Prólogo

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Ano 50 do Vôo das Coroas.

Como era assustadora a voz do silêncio!

A pedra sobre a qual ela estava não era nem quente nem fria. O vento balançava as peles rasgadas de couro almiscaradas, e pelos buracos da tenda entrava uma luz fraquíssima. Está anoitecendo, pensou ela.

As chamas das fogueiras não estavam tão altas, e toda vez que o vento entrava na barraca, tinha a impressão de que elas se apagariam, ou que a estrutura inteira cairia sobre ela. Onde está meu criador? Porque me deixou aqui sozinha?

De repente, entrou aquele que ela acreditava que poderia ser o criador dela, com a caça nos ombros, e o peito desnudo coberto por pêlos ruivos; sangue escorria pelos gomos do abdômen de bronze do sujeito. Ele era jovem, e protegia sua cabeça raspada com uma touca feita com a pele de uma raposa. A saia de couro estava tão rasgada quanto as peles da cabana, e os pés peludos estavam menos sujos que as mãos do selvagem. A carne do javali albino estava coberta de moscas, mas ela não podia sentir o cheiro que tinha. Como eu poderia?

Eu sou uma espada.

Sim, era isso o que ela era. Não podia ver a si mesma, mas imaginava que poderia ser como outras espadas. De uma coisa ela tinha certeza: sua lâmina era longa. O criador dela abandonou a caça no chão batido e a segurou com mãos sujas e fortes; e a espada viu sua sombra e a do ferreiro na parede, com as chamas queimando atrás dele. Outras sombras se juntaram àquela, e o criador dela a apontou para eles.

Como era assustadora a voz do silêncio! Os três homens que entraram ainda eram meninos, mas seus corpos eram altos, com mais de dois metros e meio, iguais ao do criador da espada. Todos tinham rostos diferentes, e a semelhança com os de outros animais era grande como eles. O loiro com cabelos crescendo em tufos e sujos tinha o rosto semelhante ao de um lobo; o moreno careca tinha listras por todo o corpo como se fossem cicatrizes, e tanto os olhos quanto o formato do nariz lembravam um tigre; o loiro belíssimo tinha a fisionomia de um símio, e havia entrado na tenda como um, até se endireitar e mostrar que era o mais alto de todos. Que estranho... Não são animais!

Mas também não eram homens.

- Entregue a espada a ele e vista-se!- Disse o ser lobo.- Não deixe que Balthurux continue usando Troca Peles como você. É assim que você vai derrotá-lo!

- Você não é ele!- Disse o ser tigre para o criador da espada.

- Esperei por esse momento minha vida toda, amigos!- Disse o ser raposa, cujo rosto não era tão diferente do homem lobo, mas coberto por sardas.

- Por favor, não faça isso!- Disse o ser macaco.- Ainda estamos crescendo, e podemos ficar mais altos que o Altíssimo!

- O Altíssimo não é mais alto que a minha honra, Rainaf!- Disse o criador da espada.- Onde está a de vocês?

O que está acontecendo? Quem são estas pessoas?

- Sua honra não é nada comparada ao seu poder, Troca Pele!- Disse Rainaf.

- Fiz a minha escolha quando decidi forjá-la!- A espada sabia que seu criador estava se referindo a ela.- Vistam-se de honra comigo, ou saiam da minha frente para que eu derrube o Altíssimo de uma vez por todas!

- Perdoe-nos se puder.- Disse o ser lobo.- Nos amaldiçoe se quiser, mas não podemos atravessar o rio contigo. Na guerra que está criando, você mesmo é o inimigo.

- Eu só quero me vestir de liberdade uma vez na vida, nem que eu perca meu fôlego por causa disso, Tésor.- O criador da espada saiu para fora trazendo ela na mão, e a arma com vida viu as sombras do lado de dentro se vestindo, trocando as peles de homens pelas de um lobo, um tigre e um símio. Com magia, eles se transformaram e partiram.

O Vôo da LibertaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora