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04 de janeiro de 2020, 01:13 a.m.
Observá-lo é um passatempo.
Espremida dentro de um lapso temporal pesado, a parte metafórica da minha mente insiste em desenhá-lo de uma forma que vai além das instruções finitas da lógica: o seu cabelo lhe cai sobre os olhos, repuxados em um sorriso desajeitado e repleto da aura enigmática que distribui paz tanto por perto quanto escondido em qualquer outro lugar, guardado entre a realidade e a fantasia. O planeta gira em sua constância natural, seguindo o curso pré-determinado, enquanto a ponta do lápis entre meus dedos mapeia seus vestígios, suturando as pontas soltas dos mistérios que não me são contados ao pé do ouvido, mas que sinto queimando por baixo da sua pele ligeiramente dourada.
À noite, você se reflete nas ondas que batem contra a areia, brincando com a Lua e se transfigurando em milhões de partículas brilhantes que caem de uma ponta à outra, trespassando minha alma nas camadas que você, sem ao menos imaginar ou saber, definiu serem as mais belas.
Som em cores, olhos em fascinação; os seus buracos negros existem aos montes, tentando sugar todo o calor e luz que as constelações te proporcionam, a ação cósmica das certezas que me atraem como imã para a sua órbita. O dia nasce e, com ele, você se torna pássaro, migrando para longe; a cadência da sua voz se mistura ao barulho das copas das árvores que cercam as casas, flutuando pelas nuvens, até crepitar como os raios e trovões que habitam no temporal que assola seus olhos castanhos. O mundo gira numa velocidade mais baixa quando você cruza as avenidas, os fios sob sua testa esvoaçando ao vento, você cortando o caos e o silêncio, fazendo companhia à penumbra amarga quando a madrugada parece nunca terminar e eu sussurro para mim mesma, de olhos fechados, que o Sol reluz em você de dentro para fora. Pequeno pássaro em revoada, quando a tristeza te invadir outra vez, lembre-se que foi a aurora, levando embora a tormenta que causou o meu naufrágio no meio do oceano solitário.
Verso a verso, os anjos e a dor unem-se em um coro uníssono. O amor existe no futuro, e a angústia amontoa-se no passado. Você se dilui sobre a arte, feito da poiésis¹ mais inconstante que eu já tinha visto, um andarilho sobre as minhas palavras, muda de linha antes que a página termine; meu guardião secreto e, sem dúvida, a ponte entre meu paraíso e ruína. Pura poesia cinética, os seus versos se dispõem em alegorias eternas, me fazendo implorar para que parte da sua métrica reinventada me aceite ― mas, como posso caber nesta eternidade, se permaneço nas bordas da sua existência de forma invisível?
Ainda assim, continuo indo pelo mesmo caminho, esperando debaixo da marquise e o rosto afundado no diário gasto com a esperança de vislumbrar seu rosto de menino nem que por um segundo; seu olhar continua em frente, as mãos criptografadas escondidas nos bolsos, ombros calmos. E, se quer saber, você sempre foi tudo e nada ao mesmo tempo e eu nunca consegui aprender a ler o seu meio-termo, mas ainda tento. A utopia nunca me pareceu algo alcançável, no entanto, você me faz acreditar. Sempre pensei que morrer jovem e viver tudo o que tinha para ser vivido era um sonho que só você parecia realizar, e estava certa: as estrelas que você pintou ainda estão brilhando no céu aveludado das lembranças de primeira vez.
Tem você por todo lugar, Rouxinol, salpicado pelas paredes, deslizando pelo vidro das janelas quando chove, permanecendo intacto, como sempre foi, mesmo quando desaparece, agraciando outros olhares distantes que, quem sabe, se apaixonam na primeira frase. Sempre dizem que orar é como fazer um pedido, e é impossível não desejar que andasse mais pelo lado de cá, olhasse para o que eu não consigo dizer, porque te olhar de longe é bom, mas sei que de perto seria bem mais do que eles dizem ser.
Você afunda nos meus ossos, me tornando densa sob minha própria pele, de algum jeito você se tatua na ponta dos meus dedos e, como consequência da colisão inusitada entre mim e você, uma parte do meu coração se perde, caindo aos seus pés. Soa como uma comprovação de que talvez o peso do mundo realmente seja o amor², porque você me mantém inerte e inalterada, caindo em um abismo profundo ― um que não fazia ideia de que poderia surgir. Seu olhar jamais se cruzou com o meu, não existem respostas para as perguntas que me rondam, meu interior reverbera que é só mais um clichê sobre amor e destino: logo no primeiro sorriso, na primeira sombra, no primeiro anseio, tive certeza. Era você. Caso fosse o inverso, como eu pareceria aos seus olhos tristes?
Até galáxias inteiras podem morrer, Rouxinol, então imagine um universo tão minúsculo quanto este ― quanto o nosso. Então, correndo contra os números que mudam em uma batida das pálpebras, misturo o seu céu no meu, formando uma nova gama de cores e amores, escondo suas estrelas que brilham no meu sonho mais bonito; sem querer te traço de novo no pensamento em uma realidade que não existe, e mais uma vez você se vai para longe. Aposto que se você demorasse mais, Rouxinol, iria embora mais rápido, desta vez para sempre, e eu quero mantê-lo por perto, transformá-lo em todos os meus "hoje", amá-lo desta maneira, onde você é você e eu sou eu, até que sejamos vencidos pelo tempo e minhas linhas meio tortas não te caibam mais.
É esse sentimento que me fará te ver em cada sorriso, em todo olhar e qualquer toque até que seu rosto finalmente fuja da minha memória, como aquele que nunca viu minhas flores na janela mas conhece a sensação ― o déjà-vu de recordações passadas ―, e tenho certeza que sentirei saudade de coisas que nunca mais podem voltar, mas não é como se eu pudesse evitar. Dei seu nome à uma estrela, te desenhei entre as folhas do meu diário e guardei seu lugar ao meu lado no ônibus, porque está tudo aqui, a dor que se espalha no meu peito é real, aconchegante e amiga, existindo para sempre, enquanto quiser. Você faz parte de quem eu sou, e sabe que não costumo ficar tanto tempo, mas, desta vez, eu ficarei. Então está tudo bem chorar esta noite, está tudo bem.
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¹NOTA: De origem grega, inicialmente era usada como sinônimo de processo criativo, e depois passou a designar o processo criativo de uma poesia, desde sua ideia inicial até sua elaboração. Segundo Platão, é a maneira do homem conseguir a imortalidade.
²NOTA: Alusão à primeira estrofe do poema Canção, do poeta Allen Ginsberg.
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Quando nos Vênus, juro a Marte.
Fanfiction"É que eu gostaria de deixar essa cidade e ir para algum lugar no qual só eu e você soubéssemos como chegar, mas este meio mundo de distância, apesar do peso, faz meu coração sorrir. E embora, talvez, eu sinta esta falta para sempre, de uma forma qu...