Capítulo 2 - Uma cabeça flutuante

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Uma cabeça humana flutuava ao lado do armário. Pedro esfregou os olhos, decidido a ignorá-la. Era muita informação para um final de semana! Dormitou novamente, sonhando que a tal cabeça tinha um corpo: tratava-se de uma fêmea de sua espécie, extremamente simpática, pele cor de chocolate, olhos amendoados e vivos. Gesticulava muito, como quem diz "tá na hora de levantar". Não que Pedro conseguisse ouvi-la. Naquele sonho, a trilha sonora era o dedilhar de um violão. Da boca da mulher, saía apenas música.

Acordou pouco depois, com os olhos pesados de quem ainda cochila. A pequena Thais dormia, chiando de tão resfriada que estava. Pedro levou seu olhar ao canto esquerdo do quarto, lar do pesado armário de mogno, que, assim como a casa, ficara de herança.

E lá estava.

A cabeça.

Flutuando.

Aqui, cabe uma pergunta: o que você faria em uma situação como essa?

Bem, Pedro escolheu dormir de novo.

Mas voltou a sonhar com a dona da cabeça. Desta vez, ouvia perfeitamente o que ela dizia. 

Pedro estava de pé em uma calçada, esperando que o sinal fechasse para atravessar. A moça da cabeça-fantasma acenava e gritava do outro lado da via:

— Vamos conversar! Eu não queria te assustar...

Pedro acordou pela terceira vez. Suado, as pernas enroscadas no lençol já solto da cama e o restante do corpo sobre o colchão. Não havia sinal do edredon, provavelmente chutado para bem longe dali. E ele estava sozinho.

— Thais?!  

— Pai!  — sua filha gritou da cozinha.  — Quer café especial?

— Você vai à padaria?

— Eu e vovó Luisa!

— Ok! Pode deixar que eu ponho a mesa.

Tudo sobre controle. O café especial de domingo era uma das atividades preferidas da família. Compravam pão, queijo prato, mortadela, suco de garrafa, leite, achocolatado e cavacas: parecia um almoço de tão grande. Depois, passavam o dia sem sentir fome. 

Tudo sob controle. Pedro ouvia o bater de uma chuvinha bem leve sobre os telhados da vila, enquanto se dirigia ao banheiro.  Deixou a gilete intocada e lavou o rosto, esfregando as bochechas com gosto para espantar a soneira braba.  Sentiu o pescoço piar de dor à medida que foi levantando a cabeça. Seus olhos foram do ralo da pia à torneira, dos azulejos azuis ao espelhinho à sua frente, onde viu...

... a mulher que o perseguia, só que, agora, da cintura para cima. Flutuava, refletida no espelho, e sorria de um jeito maroto. Pedro virou-se a tempo de ouvir:

— Ah, não! Não me diga que vai desmaiar...

E acordou, tonto, em sua cama de novo. Thais dormia com uma das pernas cruzada por cima dele. Pedro pulou de pé tão assustado que quase carregou a menina consigo. Irritada, Thais se sentou, sem saber se coçava o bumbum ou a testa:

— Que susto, pai!

— Desculpe... É que...

— É que o quê?

— Eu tive um sonho, três sonhos... Nada demais.

Dali para frente, foi como qualquer outro domingo. O café especial foi servido. Thais implicou com a vó Luisa porque não queria tomar banho tão cedo e acabou sendo salva por Jairo. Ele sempre entrava às onze da manhã pela porta, tascando beijos em uma Luísa que, então, se esquecia de ser avó. Vó Marlene e o "vô emprestado", Roberto, só saíam do quarto ao meio-dia. Tempo suficiente para que Pedro convencesse Thais a se enfiar no chuveiro, pentear os cabelos e escolher uma roupa. Depois, todos partiam para o mini shopping perto dali. O dinheiro contado garantia um picolé para cada, mas podiam ficar quanto tempo quisessem na livraria.

Pedro e o Limite dos Nomes (Série A.S.L - volume I)Onde histórias criam vida. Descubra agora