X- Epílogo

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As regras do sobrenatural não são as mesmas  a que nos estamos acostumados e não são fáceis de entender. Em todas as histórias o mal precisa de algo físico para concretizar seus planos, sangue de uma virgem, um desenho intrincado cheio de runas antigas, o união carnal com um mortal. Mas o mal que depende deses artifícios é quase sempre um mal novo, ou um que é regido por regras impostas depois da “Queda”, regras criadas para impedir uma expansão desordenada.

   O Tinhoso, o Sete-peles, o Cramunhão, O Capa Preta, Aquele que desvia, o Inimigo, Satanás ou o nome que o Pai lhe deu: Lúcifer, joga pelas regras da criação. Ele só precisa de uma palavra, um sim ou um não, assim como a palavra cria ela também aprisiona. Tonho nunca poderia imaginar o que fez. Apesar de seus esforços para a caridade,educação e bem estar do povo de Don Inácio ele sentenciou a cidade. 

   A partir do seu “feito”, o homem da capa preta começou a controlar a cidade. A Don Inácio do Seu Tonho Cascavel agora era dele. Os relatos de fenômenos sem explicação aumentaram , surgiram lendas de espíritos vingativos, curupiras na mata, mula sem-cabeça e lobisomens nas noites de lua cheia, assassinatos, roubo, perversão. O mal passou a frequentar as ruas de Don Inácio, se esgueirar por seus becos, estampar-se nos seus lideres, ele cegava-os com a luz que portava e aumentava a sombra na cidade. Tonho, de um simples peão, tropeiro e fazendeiro, virou lenda, nome de rua, tinha estatua na praça da matriz. Qualquer um no pais sabia que Don Inácio era a cidade de Tonho Cascavel. Já idoso, com a catarata a embaçar a visão, uma equipe de TV foi a cidade mostrar o habilidoso violeiro, filantropo, empresário, ainda lúcido, registrando as modas instrumentais que fizeram sua fama, gerenciando os negócios junto do neto. O rapaz era sobrevivente do acidente que matou os filhos e a mulher de Tonho. Manoel apoiava o avô e já tinha ouvido todas as histórias do velho violeiro, sabia de cor e salteado os caminhos que trouxeram seu avô até aquele ponto, apesar de não acreditar na história do pacto.

  Don Inácio crescera de maneira absurda. O calcário fizera Tonho criar uma industria para mineração, vendeu-a décadas depois a um grupo multinacional, o polo industrial era alimentado pelas quatro universidades, o turismo crescia em torno da área permanente de preservação  que Tonho criara antes do boom ambientalista, ele podia mesmo ser chamado de dono da cidade, tinha negócios em varias áreas, mas também era honesto, orgulhava-se de nunca ter sofrido processo trabalhista, cuidava de sua Don Inácio com  carinho.

   Às vezes , tarde da noite , ele acordava gritando. O neto ia até o quarto do avô, acalmava o homem e ouvia os conselhos do senhor: “não confie em ninguém com fala mansa”, “nunca feche negocio sem saber o preço, meu menino”, “se afaste das encruzilhadas”, “nunca toque Desiderium”. O neto ouvia atento , acalentava o avô e esperava-o dormir assim como faria com uma criança, observava um tempo o rosto marcado do avô e se pegava imaginando o que faria quando o velho Tonho Cascavel se fosse. A idéia de ficar sozinho torturava Manoel, havia perdido a mãe , pai, tio,avó. Oito anos não era uma idade para se ficar sozinho, mas tivera sorte. Foi criado pelo homem mais incrível do mundo, duro, correto, sistemático como diziam em Don Inácio, mas que lhe ensinou como ter um coração puro e justo. 

   Encheu sua vida de amor e agora Manoel enchia a do velho. Olhou no canto do quarto para a velha viola vermelha do avô, Desiderium, a palavra estava quase apagada. O velho nunca deixava Manoel tocar na viola, guardava o  instrumento em uma caixa de vidro, a chave vivia em seu pescoço. O pobre homem agora se esquecia constantemente das coisas básicas pelo Alzheimer que o visitara no ultimo ano. Manoel também tocava , se levantou e foi até o pedestal onde a viola estava. Olhou com fascínio. Histórias, amores , o império do avô, tudo debaixo daquelas cordas . Pegou a viola e a tirou do pedestal, ela estava fria.“Deve ser o tempo”, pensou. Sentou-se em um  velho banco no quarto de seu avô, acomodou o instrumento, apertou as cordas sem tocá-las, a viola era confortável.

   Fechou os olhos. Tocou um acorde menor, o som era incrível. Avançou no pontilhado, havia uma sensação de poder a empunhar a viola do avô, ela era proibida, Manoel perdera as contas de quantas vezes quis tocá-la. Uma vez na infância Tonho o pegara com ela no colo, o garoto recebeu uma sova e a viola passou a morar no estojo de vidro, o mesmo que o Alzheimer deixara aberto . Manoel passou por uma série de acordes e pontilhados difíceis, o instrumento pedia mais, Manoel obedeceu tocando cada vez mais rápido, mais alto, sentiu a sensação de guizo e cobras nas cordas que o avô usava para descrever como era tocar na viola...

– Manoel!!!!!

   A voz do avô o tirou do transe. O velho estava de pé, tinha os olhos arregalados , lágrimas escorriam pela barba branca e por fazer. A sensação de guizo não foi embora, Manoel olhou para as mãos e viu cobras passeando pelas duas. Ele empurrou a viola e as cobras sumiram, seu avô se aproximou com cuidado, colocou a viola no pedestal,ela se renovara, Desiderium estava legível de novo, virou-se para o neto e ajoelhado a sua frente, disse:

– Calma, nós vamos consertar isso.

    O rapaz não sabia porque, mas estava chorando.

–  Ele não vai ter você...

–  Ele quem vô?

–  O diabo , meu filho, o diabo...

    Na luz fraca da lua Manoel percebeu que os olhos de Tonho estavam verdes, muito verdes.

Rio AbaixoOnde histórias criam vida. Descubra agora