Capítulo 1 - Uma família gigante

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Pedro sempre soube que era diferente. Começando pelo excesso de pais e mães. Era filho de gente que tinha começado a ter filhos muito cedo. Cedo demais para saber se queriam mesmo ter filhos. Acabou sendo adotado por um casal 'interessante', do tipo que nunca falou da adoção e fazia o impossível para produzir memórias de quando ele era bebê. Apareciam com roupinhas, lembrancinhas de batizado e histórias, muitas histórias, contadas nas horas de comer e dormir.

Num desses dias que tem tudo para ser normal, a casa de Pedro foi... Bem, 'invadida', como sua mãe adotiva dizia, por uma mulher baixinha com os olhos inchados de lágrimas. Uma mulher bem diferente da mãe adotiva (sempre controlada e um tanto controladora). Assim, Pedro descobriu sua mãe biológica, que queria o direito de vê-lo e de conversar com ele. Aparentemente, aquela 'invasora' também era sua mãe.

Pedro teve de dizer ao juiz que queria ver todas as suas mães. E, para ele, não importava muito como isso ia acontecer. Na verdade, sentiu-se sortudo (sabia de gente que nem tinha mãe!). Sua mãe biológica há muito já não estava com seu pai, mas os namorados dela acabavam virando 'pais' de fim de semana. No fim das contas, seu pai e sua mãe adotiva se separaram também e começaram a namorar outras pessoas. Perdeu as contas? Pois é. Àquela altura, Pedro tinha uns quatro pais e umas quatro mães. Aprendeu rápido a lidar com eles e gostava de ouvi-los parar de brigar. Baixavam a voz e diziam: "Temos que pensar no menino".

Além de seu dom para atrair pais e mães, Pedro sabia, desde os quatorze anos, quem era a mulher de sua vida.  É que, mais ou menos com essa idade, ajudava a vender livros usados em uma banca no centro da cidade. Aparentemente, apesar do excesso de progenitores, não havia ninguém que pudesse cuidar dele nas sextas-feiras à tarde. Mas Pedro gostava da banca e do 'tio' que lhe arranjaram como companhia. Certa tarde, Pedro folheava um livro sobre a vida dos insetos. Foi quando ele a viu.

Era uma menina da sua idade e tinha 'cabelos de adulta' — longos, castanhos, encaracolados, esticados  forçadamente em marias-chiquinhas atadas por presilhas multicoloridas. O que mais chamou a atenção dele foram os olhos: um par brilhante de janelinhas castanho-escuras. A mocinha aproximou-se da banca, cheia de atitude, examinou os livros meio entediada, voltou à padaria em frente de onde viera e sorriu para a mãe que a aguardava encostada no balcão.

Aquele sorriso derreteu, permanentemente, parte do coração de Pedro.

Naquele dia, Pedro soube, sem sombra de dúvida, que a veria novamente, por mais que ela nem tivesse chegado a encará-lo. Os poucos amigos a quem contava seu 'segredo' apenas diziam: "Fala sério!". E ele conheceu mesmo outras pessoas, apaixonando-se e desapaixonando-se como manda o figurino, sem jamais se esquecer da menina da banca.

Pedro também era diferente porque ficou muito, muito tempo 'perdido na vida'. Gostava mesmo era da escola e tinha medo de se comprometer com uma profissão para o resto da vida. Vagou de curso em curso, de emprego em emprego. Trabalhos temporários, mal pagos, complicados (isso quando não acabava desempregado). Confuso como estava, acabou se casando com Marta, uma mulher que sabia exatamente o que queria. 

Marta lembrava sua mãe adotiva, que adorava a ideia de vê-los juntos. "Uma esposa vai te dar responsabilidade!", dizia, mas Pedro morria de vergonha quando ficava sozinho com Marta depois do jantar. Não sabia bem o que dizer ou fazer. No campo amoroso, quanto mais se relacionava, menos aprendia. Só que Marta não precisava de muito incentivo. Ficava horas e horas falando e, um dia, além de falar, começou a beijá-lo. 

Não era ruim e, de não ser ruim, passou a ser 'mais ou menos bom'. De bom, passou a ser 'algo para se fazer'. Conversando com seus amigos, Pedro já era alguém 'com um rumo na vida'. Logo, tornou-se auxiliar administrativo e começou a economizar para o futuro: juntar-se com Marta, ter uma casinha, filhos, pacote completo. Quando fez vinte e cinco anos, sua filha chegou, mudando tudo de figura.

Nada se comparava ao dia em que aquele serzinho com cara de joelho entrou em sua vida. Pedro era conhecido entre os seus como o cara que perde tudo: até dinheiro ele perdia! Culpava-se por ser desorganizado e, às vezes, reclamava: "Essas coisas só acontecem comigo!". Mas, com a neném, que chamou de Thais, a história era outra. Acordava várias vezes de madrugada, temia deixá-la com outras pessoas e entendia os diferentes tipos de choro. Pedro foi cuidando de sua filha com tanto esmero que nem percebeu que perdera alguém no meio do caminho. Sua esposa já não estava com ele.

A festa de três anos de Thais foi um bolinho simples. Vieram os vizinhos, todos os pais e mães de Pedro, além da família orgulhosa de Marta. Chegaram a tirar a tradicional foto de família atrás da mesa do bolo. No dia seguinte, comendo brigadeiros gelados e passando os olhos pela foto, Pedro se deu conta de que estava só.

É que, na foto, todos sorriam e olhavam para a câmera. Quer dizer, todos menos Marta. Sua esposa tinha a expressão ausente de quando 'tirava férias dentro de si mesma'. Uma expressão que, agora, era cotidiana: do dia em que faltou leite e Pedro pediu ao vizinho; do dia em que Thais teve febre e Pedro ficou acordado a noite inteira; do dia em que Pedro carregou a menina para o trabalho, nervoso, porque seu escritório era no terceiro andar e a janela não tinha grades. Era a expressão dos dias em que Pedro beijava Marta e ela já não correspondia.

Achou muito estranho não ter percebido antes. Logo ele, filho de tantos pais e mães, versado em lidar com pessoas diferentes. Verdade que Pedro tinha dificuldades para tomar decisões: simplesmente esperava uma certeza que nunca vinha. Como de costume, não precisou decidir nada em relação a Marta. Numa bela manhã de sábado, Pedro acordou e descobriu que sua esposa tinha partido para outra cidade com uma proposta genial de emprego e um executivo que se tornara algo mais que amigo. Aos poucos, Marta virou um depósito em conta corrente no quinto dia útil de cada mês para colaborar com o sustento de Thais. E só.

A única posse real de Pedro era a casa em que vivia, herança de uma avó (mãe da mãe adotiva). Era uma casa grande, com três quartos, varanda, quintal, em uma vila um tanto isolada. Não ter de pagar aluguel foi de grande ajuda no orçamento modesto com que vivia. Aos poucos, Pedro foi promovido a "único proprietário de imóvel na família", recebendo, um a um, os parentes em crise que, agora, vamos apresentar um pouco melhor. 

Luisa, sua mãe adotiva, foi a primeira a se mudar para o casarão. Seu namorado, Jairo, agregou-se, naturalmente, à família. Quando Jairo perdeu o emprego de quinze anos, o casal assumiu o quarto de visitas. Já Marlene, sua mãe biológica, aproximou-se quando seus ossos começaram a dar trabalho. Era artrose e, de repente, Marlene já não podia fazer faxina. Pedro foi buscá-la no hospital, onde, como ela mesma dizia,  jazia "toda torta e entrevada de vez". Pedro conversou longamente com Luisa e Jairo sobre destino, solidariedade e muitas outras coisas bonitas, avisando que Marlene e Roberto, namorido de Marlene, estavam se mudando para a casa deles.

E é nessa situação que encontramos Pedro, personagem principal de nossa história: trinta e dois anos, uma filha de sete, vivendo em uma vila do subúrbio que costuma ser bem calma até que os vizinhos comecem a brigar por lugares para estacionar. Tendo duas avós como companhia e dois avôs de empréstimo, Thais cresce cercada de amor. E a vida parece chegar a um precário equilíbrio, ainda que, nós, os seres vividos, saibamos que nada tende ao equilíbrio, muito menos as boas histórias.

É manhãzinha no casarão. Pedro esfrega os olhos doloridos e se espreguiça com gosto. Suas mãos roçam a testa da filha que, de madrugada, costuma deixar sua cama para ir dormir com ele. De olhos fechados, Thais resmunga, vira de lado e segue dormindo. O sol vence a barreira de cortininhas verdes e encontra seu pé. Logo, o quarto começa a ficar abafado e Pedro sente o suor escorrer de seus braços por baixo do edredon. É domingo. Não há pressa, mas como ficar deitado na preguiça, se o ventilador não está fazendo nem cócegas naquele calor? Pedro sabe que não vai dormir de novo, por mais que esteja tentando.

É quando percebe que está sendo observado. 

Por uma cabeça. 

Flutuante. 

Ali, bem ao lado do armário.

Pedro e o Limite dos Nomes (Série A.S.L - volume I)Onde histórias criam vida. Descubra agora