O SONHO DO UNIVERSO

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JEAN PAUL
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Meu corpo — assim eu sonhei — se desprendeu de mim e caiu; ao mesmo tempo minha figura interior emergiu, luminosa. Do meu lado estava uma outra figura, parecida com a minha, só que ela, em vez de luzir, relampejava sem cessar. — Duas ideias — disse a figura — são as minhas asas: a ideia Aqui e a ideia Lá; e estou lá. Pensa e voa comigo, para que eu te mostre e, ao mesmo tempo, encobre o universo! E eu voei com ela. Atrás de mim o globo terrestre caiu no abismo, tão impestuosa era a arrancada do voo, apenas algumas constelações estelares da América Austral nos acompanharam com brilho pálido, e finalmente do nosso firmamento apenas sobrou o sol, como uma estrelinha, e algumas caudas de cometas que brilhavam como chamazinhas em seu redor. Passamos, num instante, perto de um cometa proveniente do sol da terra e voando rumo a Sirius.

Agora voamos, em meio de inúmeros sóis, com tanta velocidade, que eles nem tinham tempo para assumir, por instantes, o tamanho de luas; suas terras, pela velocidade do voo, nem apareceram. Finalmente, o nosso sol, Sirius, e todas as constelações do nosso firmamento se encontravam como uma nebulosa clara em meio de nuvenzinhas menores, mais distantes ainda. Assim voamos através de desertos astrais; um céu após outro se expandira ante nós para depois se estreitar atrás de nós — e galáxias se encontravam enfileiradas na lonjura como portais de triunfo, erguidos em homenagem ao espírito eterno.

Às vezes a figura relampejante sobrevoava meu pensamento fatigado e brilhava, distante de mim, como centelha ao lado de um astro; mas bastava eu pensar: "Lá!" para junto me encontrar junto dela. Porém, quando já nos perdemos não sei em quantos abismos estrelados e o céu sobre nossos olhos não se tornou mais vazio, nem o céu embaixo de nós mais cheio, enquanto os sóis continuavam caindo em chusma, no oceano solar, igual às enxurradas de chuva: então o coração humano, repleto, se cansou e sentiu o desejo de retornar ao imenso templo solar, para a pequena alcova de devoção, e eu disse à figura:

— Ó, espírito! Será que o universo não tem fim?

Respondeu:

— Não tem início!

Mas eis que, de súbito, o firmamento sobre nós parecia esvaziado, estrelinha nenhuma brilhava na escuridão pura; a figura relampejante continuava voando na escuridão, até que também o céu estrelado atrás de nós se contraiu numa névoa rarefeita e, finalmente, se esvaiu.

Pensei: — O universo, pois, terminou? — e me assustei diante do infinito calabouço noturno da criação, cujo muro aqui principia; me assustei, diante do morto Mar do Nada, em cujas trevas insondáveis a jóia do universo luminoso se afundava, sem cessar; encontrei apenas a figura relampejante, mas não a mim mesmo, o solitário, pois ele não me iluminava.

Então ele respondeu à mudez do meu pavor:

— Ó incrédulo! Ergue o olhar! A luz dos Primórdios vem se acercando.

Olhei e vi: um crepúsculo, uma galáxia, e logo um firmamento inteiro de astros resplandecentes; qualquer pensamento era demorado demais para estes três instantes. Há milênios encanecidos a luz estava a caminho para chegar até nós — e veio agora, insondável, a partir das alturas. Voamos através de um novo século, pela nova esfera de estrelas. Seguiu outro percurso noturno e demorou até chegarem os raios de outro páramo celeste, mais distante ainda.

Na medida em que avançamos em nossa ascensão, céus e noites se alternavam, os voos pela escuridão demoravam cada vez mais, até cintilar embaixo de nós uma nova esfera de estrelas para se apagar outra vez. De repente, ao emergirmos de mais de uma noite, para ver uma aurora boreal de sóis que se fundiram numa labareda grandiosa, lutando pelas suas terras, e desencadeando ao nosso redor o dia do juízo final em todas elas; ao atravessarmos as paragens apavorantes da gênese dos mundos, onde estrondeiam as águas supraterrestres e raios cósmicos relampejam pela cerração do Ser; onde um astro sombrio, infinito, absorvia as flamas e os sóis em sua massa plúmbea, jamais clareando; quando divisei na lonjura imperscrutável uma serra recoberta pela neve fulgurante de sóis aglomerados, sob galáxias que pairavam qual finos crescentes lunares: então meu espírito se elevou e se inclinou, novamente, pelo peso do universo, e eu disse à figura relampejante: não insistas em levar-me mais adiante; não suporto ser tão solitário dentro da criação, e mais solitário ainda em meus desertos; o mundo da plenitude é grande, deveras; mas o mundo do vazio é maior ainda e com o universo cresce também o deserto.

A figura me tocou, de leve, como um sopro clamoroso, falando, mais suave do que antes:

— Ante Deus o vazio não persiste; é ao redor dos astros, é entreeles que reside o verdadeiro cosmo. Teu espírito abrange apenas imagens terrestres do supraterrestre; contempla, então, as imagens!

Eis! Meus olhos foram abertos, e eu vi um mar de luz, infinito, em que os sóis e as terras eram apenas escuras ilhas rochosas. Eu estava dentro do mar, e em parte alguma havia solo, nem costa. Todos os espaços que se estendiam entre as galáxias eram preenchidos de luz, e oceanos de som flutuavam embaixo e acima dos mares, ora trovejando como a maré, ora como o flautear de cisnes cantores, sem que houvesse mistura dos dois. O fulgor e a música dominavam, suavemente, o coração; eu estava cheio de alegrias, sem saber de onde me vinham; me alegrava pelo ser e pela sua eternidade, e um amor impronunciável me envolvessem que eu soubesse porque, quando vi o novo cosmo de luz ao meu redor.

Disse então a figura:

— É o mundo dos espíritos que te compreende; não existe para osolhos e o ouvido, que percebem apenas o mundo corpóreo que os espíritos criam e regem. Que teus olhos vejam, e que teu coração compreenda!

E meus olhos viram a cercania e a distância; vi os espaços desmedidos que acabamos de atravessar, com seus pequenos firmamentos; nos leves espaços etéreos boiavam os sóis, não passando de flores cinzentas, e as terras qual negras sementes. E o coração entendeu, a sonhar: a imortalidade reside nos espaços, a morte nos mundos. Nos sóis perambulavam sombras eretas, em figura de homem, se transfigurando, logo que as deixavam, para mergulhar no oceano da luz. Nos espaços refulgia, ressoava, soprava, se exalava nada senão a vida e a força criadora da liberdade do cosmo, os sóis eram apenas rodas de fiar, as terras, lançadeiras a tramar no infinito tecido do véu de Isis, que pairavam sobre a criação, se prolongando cada vez que um mortal o levantava. Aí, diante da imensidão de vida, não havia mais dores amargas, apenas deleite sem fim e preces de louvor.

Diante do fulgor do cosmo a figura relampejante se tornara invisível — retornara à sua pátria: o mundo invisível dos espíritos; eu me quedei, a sós, em meio da vida e da vastidão, almejando pela companhia de alguém. foi então que se aproximou, pela multidão pelágica das estrelas, um corpo celeste escuro, navegando no sublime oceano da luz; e nele estava uma figura humana, uma criança, imóvel e imutável na aproximação. Finalmente reconheci a minha Terra, e nela, o menino Jesus; e a criancinha me fitava, tão clara, tão suave, tão cheia de amor, que acordei pelo carinho e deleite que senti.

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