IX

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Os dois seguiram a pé, em silencio. O rapaz carregava o estojo pesaroso. Tonho então resolveu contar sua história, para que o rapaz soubesse que não era o único. Contou tudo, tudo o que fez de bom e de ruim e tudo que deixou de fazer. A certa altura do caminho o rapaz parou e olhou profundamente para Tonho. Colocou a mão no ombro do mulato e abaixou a cabeça.

–  Eu sei que foi difícil pra você. –  ele olhava para o lado agora. – É difícil pra mim também. Esse caminho nosso é solitário, mesmo quando temos alguém. Parece que não vamos conseguir , mas nós temos essa ideia  estupida em seguir com a nossa palavra , não é mesmo?

    O mulato tinha lágrimas nos olhos.

–  Há sempre um momento de esquecimento. – continuou o rapaz.             – Vamos esquecendo desse contrato e levando os dias com uma tranquilidade incomum. Mas nós, bem , nós sabemos que vamos ter que chegar até o final, até a divida ser paga. O ruim , o ruim mesmo , é quando chega. –  virou a cabeça e os olhos , até então castanhos , estavam verdes.

   Um verde que Tonho conhecia bem demais. O mulato deu alguns passos pra trás e tropeçou , caindo. Ele olhou para os lados procurando ajuda e percebeu, para seu desespero, que estavam sós em uma encruzilhada. “Maldito sete pele, ele voltou para a paga!”, ele pensou.

   O rapaz olhava para Tonho com clama e certa ternura, com a expressão de pai que precisa , mas não quer  punir seu filho.

– Eu disse que voltaria quando você alcançasse seu desejo. – sorriu.

– Vosmecê esta um pouco atrasado. Já cumpri meu desejo há muito tempo.

   Tonho tentava se levantar , o homem com os olhos verdes estendeu a mão. Ele aceitou , a idade trazia algumas desilusões.

– Vocês humanos sempre pensam que sabem o que querem. – bufou.       – Mas eu não vou explicar como funciona o contrato, você já o fechou. Apenas quero a paga.

– Ocê acha que eu sô tonto. Minha alma já é sua . –  pelo canto dos olhos tentou encontrar mais alguém na rua.

– Odeio as crendices, Tonho. Eu não posso comprar algo que você ganhou dele. – apontou pra cima, deu alguns passos, as roupas foram escurecendo e mudando até se tornarem a capa preta e o chapéu do dia em que Tonho o vira pela primeira vez. – “ De graça recebestes, de graça dai”, Mateus ,dez , oito. Você não me paga com ela , ela é só a matéria prima para o seu desejo ser moldado. Minha paga é outra.

–  Não, ocê num vai ter minha família.

–  Não quero sua família.

–  Pode levar o dinheiro também e tudo quanto é trem de valor.

–  Também não quero isso,não me serve. –  ele se aproximou de Tonho.

   Tonho começou a pensar no que ele poderia querer, queria que ele fizesse o serviço dele, queria  que roubasse alguém, que fizesse mais pactos pra ele. A cabeça do mulato girava.

– O que cê quer?!!!!!!!!!!

– O que eu quero Tonho, bom , o que eu quero é simples. Aliás, eu posso tudo, o que eu poderia querer, não é mesmo? Conhecimento. Poder. Luxuria.  Ora, eu sei de tudo o que passa no coração de cada homem. Eu estava lá quando padre Gabriel se deitou com o sacristão, ele quebrou um voto mas o fez por vontade, por desejo. Eu conheço cada vingança, imaginada ou concretizada, cada luxuria escondida na noite ou em portas fechadas, vi D. Lucinda se tocando, pensando em você com seu Zé Ferreira do lado. Cada réis  escondido no colchão, cada surra tomada ou dada, as moedas que os diretores do seu orfanato levam mês a mês, escondidas nas bolsas. Cada estupro, cada assassinato, cada mutilação , cada mentira. Estava lá ,todas as vezes que o Coronel Pedro se deitou com o pequeno Antônio e marcou a faca as costas dele.

O mulato engoliu seco, forçando o vômito a voltar. 

– Tudo o que é fruto da mentira, cada fruto do egoísmo. É minha sentença por não acreditar que vocês poderiam ser úteis. Então Tonho, o que eu quero como paga é muito simples. Eu quero que tudo o que você possua ou que digam que é seu seja meu, eu quero controle. Não vou tocar na sua família, nem na sua fortuna. Só quero o controle do que é seu, só isso. Dado por espontânea vontade.

– Ocê só quer isso?

– Só.

   O violeiro tremia, o momento que ele esperava havia chegado, a paga era simples, mas mesmo assim ele implorou por perdão. Tonho estendeu a mão, o homem de capa preta  a apertou com firmeza.

– Feito . –  a voz soou mais grave e rouca do que nunca.

   Quando Tonho percebeu estava na encruzilhada, perto de sua casa. Não havia ninguém, mas ele sabia que não estava sozinho. Nunca esteve, nunca estaria...

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