Prólogo

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Era escuro como na barriga de um lobo. Notas doces de uma flauta se fizeram ouvir e foram logo seguidas por batidas ritmadas de um tambor enquanto faíscas eram produzidas pela fricção de pedras. Então fez-se a luz e o calor.

Aquele era o ambiente profundo de uma caverna, perene e ancestral; o próprio ventre da avó Magoo, que com seus poderes mágicos havia criado toda a terra a partir de lama, pedras e excrementos. No centro do grande salão principal jazia uma fogueira e enquanto duas mulheres mais jovens responsabilizavam-se pelos instrumentos que conduziam a música a um transe pelo ritmo cada vez mais intenso do tambor, a mudang¹ de rosto murcho e tronco dobrado pela idade avançada erguia-se como a própria Magoo.

Era Ahwang, a curandeira mais velha e sábia da região de Songdo². Contudo, há muito seu nome de nascimento havia sido esquecido, principalmente após sua iniciação no caminho da religião antiga do povo coreano. Agora todos que vinham até sua caverna, no monte Hwajang procuravam pela grande mãe; procuravam por Daemo. E, ali estendia-se sua figura, de braços abertos como uma águia profética, lançando uma profusão de sombras pelo teto da caverna.

Ao atear uma mistura de ervas sagradas ao fogo a fumaça elevou-se, indo de encontro às sombras onde mixaram-se e ganharam vida. Já não era apenas a sombra de Daemo, mas dela ganhavam vida e dançavam, percorrendo todo o teto e as paredes da caverna. Tinham a forma de lobos e cervos; coelhos e garças. Cada uma representava um dos espíritos que habitavam a montanha e toda aquela região. Pois os seguidores do caminho antigo bem sabiam: todos os seres possuíam o espírito da vida, de uma pedra no fundo do rio mais caudaloso à montanha mais alta de toda terra. E a mudang era a intermediária entre o mundo dos espíritos e o mundo de seus receptáculos físicos. Exatamente por isso agora ela também dançava, ao ser encontrada pelas sombras que passavam por sua figura encarquilhada, dando-lhe uma energia sobre-humana para rodopiar, girando o longo saiote de suas vestes cerimoniais, enquanto batia um leque de bambu sobre a fogueira, fazendo as labaredas dançarem consigo e lhe contarem os segredos dos espíritos.

Entre suas visões vislumbrava o futuro de muitos daqueles que a procuravam. Ouvia os sussurros, os conselhos dos deuses e encontrava os demônios que atormentavam lugares e pessoas. Mas de todas as suas visões naquele dia nenhuma tocou-lhe mais do que uma, até então, inédita em seu longo oficio. Vira abrir-se diante de si a mais bela flor do mundo, um hibisco de pétalas incrivelmente delicadas e miolo incandescente como o sol, de onde saltava um tigre. Este se punha a correr em derredor da velha sacerdotisa, atacando-a, mas sem qualquer traço de ferocidade. E conforme rodeava lhe no compasso de seus giros o corpo daquele tigre alongava-se, tornando-se sinuoso até seu rugido transformar no poderoso retumbar de um dragão, um dragão que lhe cobria completamente a visão agora. Seu corpo era o próprio reino e em suas escamas encontravam-se todos os seres vivos do mundo, os rios, os animais, os nobres e o povo.

Daemo viu a dor de um segundo nascer, a honra estrangular-se nos braços da maldade e o dever confundir-se com maus conselhos até tornar-se cego, surdo e mudo; sem vida. Mas então o dia renascia e cegava os olhos da alma da curandeira, enquanto o dragão enfim afastava-se, retornando de onde vinha. Àquela altura o hibisco de rara beleza murchava pelo fulgor insuportável de miolo que ardia incessante, até torrar suas pétalas e expandir-se, engolfando o dragão que mergulhava naquele mar de ouro reluzente até que tudo fosse escuridão novamente.

Após aquele ritual, Daemo recolheu-se em seus pensamentos como uma tartaruga em seu casco. – O que a senhora acha que essas visões significam, sunbaenim³? – Perguntava-lhe uma de suas filhas e futura sucessora, ainda em redor da fogueira, agora já quase extinta.

– A sabedoria começa com a dúvida... Talvez os espíritos venham até mim nos sonhos e talvez as coisas fiquem mais claras. Mas eu temo que isso seja grande demais para que qualquer um de nós consiga compreender. Talvez sua filha, ou sua neta compreendam um dia tudo o que vira em nosso tempo e no tempo delas. Por que uma mudang vê apenas o que os deuses permitem que ela veja e nossos destinos não são como a pedra, dura, imóvel... Não! O destino é o rio mais torrente. O destino é um tufão. É movimento e apenas boas ações, tomadas de forma acertada, podem reverter um mau presságio como eu sinto que seja esse caso.


1 - Termo utilizado para referir-se a uma xamã na religião tradicional da Coreia.

2 - Antigo nome da cidade atualmente conhecida como Kaesong, capital dos reinos Taebong e Goryeo. Atualmente faz parte da Coreia do Norte

Honorífico utilizado para referir-se a um mentor/a.

O Tigre e o Hibisco [JIKOOK]Onde histórias criam vida. Descubra agora