Sangue na lua

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Ela estava só. Já nem sabia há quanto tempo. Nem onde, nem como. Ela já não sabia nada. Só sabia da falta. E da dor. Ah! A dor... Sim, esta a acompanhava incessantemente, todos os dias, o tempo todo, desde que ele se fora. Mas ele realmente havia ido? Não sabia. Às vezes as coisas ficavam todas confusas em sua cabeça, e já não conseguia discernir entre o que era realidade ou não. Afinal de contas, isso tudo mais parecia um cruel pesadelo.

Acordara cedo, disso se lembrava. Colocara a água para ferver e fora pegar um pouco de lenha lá fora, para esquentar mais água para que ele aparasse a barba. Estava ainda bem frio, o inverno ia ao meio, e levantar da cama onde os dois dormiam, sair de perto do calor de seu corpo, era sempre muito difícil, mas necessário, já que não ganhavam o suficiente – ela costurando para fora, ele trabalhando com madeira – para que pagassem uma criada.

Mas ela realmente não se importava! Gostava de servir ao marido, de levantar quando o sol nem bem havia despontado e deixar tudo pronto para quando ele acordasse. Gostava de pensar no olhar de cumplicidade que trocariam ao sentar à mesa para tomarem uma caneca de leite quente, que ela mesma já ordenhara da única vaca que possuíam, antes que ele saísse para trabalhar e ela passasse às suas costuras.

Já naquela época se sentia sozinha quando ele se ia. A tarde passava lenta, modorrenta, e era com muito custo que esperava pelo pôr-do-sol. Mas não desanimava de sua labuta, já que sempre havia o consolo de que, à tardinha, ouviria o galope de seu cavalo enquanto ele voltasse pela estrada, e o receberia à porta. Mais tarde, após a refeição frugal da noite, iriam deitar-se no quarto, para que mais uma vez se amassem sob os lençóis na noite fria e fizessem planos para o futuro.

Mas naquele dia, não sabia bem porque, um desassossego pegou-a desde cedo, inquietando e prejudicando sua concentração no que fazia. Ele bem perguntara o que havia de errado, não perguntara? E ela, o que disse? “Nada”. Ah, maldita! Infeliz! Se neste momento tivesse dito o que lhe ia ao peito, o mau presságio que se lhe avizinhava da alma, talvez, mas só talvez, pudesse ter evitado a tragédia.

No entanto ela resolveu calar suas inquietações, que julgou infundadas, e nada disse a ele que, após depositar-lhe um beijo cálido na fronte, pela estrada se foi. Antes tivesse corrido em seu encalço e implorado para que não fosse! Oh, que miserável era ela! Pois já não estava, desde cedo, esperando a batida na porta que se fez ouvir perto do meio do dia? E já não sabia ela o que vinha dizer-lhe o senhor que retorcia nas mãos seu chapéu surrado?

Ele estava morto! Morto! Ainda agora, mesmo sabendo ser verdade, lhe era difícil aceitar a veracidade do ocorrido. Ficara em choque, de primeiro. Simplesmente porque não queria permitir-se acreditar. O cavalo, lhe disseram, havia se assustado com uma cobra. Tantos acidentes, tantos tombos – uma vez até do telhado já caíra – e uma simples empinada do cavalo o fizera ir ao chão de tal jeito, que o pescoço se partira.

Como continuar a viver sem ele? Como atravessar as tardes mornas, as noites frias? Ela agora vagava pela aldeia, a chamar por seu nome. Mais de uma vez, enxergou seu lindo rosto na face de outro alguém, e muitos foram os que se aproveitaram de sua confusão para partilharem de uma cama à qual não tinham direito.

Passou a ser hostilizada pelas outras mulheres, apedrejada pelas crianças. Já não tinha mais nome; chamavam-na “a louca” e era assim que acreditava ter sido sempre chamada. Às vezes ficava confusa e revivia o dia em que recebera a notícia, como a tentar evitar que se repetisse. Em seus momentos de lucidez, chorava copiosamente a falta do amado, que lhe fora arrancado qual pedaço, sem o qual já não via sentido nenhum em viver.

Um dia, em meio a seu devanear, lembrou-se de súbito: sim, havia essa possibilidade. Primeiramente descartou a ideia, acreditando nada mais ser que fruto de sua mente alucinante, já aos frangalhos e lhe pregando peças. Depois de muito pensar, chegou à conclusão de que só poderia ser verdade, mas que era bom que averiguasse para ter certeza.

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