Um

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O INÍCIO

              "Nossa maior tragédia
                 é não saber
                   o que fazer da vida"
                       ( José Saramago)



Eu não gostava de pessoas. Não que eu fosse anti-social, eu só não gostava, gostava de tantas pessoas a minha volta. Eu gostava de sair, sim eu gostava, mas para certos tipos de pessoas eu não tinha muito saco. Sempre que as garotas me chamavam para sair, lá eu estava, mas não suportava ficar muito tempo. Havia um limite para pessoas perto de mim, e sempre esse limite excedia.
Eu achava um saco quando meu pai fazia uma de suas pequenas festinhas e chamava seus amigos chatos. Então eu tinha que sorrir das piadas idiotas e ser um bom anfitrião. Eu não negava para meus pais e negava muito menos minha cara de tédio. Para um adolescente era completamente normal. Era melhor que eu não gostasse muito de pessoas do que se eu me misturasse demais a elas e entrasse pelo caminho errado.
Eu sabia que iria chegar o filho de um dos amigos mais íntimos do meu pai. Ele me dissera uma semana antes que o cara ia passar as férias lá, o que se baseavam em dois meses. Eu não entendia por que diabos o cara ia passar dois meses lá em casa, mas eu não podia fazer nada. Não que eu não tivesse tentado, talvez eu poderia ter dito que não ficaria em casa esses dias, talvez papai dissesse que daria meu quarto àquele estranho.
- Jaime, o café está pronto. – minha mãe chamou.
Desci as escadas e o café da manhã já estava na mesa, assim como minha mãe e meu pai lendo o mesmo jornal.
Eu achava bonito a forma de eles dividirem tudo. O jornal, e até mesmo o prato de sobremesa. Eu sabia que a ligação que eles tinham era fora do comum, era lindo. Eu queria ter um tipo de ligação daquela forma com alguém.
- Então filho, você sabe Richard está vindo para cá passar as férias, certo? – meu pai perguntou. – Ele vai passar dois meses e depois vai voltar para Califórnia. Seja uma boa pessoa, sorria e não fique com aquela sua cara de tédio e nem com aquele ar de superioridade.
Levantei a sobrancelha.
- Tudo bem, ser uma boa pessoa, certo. Mas sorrir já é forçar a barra. – falei.
Mamãe deu um tapinha na minha mãe.
- Meu amor, seu sorriso é lindo. Mas pessoas deveriam vê-lo. – ela disse.
- Não um estranho. – resmunguei.
Só de saber que teria um estranho dormindo na porta ao lado do meu quarto já era chato, eu nem conhecia o cara. Seria estranho e isso eu não podia negar. Muitas coisas estavam se tornando estranhas.

Terminei de tomar meu café e saí. Coloquei meus fones de ouvido e saí caminhando. Música, era aquilo. Musica me acalmava em um nível surpreendentemente incrível. Era como se eu atingisse um estado de calmaria que ninguém poderia me tirar.
Quando me identifiquei com a música, passei a concordar mais ainda com Nietzsche, sem música a vida era realmente um erro.
O centro da cidade era cheio a aquelas horas da manhã. Cafés cheios, barraquinhas sendo montadas nas calçadas. Todas as frutas, verduras tinham um cheiro diferente. A maioria daqueles vendedores dali, me conheciam. Meus pais eram amigos de muitas pessoas, e assim eu conhecia todas elas.
Parti direto para a biblioteca que ficava perto de uma vendinha. O dono da biblioteca era Robbin, eu conhecia seu sobrinho Lucas, que era meu melhor amigo, mas eu não o via ultimamente. A última vez que fiquei sabendo dele, ele estava viajando. Para onde eu não fazia ideia.
Lucas sempre foi alguém que viajava muito. Tanto em sua moto quanto com seu baseado no meio dos lábios e a fumaça sendo soprada ao vento.
Quando entrei, ele estava fazendo a mesma coisa de sempre, lendo o jornal com seu rádio chiando baixinho ao seu lado. Ele era o retrado da passividade. Os cabelos brancos, as rugas nos cantos dos olhos
- Bom dia Jaime. – ele disse.
Eu acenei com a cabeça.
- Bom dia Rob. – falei. – Vou para o jardim.
No fundo da biblioteca havia uma porta, atrás dessa porta tinha um tipo de jardim que Robbin cultivava. Haviam flores, laranjeiras e um balanço. Quando perguntei a origem daquele jardim, Robbin me disse que aquela biblioteca um dia, foi uma casa e ele nunca quis destruir o jardim, então ele cuidou dele.
Achei poético a forma com aquele ele pensou, talvez fosse assim que as pessoas deviam se sentir em relação às outras. Não destruir, cuidar.
A grama era espetacularmente verde, e senti-la sob os pés era uma sensação maravilhosa. Aquele lugarzinho era um tipo de refúgio para mim, servia para pensar e ler sem ninguém e nenhum barulho me atrapalhar. Um pequeno paraíso na terra.
Me deitei onde não tinha sol e suspirei. Seria aquilo a paz? A serenidade?
Sabia que quando chegasse em casa , provavelmente o cara já estaria lá e eu seria obrigado a sorrir e ser uma pessoa boa. Tudo aquilo era um saco, mas eu teria de acostumar. Ok, boa pessoa eu era. Educado sempre que necessário, carinhoso quando me apetecia, sorridente quando me sentia com vontade de sorrir.
Com certeza Jane e suas amigas dariam em cima dele, da mesma forma que faziam com todos os garotos novos da cidade. Eram oferecidas, mas eram minhas amigas, não que eu considerasse a amizade delas como uma amizade fundamental, uma irmandade. Não. Eram amigas de infância mas sem muita intimidade. Como alguns diriam, amizade de bebida.
Jane era uma garota legal, mas quando estava com Marrie e seu grupo, ela agia completamente diferente. Principalmente comigo. Quando estávamos sozinhos ela era toda beijos e abraços, mas na frente de Marrie ela fingia que eu não existia, mas eu não ligava, não realmente. Se ela podia jogar aquele jogo, nada me impedia de jogar também. Um jogo era sempre para dois.
A única garota que eu admirava ali era Jolie, que era uma linda morena de olhos dourados,m mas aquilo não era para mim. Mas sua inteligência e sua doçura tiravam o fôlego de qualquer um. Mas não eu, não.
Não sabia por quanto tempo eu havia ficado ali, mas senti que a manhã já tinha ido embora quando senti o sol esquentar minha pele. O calor que eu adorava sentir.
Me levantei, me espreguicei e olhei para meus braços, eles estavam vermelhos pelo fato de eu ter dormido e o sol ter pegado em mim.
Dormir no sol, aquilo iria para minha lista.
Eu tinha uma pequena lista de coisas malucas que eu já tinha feito, eram apenas cinco, mas eu sabia que um dia teriam várias coisas para eu lembrar que fui maluco e que fiz tudo que tive vontade.
Saí, passei por Rob. Ele mandou uma abraço para meu pai e um beijo para minha mãe. Se vjam com pouca frequência, mesmo morando basicamente
Enquanto caminhava de volta para casa, tentava imaginar como Richard seria. Ele era filho de Robert, então com certeza ele se pareceria muito com ele, eu só não sabia em quais aspectos. Robert era bastante alto, com ombros largos. Seu rosto era bonito, mas com muitas rugas, então era difícil imaginá-lo mais jovem. Ele tinha uma beleza diferente, mas uma beleza digna de se admirada pelas pessoas.
A única coisa que eu conseguia pensar era que eu passaria dois meses, sessenta dias com estranho que eu pedia a Deus para não ser um pé no saco.
Quando cheguei, percebi que haviam três mochilas escoradas na porta, as quais eu passei e nem fiz menção de pegar. Falta de educação com certeza era, mas eu não deixaria que ele pensasse que eu era obrigado a fazer coisas para ele.
Antes de entrar na cozinha, eu ouvi sua voz. Era forte e tinha um tipo de sotaque que eu não conhecia. Bom, o sotaque da Califórnia. Eu já imaginei que ele seria aquele tipo de surfista solto que vivia em bares e se gabando de sua vida para garotas, e talvez elas apertassem seus bíceps.
Ele estava de costas. Primeiro eu vi seus músculos, sob uma camiseta branca apertada. Tudo bem, de costas ele era bonito. Se ele continuasse de costas o tempo todo não seria um problema para mim.
Por alguns segundos eu o observei, escorado no balcão enquanto conversava com minha mãe. Parecia ser muito íntimo dela, mas eu sabia que era ao menos um pouco. Mamãe e papai passaram um tempo na casa de Robert quando viajaram pala Califórnia, e não, eu não quis ir.
- Jaime. – minha mãe chamou. – Cumprimente Richard.
Então ele se virou. E porra, ele era lindo. Podia ate ser um verdadeiro idiota, mas sua beleza compensaria. Seu olhar queimou sobre mim, minha mente quase girou quando ele sorriu. Ele tinha as mesmas rugas nos cantos do olhos e mesmas covinhas na bochecha que Robert tinha.
Ele estendeu sua mão para mim, primeiramente eu fiquei sem reação, depois eu estendi a mão. Tentei ser tão intenso quando ele, mas eu falhei. Seu toque era áspero e forte, mas minha mão parecia a mão de uma criança. Lisa, pequena e pálida.
- Sou Richard.- ele disse.
- É, eu sei. – dei de ombros. – Você já sabe que meu nome é Jaime.
Seu olhar se desviou do meu, sua mão largou a minha. Mas incrivelmente, minha mão ficou quente com o calor da sua. Abaixei minha mão e estealei meus dedos tentado tirar aquela sensação.
- Josette, eu não sabia que ele tinha crescido tanto, ele era uma criança. – ele disse. – Tão pequeno.
Minha mãe sorriu, eu não.
Agora sim, ele era um idiota.
Eu não conhecia ele nem a vinte minutos, mas eu já estava detestando sua personalidade. Ok, aquilo de julgar o livro pela capa, mas a capa podia muito bem ser linda e a história ser uma merda. Eu já havia lido diversos livros daquele jeito.
Respirei fundo antes de dar qualquer má resposta, e saí. Richard pareceu não ter notado, pois continuou conversando com minha mãe. Como se eu não existisse.
Quando subi, a porta do escritório do meu pai estava aberta, ele estava atrás da tela do computador, mas me viu passar. Antes que ele pudesse me chamar, já parei na porta, sempre sou interpretar seus sinais. Mais ainda quando ele desviava o olhar do computador e tirava os óculos.
- Jaime. – ele chamou. – Você viu que Richard chegou?
- Claro que vi. – falei. – As malas dele estão jogadas lá na porta, e saiba que eu não vou pegar. Se ele pensa que serei empregado dele, ele está muito enganado. Não sou empregado de ninguém.
Papai não disse nada, somente suspirou. Ele sabia que eu era daquele jeito e que nada me mudaria. Eu podia até parecer uma criança mimada, mas eu não ligava. Só um pouco, mas não o suficiente para fazer alguma coisa.
No meu quarto, me joguei na cama, peguei um livro e tentei ler. Mas minha cabeça girava em algo que eu não queria - Richard. Ele era um idiota, mas eu não podia evitar de achar ele lindo. As coisas mais belas poderiam ser destrutivas também. Quem duvidasse, simplesmente estudasse os cogumelos, quando mais colorido e belo, mais letal.
Seria Richard, parecido com um cogumelo?
Eu precisava encontrar uma forma de aturar aquele cara por dois meses, e algo me dizia que aqueles sessenta dias demorariam para passar. Eu desejava que não.

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Foi quando o sol começou a se pôr que eu o vi. Ele estava sentado no sofá amarrando seus all stars vermelhos. Fiquei parado observando seus movimentos milimetricamente calculados. O que diabos ele era, um robô?
- Congelou? – ele perguntou e eu jurava que poderia ver um sorriso sarcástico pairando em seus lábios grossos.
Balancei a cabeça e mentalmente eu me perguntei como ele tinha me visto ali. Talvez eu não fosse tão invisível quanto achava que era.
- Só estava passando. – falei.
Ele não disse nada, só continuou amarrando seus sapatos e saiu. Ele não disse aonde ia, e nem eu queria saber, porque naquela noite eu também sairia.
Encontrei Marrie e Jolie na esquina. Elas estavam com roupas coladas e com aquela cara que eu já conhecia, aquela cara de quem provavelmente iria aprontar, e aquilo nos renderia uma ótima noite.
- Para onde vamos? – perguntei.
Marrie sorriu.
- Casa da Emillia. – ela disse. – Os garotos também estarão lá.
Com garotos ela queria dizer irmãos dos amigos de Emillia. Caras que eram bonitos, mas não tinham nada na cabeça a não ser muito gel de cabelo. Todos eles gostavam das garotas fáceis que usavam roupas de prostituta. Ou seja, aquelas garotas que estavam ali ao meu lado. Não que eu também não fosse parecido, ao não ser pelas roupas.
Já eu, não tinha filtros. Eu tinha uma certa liberdade sexual. Minha opinião era simples, a vida era só uma e era pequena, ela não devia ser desperdiçada não sendo feliz. Beijando qualquer pessoa eu era feliz e era assim que eu levava.
- O cara novo chegou na sua casa? – Jolie me perguntou.
Eu tinha certeza que Richard viraria um assunto em comum entre as garotas, e isso era péssimo. Não bastava o cara ficar na minha casa, ainda tinha que virar assunto entre minhas amigas. Em lugar algum eu deixaria de ouvir seu nome.
- Sim. – falei. – E ainda me chamou de criança.
Elas riram e eu também ri. A situação era mais engraçada que triste. Ao menos era o que eu pensava.

Coisas daquela forma, eram quase impossíveis de acontecer. Mas só se o universo estivesse de brincadeira com minha cara, e era o que parecia. Brincadeira de mal gosto. A vida era uma piada, e tudo que eu tinha que fazer naquele momento era rir.
Eu já estava meio bêbado, eu não sabia quais e a quantidade de coisas que eu tinha bebido, mas mesmo bêbado eu tinha certeza que eu estava vendo aquilo, só não queria acreditar.
Em meio a bebedeira, eu vi ele. Estava sentado no sofá enquanto beijava uma das melhores amigas de Emillia. O nome dela eu não sabia, mas sabia que aqueles cabelos vermelhos me era familiares, talvez eu já os tivesse puxado em meio a um beijo.
Por alguns segundos eu simplesmente observei. Não fiz nada, não disse nada. Afinal, o que eu diria?
Ei, tire sua língua da boca da garota que eu mesmo enfiei a língua. Pare de roubar meus amigos.
Mas não o fiz, somente pensei.
Só desgrudei meu olhar quando a menina saiu do colo dele e ele olhava fixamente para mim. Não me amedrontei, simplesmente segurei seu olhar com o meu, fixo. Um jogo e quem saísse primeiro seria o perdedor.
Eu perdi, não pude segurar aquele olhar perfurante e intenso por muito tempo. Ele arqueou a sobrancelha e sorriu, como se dissesse
Está vendo?
Rolei os olhos como se dissesse
Mas e daí? Eu não ligo.

Já passava das duas da manhã, por mim, já fiquei na festa tempo de mais. Tempo demais somente por que eu queria ver os limites que Richard tinha, quantas pessoas ele era capaz de beijar – muitas pelo que eu vi – e o quanto ele conseguiria beber – que igualmente era muito.
Caminhei sozinho, observando o movimento das pessoas, carros e motos. Tudo era bastante iluminado em Paris. Todas as noites eram daquela forma. 
Se eu subisse em alguma escada e olhasse para cima eu veria a torre Eiffel com todas as suas luzes chamativas na 5 Avenue Anatole France. Eu morava ali a quase cinco anos e nunca vi a torre de perto. Um dia aquilo estaria na minha lista.

Quando cheguei em casa, me joguei na cama de roupa e tênis. Estava bêbado demais para tentar tirar.
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Eu sabia o horário que ele tinha chegado. Estava perto do amanhecer quando ouvi a porta ser aberta e alguém esbarrando em tudo. Pelo visto ele tinha bebido mais ainda depois que eu saí, não que eu ligasse. Por mim, se ele morresse de um coma alcoólico não faria diferença alguma para mim.
Depois de um tempo seus pequenos ruídos embalaram meu sono, um sono conturbado.
Mas não consegui dormir muito tempo, logo o sol começou a clarear o quarto e meus olhos não conseguiam mais ficarem fechados. Eu dormi por muito tempo, mais do que eu imaginava.
Caminhei até a janela e observei. Richard estava sentado debaixo de uma árvore, os olhos ocultados por óculos escuros e uma mão segurando um copo com o que parecia ser suco de laranja.
Um dia atrás do outro. Dois meses se passariam muito devagar. Mais devagar do que eu queria. Seria uma eternidade, suportando alguém contra minha vontade, dentro da minha casa.

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