VI

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Tonho voltou para o pouso. Passou dias tocando. Mas não era um tocar que estava acostumado , era como se a viola e ele estivessem ligados. O que ele fez no sonho podia fazer agora, conseguia imitar até o canto dos passarinhos, nota por nota. Imitava o ranger do carro de boi, nada escapava das cordas. Passou dias começando e terminando músicas que ele nem sabia que podiam ser escritas.

   Quando a tropa chegou no meio da quaresma Tonho decidiu que iria com ela. E que pararia em toda cidade, pouso ou fazenda e iria desafiar todos os violeiros daquelas terras. Assim fez. Por quase um ano Tonho passou levando e trazendo gado, passou por São Paulo, Minas , Mato Grosso, Paraná, Goias. Sua tropa mudou de nome, agora era a Tropa do Tonho Cascavel. Tonho pegara a mania de imitar o guizo da danada antes de começar qualquer desafio. Por influência de  um índio que conheceu no Paraná amarrou o guizo de uma em um cordão e ficou caracterizado assim. Quando se perguntava quem era esse tal de Tonho Cascavel, caboclo logo descrevia: “É um mulato alto, forte, com um bigode bem aparado, usa um chapéu escuro e trás no peito o guizo de uma cascavel. Se você ainda achar que não dá pra reconhecer o homem olha a viola dele. È vermelha que nem sangue, com asa no cavalete, e uma palavra estranha, igual das rezas do padre escrita na mão da bicha.”

   Tonho foi alcançando fama, o nome chegou a toda parte, era violeiro respeitado e até temido. Às vezes, quando chegava em uma roda , os outros violeiros paravam  e ficavam só escutando os pontilhados de Tonho. A viola veio afinada na “Rio Acima” e ele manteve assim. Mas as noites de Tonho não eram tão tranquilas. Ele era corroído pela vontade de fazer o frozô e D. Lucinda pagarem, foi numa dessas noites que teve uma ideia, Tonho começou a apostar as boiadas em duelos de viola. Os donos de fazendas , com os olhos maiores que a barriga viam nisso a oportunidade de aumentar sua criação. Pobre deles. Tonho não perdia, mesmo quando um coronel mandava o povo da fazenda votar no violeiro dele, ele não perdia. Era tanta presteza, que ninguém deixava de reagir.

   Essas apostas não deixaram de ter efeito colateral. Várias emboscadas foram armadas pra Tonho. Mas o mulato sempre fugia e escapava delas. Em certa vez o jagunço ficou emocionado com  a música da viola e deixou passar para não privar o mundo daquela beleza , daquele dom de Deus. Tonho várias vezes avistou corujas buraqueiras e mudou caminho para não segui-las. Em outras tantas a filha ou empregada do coronel corria a avisar Tonho. Houve vezes em que a afronta foi na presença de todos e Tonho teve que se defender. Respondia sempre que só seria no punhal, arma de homem honesto, sem covardia de pólvora. Nisso Tonho foi ficando abastado. Comprou terras em Don Inácio para guardar as boiadas que ganhava. E essa fama chegou aos ouvidos de Pedro.

   Pedro começou a ficar assustado. Um homem, tropeiro e mulato estava comprando as terras em volta da propriedade que era sua e de sua senhora. Um matuto, sem escola, comprando e criando um reino maior que o dele . E para piorar havia as histórias. “Ele tem corpo fechado”, “ a viola é presente de São Gonçalo”, “ele tem pacto com o sete pele”, essas crendices só irritavam Pedro. Ele não havia passado cinco anos no Rio de Janeiro para ter de lidar com um zé tatu. Diziam as empregadas e a curandeira que ele abrigava na casa da fazenda que ele estaria aqui para a festa de Santos Reis e que gostaria de duelar no coreto da matriz. “ Vou adorar ver Antônio  fazer miséria com esse matuto”, pensou.

 

   Tereza estava a voltando  da feira em Don Inácio mas não poderia imaginar que sua carroça fosse quebrar naquele ponto da estrada. Já estavam ali há algum tempo  e não passava viva alma, foi quando ouviu o berrante. Da colina surgiu uma enorme tropa, com pelo menos 100 bois, eles passavam do lado da estrada escoltados por vários peões, um deles se aproximou da coroça e olhou para a roda quebrada, sem falar nada voltou para tropa e de lá saiu um mulato enorme com um saco de veludo as costas.

– Dia. – disse o tropeiro.

– Dia. – disse o cocheiro. – Será que vosmecê não podia dispô de uma ajuda. A carroça quebrou e tô com duas dama nesse calorão.

– Mas é claro! Meu homens já tão trazendo uma carroça que tá mais vazia pra vosmecês terminarem a viagem. Depois é só levar de volta pra minha fazenda. Pouso Santa Cecilia.

   Tereza esticou a cabeça para ver melhor o homem. O pouso Santa Cecilia tinha crescido muito em menos de um ano, o proprietário, diziam, era um mulato violeiro e bondoso que não negava ajuda a ninguém, tratava de maneira justa os empregados e não permitia malvadezas em suas terras. Tereza mediu o homem que  a estava ajudando, alto, forte, um bigode aparado mesmo na lida, sorria bastante e tratou o empregado de Tereza com cuidado e cortesia. 

  Uma carroça parou atrás deles, o mulato parou o cavalo mais a frente e ajudou o cocheiro a descarregar os suprimentos trocando de veiculo. “Ele chama todos pelo primeiro nome” , reparou Tereza. Quando o cocheiro foi ajudar a mãe de Tereza a descer o mulato o acompanhou e estendeu a mão para Tereza descer. Os olhos escuros dela cruzaram com os dele, ela se apoiou  para descer e agradeceu timidamente. Quando as duas estavam acomodadas na carroça, o mulato dividiu seu cantil com o cocheiro, apertou sua mão com entusiasmo e se despediu. Quando chegaram a fazenda seu pai esperava na varanda da casa grande. 

   Dr. Calixto era um homem baixo, com um grande bigode grisalho, calças no estilo pula brejo, o cabelo liso era sempre penteado para trás. Havia feito dinheiro como médico na capital paulista e se mudado para o interior mineiro quando a esposa morreu no parto, passava a maior parte do tempo na fazenda, casara de novo com a governanta da casa quando Tereza tinha quatro anos e sua outra menina  mais velha doze . Tinha agora momentos de felicidade, sua filha retornara da escola normal de Campanha formada professora. A alegria de Dr. Calixto era imensa, já estava em andamento a expansão da escolinha , o doutor fizera questão de dar o melhor suporte para onde a filha junto de mais quatro amigas iriam moldar as mentes dos pequenos. 

   Dr. Calixto estranhou a carroça se aproximando da casa grande, não reconheceu como sendo a de Tereza e sua mulher. Esperou que ela parasse e viu Tereza e Maria descerem. Desceu calmamente os degraus e acendeu o cachimbo longo.

– Hora Maria, que raio de carroça é essa que eu não conheço?

– Boa tarde pra você também, Hercílio.

  Percebendo o amargo na voz da esposa Dr. Calixto abriu um sorriso amarelo e se precipitou a segurar as mãos da mulher.

– Desculpe, minha flor. É que me assusta ver meus tesouros chegando em uma carroça estranha...

– Eh, se o senhor me permite Doutô, eu posso explicar. – o cocheiro deu um passo adiante.

– Pois diga , Zé.

– A estrada estava em petição de miséria, toda esburacada e uma das rodas quebrô. Isso lá era pelo meio dia já, num sabe? Deus ajudô de tá passando uma tropa , guiada por um homem bom que só Deus. Deixô usar a carroça dele e inté colocou as cargas junto cueu.

– Ora , quem é esse anjo Zé? Tô vendo que enfeitiçou você já.

– É o dono daquela fazenda nova, o Pouso Santa Cecilia. O nome é Tonho.

– E como é esse Tonho, Maria?

– Um sujeito de lida,Hercílio. Mulato, forte , até bem apessoado. De uma educação , que só vendo. – a esposa seguiu até a casa grande seguida da filha.

   Dr. Calixto pensou sobre o “salvador do dia”. Esse rapaz já era comentário na cidade há meses. Comprava terra atrás de terra, contratava todos os funcionários do dono anterior, pagamento justo, gente bem tratada. A fama dele se alastrava pelo amor dos empregados e pela língua afiada de Don Inácio. Pois Dr. Calixto resolveu que ia matar sua curiosidade.

– Zé?

– Pois não, dotô?

– Limpe a carroça do moço e se prepare para devolvê-la. Aguarde aqui , você vai levar um recado meu pra ele. – o Doutor entrou e escreveu uma nota rápida, colocou em um envelope , lacrou e deu ao cocheiro.

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