6. o garoto que eu nunca encontrei.

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17 de agosto de 2020, 22:37 p.m.

Ando por aí. É o mais próximo que consigo chegar de qualquer espécie de estratégia.

Em cada lugar, imagino você. Não possuo muito o que dizer, apesar de haver coisas as quais eu poderia citar - a cor do seu cabelo, a altura, a idade, o andar, as pintinhas salteadas. O sorriso que sempre repuxa os dentes. Os olhos de corcel indomável. Lembro de ouvir alguém dizer que não é possível contar as estrelas. Mentira. Eu as contei em você.

Há pessoas na minha mesma situação que ficam no mesmo lugar, que desenham uma linha invisível ao redor de suas existências e não a ultrapassam, mas não sei onde você está, portanto, continuo me movendo. Em círculos, quem sabe, mas, ainda assim, em movimento. Dos meus olhos correndo os adjetivos, de você os nomeando. Da caneta sobre o papel. Nunca imaginei que desejos desesperados, pedidos intensos como os que fiz, pudessem concretizar o tangível, o palpável ou algo real o bastante, que respirasse e apaixonasse na mesma intensidade, mas bastou apenas uma leve batida de pálpebras e ali estava você: metade carne e osso, metade desastre natural. A verdade é que o mundo está cheio de perigos - balas, facas, câncer, incêndios. Amor. O meu é você. Talvez soe como uma loucura, entretanto, de alguma forma posso sentir o cheiro do vapor escapando entre os seus dedos, o alerta vermelho de que você pode pulverizar, dilacerar corpos e mutilar almas, mas você me atraiu - sempre me atraiu. E não sinto medo, porque estou em algum lugar, o qual nunca estive. Um lugar extremamente difícil de alcançar. Aqui, onde tudo parece mais bonito. Estou a, pelo menos, alguns metros acima do céu. E o motivo sempre foi - será - você.

Às vezes, penso no que faria caso nos encontrássemos por acaso, em uma rua qualquer; com nome de algum escritor conhecido. Me manteria imóvel por um instante, só para ouvi-lo respirar. Ambos ficaríamos em silêncio, nem uma única palavra, porque você não me reconheceria coexistindo ao seu redor. Então eu deixaria os anos passarem correndo diante dos olhos, como um flash, e então você seguiria, sempre em frente, sem olhar para trás. Sim, você faria isso. Eu não teria coragem. Ou, talvez, tivesse. Não posso saber; algumas semanas atrás, no meio da noite, joguei fora meia-dúzia de papéis e não me importei em saber se eram coisas importantes ou se era só a minha mania de guardar inutilidades que ninguém jamais viria a sequer cogitar o uso. Talvez os dois. Lá, no fogo, tenho certeza de que existiam alguns papéis com o seu rosto. Coisas importantes que alguém nunca usaria, a não ser eu. Mas eu as guardo na memória. Nem todos vêm com a intenção de permanecer, mas você veio.

Em outras vezes, penso que gostaria de encontrá-lo aqui, ficar ao seu lado com a sujeira da cidade aos nossos pés. É um bom lugar para cores. Cada letra tem uma cor. Não sei se é a mesma coisa para nós dois. Não tenho certeza se você entenderia, mas não penso muito nisso. Aqui, perto do mar, uma imagem azul-clara reflete os raios da manhã direto nas ondas, deixando tudo cristalino. A letra J é da cor da água. Aqui, na casa cheia de janelas onde vivo, amanheci sob um feixe único de dourado. O seu U é dourado. Perto das árvores, um laço rosa foi perdido por uma menininha um dia desses, que nunca mais voltou para buscar. N é rosa-avermelhado. A cor dos seus lábios. A letra G é azul-marinho, a mesma cor do céu na madrugada. Os K são vermelhos. Como o caos, como a intensidade, como a paixão. Aqui: o caderno com capa gasta que não parece mais marrom; um tom de parede tão claro que o amarelo é quase branco; os seus O são amarelos. Seu coração é o Sol; desabrochei apenas na sua direção. Magnólias plantadas nos canteiros, em meio a pedaços de papel. Todos meus.

Todas as sílabas, juntas, têm o gosto da felicidade.

A tonalidade de cada letra expressa uma parte da mistura da sua cor; você talvez veja o restante, só que mais fraco. Então é bom que ainda não saiba qual seja o nome desta sua paleta; não é fácil encontrar o equilíbrio certo. Mas, quem sabe, você gostasse daqui. O problema com as cidades, ao menos com cidades como esta, é que é quase impossível descrevê-las. Não que eu não tente, apenas não é simples. E, em geral, não falo sobre você para as pessoas, muito menos sobre como sinto que o conheço, mesmo jamais tendo visto o tom exato das suas bochechas. Não se pode sentir falta de quem nunca conheceu ou do que nunca se teve, me disseram. Talvez não, eu pensei. Mas sinto saudade de você. É uma consequência inevitável.

É uma das coisas que eu poderia te dizer no escuro. Poderia dizer que dividir um pedaço da escuridão com você, assim, é honesto e vulnerável como nunca foi com outra pessoa. O que parecia assustador durante a vida inteira, um dia o ouvi murmurar como uma jura. Que há uma calmaria metafórica, uma desconstrução, um inferno particular, mas também um resquício paraíso, tudo fragmentado em três sílabas - atrelado ao nome do garoto com quem jamais cruzei. Ten-ta-ção. É um substantivo feminino. Significa disposição de ânimo para a prática de desejos altamente censuráveis. Minha palavra favorita. Não é algo que torne a vida mais fácil. Entretanto, continuo fazendo o que faço há anos. Escrevi seu nome mais vezes do que sou capaz de lembrar. Sempre, no começo, escrevo seu nome à luz da lua. O repito, às vezes, só para lembrar da cadência, mas nunca consigo fazê-lo sem tremer os cantos da boca.

Eu te envio uma carta de aniversário todos os anos. A coisa mais difícil é o envelope: todo aquele espaço em branco. Escrevo seu nome - tenho isso, ao menos -, mas não possuo o destinatário. Coloco-o numa caixa de correio e sonho, nessas noites, com o envelope sendo colocado em sua caixa de correio e você se aproximando dela. Estendo a mão para o nada e depois me obrigo a fechar os olhos antes de fazer algo estúpido.

Em dias como estes é importante continuar se movendo.

É como um emaranhado pré-verbal, onde minha mente é dissolvida pelo corpo e não há mais nada. O mundo se tornou sensação e ferida, calor e dureza. Então se dissolveu em pó, restos fúnebres de constelações esquecidas pelo resto do mundo. Fazemos parte de um grande cemitério de galáxias, mas você ainda brilha, talvez porque seja uma ação contínua de supernovas. É algo que me ocorre - sua cicatriz, seus dedos manchados, os olhos de um castanho-escuro como a névoa refletindo nuvens de chuva. Aqui, agora. É tudo o que há. Por essa razão, minto que, quando nos encontrarmos, não vai importar que levei tanto tempo para vê-lo. Que vamos ter todo o tempo do mundo para dizer o que temos a dizer. Que direi o seu nome, minutos antes das sílabas alcançarem o nascer do sol, uma última vez antes do nunca mais. Você é o tipo de amor que nunca se esquece.

E, em quase todos os crepúsculos, rio sozinha quando penso em nós dois.

Nota: Antes de escrever esse texto, vi uma garota dizer no Twitter que "o amor é algo que só existe com olho no olho", e isso não saiu da minha cabeça. Por causa disso, me perguntei "se o amor é presença, o que eu sinto?". Esse texto foi a forma de responder a mim mesma e: está tudo bem não saber a resposta. Creio que um dia tudo se encaixará. Quanto a você, menino, te digo: de algum jeito, sei que está aqui. Não sei a cor exata dos seus olhos, mas conheço as batidas do seu coração. É o que basta. Ele é Vênus, eu sou Marte.

Quando nos Vênus, juro a Marte.Onde histórias criam vida. Descubra agora