Havia no ar cheiro de café coado, sentiu também a erva cidreira, arnica, guaco e malmequer. As mãos estavam doloridas, enroladas em pedaços de pano, no olho direito havia um emplasto, dali vinha o cheiro de arnica e malmequer. O local era escuro, mas ele viu o vulto de uma mulher no fogão a lenha. Ela olhava para ele .
– Ocê cordo , meu fio!Que bão, já tava percupada por demais com a durmição que ocê tava. – Tonho fez menção de levantar. – Levante não, minino. Vô levá café procê. – a senhora levou uma caneca de barro com café até o violeiro, o café estava morno, mas gostoso, forte e doce. Ela colocou um prato com broa de fubá, olhou pra ele , tocou a testa com as costas da mão e começou a retirar o emplasto do olho.
O olho já estava quase sem inchaço, e pode ver melhor sua salvadora. Era uma senhora já de cabelos brancos, a boca sem os dentes de baixo, mãos fortes , mas delicadas e mancava um pouco da perna esquerda. Havia um cheiro doce, jasmim, que vinha da senhora.
– Obrigado, – a voz estava rouca. – não tem como agradecer. Qual é a sua graça?
– Ê minino, nome é um trem tão desimportante. – riu baixo . – Mas todo mundo nesse arraiá e fazendada me chama de vó Nenê. Se ocê quiser pode chamá tamém.
– Obrigado, Vó. Como eu vim pracá?
– Uai, foi por Deus, fio. – ela arrastou o banquinho para perto da cama onde ele estava. – Foi por Deus, fio, só pode. Eu vinha vortando de um parto ca pas banda donde ocê tava e apercebi oce disfalecido na beira da istradinha. Pensei: ”Pobrezin, preciso da um jeito nele sô.”, ai, cuma certa difircurdade eu ponhei ocê na carroça e trosse pracá., tratei desses dedo e do oio. Só num dei jeito na viola , ela era só cinza.
– Deus te dê em dobro, Vó. Agora, eu preciso seguir meu caminho. – a mão firme de Vó Nenê segurou o mulato.
– Ocê me descurpa , fio, mas ocê num vai não.
– Mas...
– Maisi, nada. Escuta a Vó. Eu andei assuntando nesses dia que ocê tava aqui e descubri que lá donde cê vei eles ainda querem judiá docê. Fica aqui, dexa a pueira passa, adespois cê vorta.
A frase da velha senhora morreu em um sorriso. Tonho foi ficando, pagou a bondade de Vó Nenê com trabalho. Arrou a terra, cuidou pra que ela tivesse uma horta fácil de manter. Comprou uma vaca de leite com o pouco dinheiro que sobrara de Don Inácio. Pegava algumas boiadas para tocar lá pelo lado de Mato Grosso, passava mas tempo na estrada que na casa da senhora. Foi então que começou a ouvir as histórias. Historias de como D. Lucinda e Pedro Bichart haviam transformado as fazendas em potencia na região, que D. Lucinda estava prenha do primeiro filho, que o coronel morrera numa queda de cavalo e que Pedro havia aumentado o premio dos violeiros para oito contos de reis em homenagem ao pai.
A viola. A viola era o que mais machucava Tonho. Em cada estrada , em cada pouso, toda tropa, em todo lugar ela estava. Algumas vezes trazida pelas mãos de um santo , que deixava um rastro de tranquilidade e alegria, em outras , nas mãos de um demônio que ridicularizava Tonho, mostrando que qualquer zé ninguém podia tocá-la, menos ele. Ele que sonhava com a textura das cordas, com o cheiro da madeira, que sentia a diferença entra um pontilhado mineiro de um goiano, do mato-grossense e do paranaense, ele que conseguia ver a beleza das que jaziam mortas, sem cordas, empenadas, esquecidas tanto quanto das recém criadas , novas em folha.
Os anos passaram e Tonho ia e vinha das Gerais. Agora era dono de tropa e levava gado de Minas a Mato Grosso, nesses tempos sua tropa ficou conhecida como a “Tropa do Antônio Aleijado”, uma tropa bem paga , sem briga , nem mal feitio, mas sem musica. Tonho proibia qualquer instrumento, quebrava ele mesmo qualquer violão, viola, cavaquinho ou tamborete que aparecesse. Nesses tempos também ganhou como paga de divida um pedaço de terra na sua amada Don Inácio. Fez questão de arranjar a casa de lá, construir pouso e fazer do lugar uma passagem para descanso da sua tropa e tantas outras, pra isso mandou chamar Vó Nenê e deu liberdade de dona para a mulher que salvou sua vida. Em algum tempo o pouso Santa Cecilia era referencia de lugar pacifico e primoroso para quem viesse atrás de trabalho ou de ajuda. Vó Nenê arranjava trabalho para quem precisava e cuidava dos doentes.
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Rio Abaixo
Mystery / ThrillerEncruzilhadas, pactos e a vida de uma pacata cidade mineira. O pontilhar da viola tem seu preço. Baseada em uma história contada pelo meu avô.