zombeteira.
Minha razão sumiria se o maestro, que acabara de iniciar uma cantata, não me houvesse refrescado a alma com uma cascata de harmonias. Apenas terminou a execução, o auditório cumulou-o de felicitações. Mas, nesse turbilhão de diletantes, vi-me separado de Júlia por alguns instantes. Reencontramo-nos pouco depois, diante de uma poncheira. Então, ó ventura inaudita! ela ofereceu-me um copo, sorrindo celestialmente e dizendo-me, com uma voz cuja lembrança nada poderá jamais apagar de minha memória:
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Seleção de contos góticos de terror
HorrorSeleção de contos góticos com uma excelente escolha de textos. Aos amantes do terror ou horror psicológico, esses serão momentos deliciosos de serem desfrutados. Desejo a todos uma ótima leitura!