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Tonho não saiu com a tropa naquele mês de Março. O sonho o havia deixado perturbado. Não assustado ou deixado com medo de dormir, o perturbara porque Tonho percebeu que queria aquilo. Queria tocar daquela maneira, queria se vingar e ver D. Lucinda e o frozô se lamentarem nove vezes por cada dedo que  foi quebrado. Vó Nenê percebeu que alguma coisa afligia Tonho , mas nem sua benzeção , nem simpatias funcionavam. Ela resolveu fazer uma penitencia na quaresma e rumar de burrico até Aparecida. Oferecendo esse sacrifício para aplacar o mal que estava afligindo Tonho, ela já tinha pegao afeição de filho no tropeiro.

  Após alguns dias da saída de Vó Nenê para Aparecida, Tonho parou de dormir. O sono foi raleando, diminuindo em tempo até que o mulato passou a ficar acordado a noite toda. Isso estava afetando o juízo dele. Ouvia ruídos na casa durante a madrugada, havia sussurros no quarto, um vento gelado só  lá. Algumas das meninas que cuidavam da casa passaram a arrumar o quarto do patrão apenas durante o dia, se recusavam a fazer qualquer tarefa a noite. 

  O tropeiro passou a fazer caminhadas de madrugada, passava horas andando pelas trilhas do pouso. Abria novas, verificava as velhas, mas sempre acabava na encruzilhada. O ipê vermelho crescendo cada dia mais, tornando-se uma amolação ao juízo dele. A barba crescera, e o cabelo era escondido debaixo do chapéu de boiadeiro. Irritado com a falta de sono, resolveu no final da tarde descer a Don Inácio e tomar algumas pingas por lá.

   A cidade continuava a mesma. Desceu a rua central e pode ver a Igreja de Santa Terezinha, a praça do congado, a casa do finado Juvenal Sacristão, havia mais casas do que ele esperava , mas dez anos  são muita coisa em uma cidadezinha. No final da rua ainda estava o bar do Zé Galinha, apeou do cavalo e entrou discreto, pediu ao garoto no balcão, que não tinha mais de quinze anos ,que levasse a mesa do canto uma garrafa de cachaça.  Naquela mesma mesa havia visto o padre e seu jagunço. “O tempo passa”, pensou.

   Enquanto o garoto levava a garrafa de cachaça entraram três homens. Tonho reconheceu o primeiro deles, Matoso, ainda possuía o aspecto jovial ,mas já se percebia um grisalhar nas têmporas, os outros, um gordo falante e um magricela tímido , Tonho não reconheceu.

– Rafael! – disse o gordo, enquanto sacudia a mão e exibia as manchas de suor na camisa azul celeste. –  Traga dois tragos de pinga pra mim e pro Matoso e água pro meu moleque.

   Eles se sentaram em uma mesa próxima a saída, Matoso de frente pra porta , o gordo ao seu lado e o magrelo de costas.

– Claro Coronel Pedro, já vai sair.

  “Coronel!”, pensou Tonho, “esse gordo é o frozô, D. Lucinda deve tá galhando ele mais que tudo”, um sorriso discreto surgiu na boca do mulato, ele quase deu uma risada.

–  Uai, cadê seu pai que não para mais por aqui, menino? –  a voz de Pedro continuava grave, mas estava mais afetada.

– Oh, Seu Coronel, o senhor discurpa ele , tá? Mas a gota tá acabando com o pai, ele fica aqui de dia, mas não guenta mais fica muito tempo impé.

– Bom, mande meu abraço ao Zé. Mas traga logo essa cachaça, hoje vamos comemorar. – virou-se para o garoto colocando a mão em seu ombro. – Finalmente meu menino está preparado para os desafios, se seu avô estivesse vivo estaria estourando de orgulho.

– Brigado ,pai. – a voz do garoto também era grave , mas ele falava baixo , quase sussurrando. – Vou fazer o meu melhor.

– Você vai é ganhar Antônio! – estapeou a mesa. – Nenhum Bichart vai perder pra esse povinho. Não gastei uma fortuna com professor pra você perder pra um zé tatu qualquer!

– Desculpa , pai.

– Deixa disso. Pega a viola e toca um pouco pro seu pai.

   O garoto saiu e voltou um tempo depois com uma viola branca, enfeitada com fitas . Sentou na mesma cadeira e começou a pontilhar. Ele era bom. Melhor do que Tonho já fora, tinha mais técnica, mas também tinha sentimento. Tocava na cebolão, a preferida do mulato. O menino começou a pontilhar “Bigode raspado”, emendou “Cabocla Tereza”, “Pingo d'Água” e terminou com dois pontilhados das folias. Havia uns sete ou oito bêbados no local,  todos aplaudiram, menos Tonho.

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