"Mas a vida é triste e solene. Somos deixados num mundo maravilhoso, encontramo-nos com outras pessoas, somos apresentados uns aos outros e caminhamos juntos durante algum tempo. Depois nos separamos e desaparecemos tão rápida e inexplicavelmente quanto surgimos."
(Página 214 de O Mundo de Sofia, Jostein Gaarder)
🌌
20 de fevereiro de 2020, 20:15 p.m.
Já passa das sete horas, o clima e a rotina continuam tipicamente cinzentos, as luzes dos postes do lado de fora estão todas acesas, e os cantos, mesmo preenchidos, do meu quarto se tornam melancolicamente vazios. O silêncio sufocado pela música que me lembra você não parece o bastante, por isso, continuo minha missão incansável de dobrar o papel sem amassá-lo, desta vez, mesmo que o pensamento de desistência sempre dê a cartada final, e beberico um gole do chá de hortelã ― o clichê dos "velhos hábitos que nunca morrem". Há dois dias, neste mesmo horário, o céu límpido não ameaçava nenhum tipo de temporal, assim como não havia o menor vestígio de agonia fragmentando meu coração, mas e hoje? Hoje é apenas o dia depois de ontem, onde as barreiras que construí se dissolvem, expondo o que sinto, e, assim como a chuva que vem sem previsão, você volta.
Em algum lugar, os adjetivos se perdem de você, o desenho dos seus olhos se apaga e a geografia intercambia um sonho que tive durante a madrugada. Por enquanto, basta escrevê-lo. Minhas cartas jamais são impecáveis, a velha caixa de chapéu recheada delas são um reflexo, porém, não me importo tanto com as imperfeições, e espero que você também não. A repetição das minhas digitais sobre o papel sempre são um refúgio em noites como essa, quando relembro que a saudade não nos faz intrépidos, mas vulneráveis, e, de alguma forma, torna tudo mais doído pensar que, se eu for buscá-lo, trilharei outro caminho e nunca mais poderei vê-lo. A escuridão enxerga a verdade e posso tê-lo ao alcance do meu abraço, ou você é mais um daqueles momentos em que quero o paraíso? Não sei. Dentro de mim, reverbera a conclusão de que estou correndo em círculos, seu rosto não parece brilhar no final da estrada, entretanto, desistir não seria estar admitindo que a explosão de sentidos quando você vem é só uma mera ilusão de óptica?
É difícil, doloroso, sofrido. Eu aguento. Meus pés são cegos, contudo, acredito nas batidas do meu coração. Ele canta; and I throught you might be mine, in a small world on an exceptionally rainy tuesday night, in the right place and time², sons que apavoram em um súbito, consigo senti-lo desde seu movimento sutil na janela que dá visão ao jardim coberto pelo negro da chuva, até meus olhos baixos e tristes, onde há a última versão de você que vi e me agarro, como a sensação de anchorage³ que o chá morno traz de volta, o sabor da nostalgia nos seus lábios, uma falta ao ápice do sofrimento. Na ponta da língua, a cadência vocal reorganiza as letras do seu nome por um instante, fazendo-me desfalecer sobre o único veredito que parece viável para o resto do mundo: esquecer ― mas, é possível deixar para trás o que se é inteiramente palpável, ainda hoje, ainda agora?
Fecho os olhos por um único segundo. Essa é a minha aposta, o motivo pelo qual distribuo minhas cartas na mesa; a água salgada das lágrimas não é capaz de murchar a esperança. Ela revive, mais forte, quando permaneço aqui. Estou escrevendo seu destinatário sobre o verso, implorando que o pequeno tsuru se torne real, planando no ar e nas nuvens, que encontre o lugar em que você se esconde. Um, dois, três, quando a contagem terminar e eu abrir os olhos, o seu tempo e o meu espaço se transformarão em algo inevitável? A chuva dança teatralmente lá fora, os risos do corredor se intensificam. A paisagem ainda é a mesma, as estrelas grudadas na parede não conseguem desfocar a atenção das velhas cicatrizes. Espero. Quando a mudança chegará?
Filosofias repetidas afirmam que nada é para sempre, então, porque fazem cinco, seis anos que você mora nas linhas das minhas mãos e dorme ao som da canção que sua alma dourada me presenteou quando nada mais me fazia dançar? Por isso, insisto. Continuo. As pontas dos meus dedos doem e tremem no fim da noite, e está tudo bem. Havia me convencido de que não te encontraria mais, deixando as memórias antigas de lado para amortecer a queda que me repartiu em milhões de pedaços, contanto, sonhei com você essa semana. Guardado a sete chaves, está aquele escrito em que digo que chove quando você vai embora, mas o céu está desabando agora e te vejo aqui, em pé sobre a linha entre o impossível e a fé.
Quando as luzes se apagarem, você poderia me visitar, mais uma vez? Sei que sublinhei naquele livro gasto o parágrafo da página 214 sobre desaparecer, que a juventude faz com que tudo se assemelhe à um raio, e que eu tenho medo de trovões, você também sabe, só que desta vez o temporal veio apenas trazê-lo de volta. Ouvi dizer que certas esperanças valem o risco da destruição, por esse motivo, resisto à passagem do tempo que impera oblívio sobre nós. Escrevi o seu nome em setecentos e oitenta e nove tsurus quando a vontade de apagar minha trilha até você me alcançou, faltam apenas duzentos e onze. Não sei se eles me concederão o pedido de me fazer lembrar até mesmo nas vidas depois desta, mas acredito que, como a chuva, você desaparecerá amanhã e voltará nessa sua forma inconstante. Mas está tudo bem. O hoje ― o agora ― é o suficiente.
✰
¹NOTA: Tsuru é um tipo de pássaro em origami, cuja lenda diz que, caso sejam feitos mil tsurus, ele poderá conceder um desejo.
²NOTA: Trecho da música Knee Socks, da banda Arctic Monkeys.
³NOTA: Anchorage é o desejo de segurar o tempo enquanto ele passa, como segurar uma pedra no meio de um rio com muita correnteza.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Quando nos Vênus, juro a Marte.
Fanfiction"É que eu gostaria de deixar essa cidade e ir para algum lugar no qual só eu e você soubéssemos como chegar, mas este meio mundo de distância, apesar do peso, faz meu coração sorrir. E embora, talvez, eu sinta esta falta para sempre, de uma forma qu...