2- Fionïr

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Eu vi quando ele desenhou um círculo na areia e impediu que o monstro entrasse. O que aquele Elmo fez naquele dia salvou nossas vidas; e todos que estavam comigo queriam que Fío nos liderasse no vôo que faríamos.

Relato de Tom Vagalume,
Fonte de Manoplas.


O teto sobre sua cabeça parecia querer desabar. Fora algemado pelos guardas e conduzido por um túnel estreito, iluminado por chamas preguiçosas. Era um caminho de morte que cada uma das figuras moribundas acorrentadas junto às paredes em algum momento iria atravessar.

Fionïr ouviu pés pesados fazendo a arquibancada tremer acima; ouviu também os gritos da multidão, sons parecidos com urros e rugidos intensos, e deduziu que alguém havia acabado de ser gravemente ferido no Cíncono, a arena pentagonal de Kusbalca, capital do reino do Mithardo. Sentiu um arrepio percorrer a espinha, como se a própria morte estivesse passando o dedo em suas costas, avisando o que aconteceria se ele não conseguisse vencer mais aquele desafio. E se eu não conseguir soprar desta vez?

- R'Honk! R'Honk! R'Honk!- Ouviu a multidão gritar.

Diziam que o campeão de Kusbalca era um fhok. Depois que o Império Xergowiine perdera o controle do ocidente, os bastardos das Asas da Magia, os ulfhos, também conhecidos como Penas Negras, eram obrigados a viver em Cuenmaluh, na maior floresta do continente, e não podiam se relacionar entre eles. Alguns bastardos dos bastardos nasciam mesmo assim, e apesar de seus pais não possuírem sangue mágico, os fhoks nasciam com a força de seus familiares, e a habilidade de controlar o ouromáximo. Porém, R'Honk já havia chegado ao estágio final de sua evolução, e apenas lhe restara a força, o que não o tornava menos ameaçador.

Fío tropeçou e caiu com o rosto numa poça d'água, suja demais para refletir claramente sua imagem nela. Mas se pudesse, veria o reflexo de um rosto queimado de sol, cabelos sujos enrolados até os ombros e olhos castanhos escuros. Os portões se abriram, e um homem gordo aproveitou para lhe dar uma chicotada que o fez cair novamente com o rosto na lama. O carcereiro o libertou de suas correntes e fechou as portas.

A chuva começou a cair segundos antes dele entrar na arena. Nas arquibancadas, os espectadores esperavam ansiosos pela carnificina, já que aquela era a única coisa que lhes proporcionava algum prazer em suas vidas medíocres. Os arenílyos haviam construído sua cidade ao leste do Padhema, mas tudo ali lembrava a cidade de Santerna, que agora não mais existia, inclusive o Cíncono, com cinco arquibancadas brancas de cinquenta metros de altura e cem de comprimento cada uma, que por sua vez eram ligadas às cinco torres cilíndricas de cem metros construídas com as mesmas pedras cintilantes, sobre as quais haviam várias lanças de prata retorcidas, formando gaiolas parecidas com cebolas.

Era nas dez galerias de cada uma dessas cinco torres brancas que os membros das cinco cortes kusbentis assitiam às lutas. Dentro das gaiolas, queimavam as chamas verdes dos piromantes de Condiabo, acesas somente durante os confrontos. Lanças de aço também formavam um muro no alto das arquibancadas, onde os arenílyos já haviam se fartado de pães, carnes e mulheres; e agora desejavam matar sua humana necessidade de se sentirem no topo, enquanto pessoas comuns como Fío morriam nas mãos de monstros como R'Honk.

Ele não conseguia ver quais Príncipes do Topo sentavam em cada uma das galerias principais, porque não havia nenhum estandarte nos muros que rodeavam o campo de areia que não fossem os negros. Kusbalca ainda está de luto pela sua princesa assassinada.

Os Cinco, que agora eram quatro, representavam os grandes principados do reino do Mithardo, que nunca paravam nas mãos de ninguém. Desde a época de Arenílya, esses governantes tinham suas vidas mais curtas que as dos escravos na arena, e alguns até chegaram a lutar em lugares como aquele.
Por causa disso, existiam os Príncipes do Povo, que protegiam esses domínios para os Príncipes do Topo que os herdavam. Fío soube daquilo sem nunca ter pisado naquela bela e maldita cidade. Mas, não era nos que estavam à sua volta que ele deveria se concentrar naquele momento, e sim na criatura que esperava pela próxima luta no meio do campo de sangue e areia.

R'honk estava sobre os corpos de dezenas de homens e mulheres que haviam sido destroçados por ele na luta anterior. Parecia um homem da cintura para cima, com a pele bronzeada e cabelos longos e prateados como os Pumhors do Golenaltt. Da cintura para baixo, três patas de caranguejo douradas, cada uma com cerca de um metro e meio de altura, o deixavam ainda mais monstruoso e bem mais alto que os prisioneiros. Também tinha uma pinça dourada no braço esquerdo ao invés de uma mão, resultado de sua transformação. Já enfrentei piores.

Fío correu até o centro do Cíncono, onde havia um amontoado de armas velhas despejadas, e tomou para si uma lança. Os dois escravos que entraram com eles por portas diferentes fizeram o mesmo. Um homem em um palanque falava algo em arenim, e os espectadores gritavam tanto que ele não conseguiu ouvir o que o kusbenti estava dizendo. Fionïr não falava arenim, então não se importou com o que diziam a seu respeito. Talvez alguém já soubesse que ele era um Ferrão das Dunas, treinado do outro lado do mar para sobreviver às ameaças das Dunas de ferro, mas em Kusbalca ele não era nada.

R'Honk apenas esperou a palma de um dos príncipes que assistiam à luta ser batida para atacar sua primeira vítima. Um dos prisioneiros correu assim que o Fhok colocou os olhos sobre ele, mas a criatura o alcançou e cravou a lâmina serrilhada da espada monstruosa que portava no membro viril do desgraçado. O homem soltou um único grito. O campeão arrastou a lâmina até o pescoço da vítima lentamente, e o jovem ruivo com um ípsolon marcado na testa gemia e gritava. A multidão abafou os gritos dele, levados ao delírio e ao êxtase momentâneo.
Fío esbarrou em um prisioneiro que estava de costas para ele. Não parecia ter mais de vinte anos, com a cabeça raspada, piercings nos mamilos e nas sobrancelhas. Havia mijado em suas roupas de couro, as mesmas que Fionïr vestia. As lâminas das espadas curvas que portava dançavam em suas mãos trêmulas; seus olhos escuros refletiam medo apenas.

O prisioneiro disse algo em uma língua que era estranha para Fionïr, que apenas ergueu os ombros como resposta. R'Honk cavava buracos na terra com as patas enquanto corria na direção do mijão despreparado. Fío conseguiu se abaixar, mas o outro prisioneiro não teve como escapar da garra de ouromáximo. Não há nada mais poderoso.

O garoto gritou, e os olhos azuis se encheram de lágrimas. Fío pôde ouvir costelas sendo quebradas, e viu a cabeça do rapaz ser arrancada do corpo por uma mão duas vezes maior que a do decapitado. Então, o único sobrevivente aproveitou que o campeão estava perto e cravou a lança no abdômen desprotegido do fhok. Podia sentir o cheiro de fruto do mar apodrecido no pus amarelado que escorria. R'Honk o empurrou sobre a pilha de armas, e Fionïr esperou até que ele chegasse mais perto; pegou uma adaga da mão de um homem que havia morrido na luta anterior, e soprou sobre a lâmina, sem que a platéia notasse que possuía um jeito de derrotar o campeão deles.

Com um impulso de fé, lançou a adaga que ele sabia que acertaria o alvo. Fionïr ainda não sabia explicar o que fazia com que aquele sopro peculiar e indescritível tivesse poder sobre armas de metal; e, naquele momento, decidiu não abrir mão do seu dom, o suficiente para permanecer vivo.

A adaga penetrou a testa de R'Honk com força, e apenas o cabo amarelo ficou à vista. O fhok caiu sobre as patas, e Fío aproveitou que ele tentava retirar a arma de sua testa para dar o último golpe com uma lança que atravessou seu peito depois de um grande salto.
Podia sentir os olhares de espanto à sua volta quando R'Honk finalmente havia sido derrotado. E apesar da chuva que caía, das vaias dos que certamente haviam perdido suas apostas, e dos aplausos dos príncipes na galeria, conseguiu ouvir uma palavra em melgariano, a língua mais falada em seu continente.

- Quisgga!- Praguejou uma mulher na platéia, seguida pelos que estavam sentados com ela.

Quando os guardas o cercaram para levá-lo de volta, Fío percebeu o quanto aquelas pessoas na platéia estavam certas. Mas ele não era apenas um maldito covarde, era um amaldiçoado.

E aí, tudo bem com vocês?

Espero que tenham gostado do Fionïr, tanto quanto gostei de escrever ele.

Ninguém esperava que ele fosse derrotar um fhok no Cíncono, e essa vitória pode causar uma reviravolta na vida do Fío.

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