Dois anos tinham se passado e a situação em Don Inácio quase não mudara. Em uma cidade pequena pouca coisa muda. Houveram algumas mortes, a mulher do Coronel Bichart, seu Juvenal, ainda chamado de Juvenal sacristão pelo povo, Seu Zé Ferreira e também o pai de Tonho. O mulato que só tinha o pai no mundo ficou sozinho. No começo o trabalho tomou a cabeça de Tonho. Era o primeiro a chegar o último a sair, depois ele se empertigava nos domingos na casa de lupanar.
Mas Tonho se tornou um homem bonito. Alto, mantinha um impecável bigode, o corpo era desenhado pelo trabalho desde moleque. Quando não estava na lida mantinha-se com a roupa digna da igreja aos domingos e sorria com fartura aos passantes. Os atributos de Tonho não passaram despercebidos pela viúva de seu finado patrão. D. Lucinda era jovem , não tinha ainda vinte seis anos , casara-se com Seu Zé Ferreira após a morte da primeira esposa dele, o pai dela tinha varias dividas com o português e diziam que ela foi o preço para quitação.
Enquanto o marido era vivo D. Lucinda tratava a família como nobreza , mas as coisas mudaram após o falecimento de Seu Ferreira. Ela não recebia mais o pai, a ordem era de não deixar nem ele nem o irmão entrarem na fazenda . Na calada da noite mandara os jagunços buscarem a mãe já adoentada para viver com ela. Mandou recado a cada comerciante e fiador de que seu pai não estava sobre suas graças e que as dívidas que tivesse deveriam ser arcadas por ele e só por ele. Como Seu Zé Ferreira não possuía filhos ela reinava absoluta sobre a fortuna do português e queria também desfrutar de certo empregado.
A primeira vez que D. Lucinda chamou Tonho para deitar consigo esteve mais para uma emboscada do que para convite. Sabendo pelas conversas das criadas que o mulato banhava-se sempre na cocheira das Velhas ,D. Lucinda armou o encontro casual. Esperou na mata até que Tonho subisse as pedras para o mergulho , entrou na água já despida, suas mucambas deixaram cestos e outros utensílios como se elas estivessem colhendo ervas e tivessem parado para se refrescar, D. Lucinda esperou na parte mais próxima a queda d'água dificultando a visão para quem olhava de cima da cachoeira . Quando Tonho emergiu após o mergulho deparou-se com D. Lucinda nua. Não é preciso dizer o que aconteceu. Passaram a se encontrar na cachoeira e também na casa da fazenda.
A vida do aspirante a violeiro ia bem . Era mimado pela mulher mais rica da região, tinha outras amantes entra as criadas, era estimado pelos trabalhadores, mas a sorte não costuma sorrir por muito tempo para quem tem calos nas mãos. Perto de completar um ano da morte do marido começaram os boatos sobre a viuvez prolongada de D. Lucinda. Uma mulher tocar uma fazenda de gado sozinha, lidar com o dinheiro e com os banqueiros começou a assustar os homens da região. Aconselhada por padre Gabriel D. Lucinda começou a arquitetar uma saída para o falatório.
Tonho ficou sabendo do noivado da amante pelas criadas. O mulato ficou cego de raiva, subiu as escadarias da casa da fazenda e invadiu a sala encontrando D. Lucinda e seu noivo, um janota, com ares de rapaz moça: Pedro, filho do Coronel Bichart.
– Então é verdade. Meu jasmim vai mesmo se vender a esse frozô? – Tonho sentara no sofá como se fosse dono da casa. Pedro levantou-se tentando manter a compostura, mas na realidade o tamanho do mulato o amedrontava .
– Em primeiro lugar, Antônio, levante-se. – a voz de D. Lucinda era fria, comedida e num tom claro. – Você não tem autoridade para sentar-se a casa grande. Trata-me por Senhora e não pelo que seus devaneios lhe ordenam.
– Minha senhora, – interrompeu Pedro, a voz grave não era delicada – decerto devia perdoar o rapaz. Vê -se que nutre afeição por vosmecê. – olhou com o desdem que o medo de Tonho e do facão a sua cintura permitiam,dirigiu-se ao mulato. – Não sei que fantasia mantêm em sua cabeça, mas lhe aviso, que qualquer boato que espalhar sobre minha noiva cobrarei como se deve.
Tonho era só ódio. Respirou três vezes tentando aplacar a ira , mas ela era mais forte, dominava seu sangue, olhou para aquele projeto de homem, baixo, delicado, usando mais cores que os trajes de Santo Reis e então não pode mais, sua língua se soltou. Levantou-se e disse:
– Boato, acha que são boatos, conversinha de currutela, seu coronelzinho de meia pataca? Não são boatos que vi cada pedaçim do corpo de sua noiva nas nossas idas a cachoeira da Velha.
– Antônio! – D. Lucinda corou, Tonho não sabia se por raiva ou por lembrar-se das tardes na cachoeira.
– Meu jasmim, eu não vou ficar calado! Mas também não vô ficar observando esse circo, já lhe vi montar cavalos mais espertos que esse aí! – Pedro deu alguns passos na direção de Tonho e foi recebido com um soco que lhe pôs ao chão cuspindo um dente.
– Já chega , ponha-se pra fora da minha fazenda até a noite ou meus jagunços o porão.
Tonho olhou uma última vez para os olhos castanhos de D. Lucinda, apanhou o chapéu e retirou-se.
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Rio Abaixo
Mystery / ThrillerEncruzilhadas, pactos e a vida de uma pacata cidade mineira. O pontilhar da viola tem seu preço. Baseada em uma história contada pelo meu avô.