Capítulo 4 - O vilão onipresente

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Chegando em casa, Pedro encontrou sua filha colocando a mesa do jantar: uma de suas brincadeiras favoritas. Marlene punha tempero no feijão requentado. Jairo tomava banho,  cantarolando um samba antigo para a casa toda ouvir e Luisa andava de um lado a outro, supervisionando o bom funcionamento do lar. Thais gritou "papai" e veio abraçá-lo. Roberto abriu a porta, carregando um saco de pão fresco e perguntando, como sempre, se cabia mais um naquela mesa. Marlene correu da cozinha e tascou um beijo no namorido, garantindo as boas-vindas. Ninguém parecia preocupado com a demora de Pedro, por mais que ele sempre viesse direto do emprego para casa. Só entendeu o que estava acontecendo quando Marlene confirmou que o jantar seria servido, pontualmente, às sete e meia.

Sim, por que ainda eram sete e meia.

Pedro não era de ficar observando a lua. No entanto, deixou entreaberta a cortina de seu quarto entreaberta na hora de dormir. Deitou-se, fascinado pelo globo amarelado, cercado de luz dourada. Quando pequeno, ouvia sua mãe Luisa dizer que luas douradas atendiam a qualquer pedido. Naquela noite, quis acreditar em bons presságios e dormiu pensando em uma escola sem endereço e uma mulher com os lábios cor de cereja.

Neste ponto da nossa história, convém perguntar: você já se embriagou de vida? Já foi a uma festa muito boa ou conversou até altas horas, ignorando o cansaço? Já riu até seu estômago doer sem conseguir parar de contar piadas? Já falou e falou sem parar, expondo seus segredos mais íntimos em uma roda de conversa até começar a suspeitar de que talvez não devesse ter falado tanto? Já ficou com vergonha do tanto que exagerou? Já pensou tanto em uma coisa que sua cabeça começou a latejar e você começou a enjoar, mas nem assim conseguia parar?

Pois bem. Quando acordou na manhã seguinte, Pedro sentiu a ressaca. Compreensível. Era o pós-magia, sabe como é, né? Tivera um sonho estranho. Ana Terra, Helena, Mãe Marlene, Mãe Luisa,  além de gente que ele nem conhecia  — todos riam-se dele, sentados em uma sala de projeção à moda antiga. Rolo de filme rodando em um antigo projetor ao som dos cliques e traques dos carretéis, rangendo ritmicamente. Na tela, Pedro e suas peripécias nas últimas quarenta e oito horas. Enquadramentos, cortes e roteiro tinham transformado suas experiências em uma comédia pastelão. Infanto-juvenil talvez. Um narrador ocasional, um tanto desconexo, ajudava a compor a personagem patética que Pedro se tornara. 

Era a mesma voz que o criticara na noite anterior.

Era a pior parte  — a voz de seus pais.

Cabe explicar que Pedro considerava seus dois pais 'oficiais': o biológico e o adotivo. Sei que ainda não falamos muito sobre eles, mas espero que vocês me perdoem. Afinal, trata-se de um assunto sensível. Os pais oficiais lhe causavam medo. O adotivo se separara de Mãe Luísa por achar o que tinham imperfeito demais. Certa vez, depois da separação, perguntara a Pedro:

— O que você faria na minha situação? Se algo dá defeito, não adianta insistir. Se alguma coisa dá errado, o melhor a fazer é tentar de novo. Desta vez, com as pessoas certas, confere?

Pedro passou muito tempo pensando naquele plural. Seu pai estava em busca das "pessoas certas", o que significava que ele e mãe Luisa eram as "pessoas erradas". Podia estar exagerando, mas logo percebeu que seu pai adotivo não existiria mais. Nada de telefonar ou mandar mensagem, por exemplo. Não apenas viveria em outra casa: viveria outra vida em que Pedro nunca esteve incluído.

Seu pai biológico era um assunto mais complicado. "Aproveitara-se" de sua Mãe Marlene quando eram adolescente ainda. Essa era a expressão que Marlene usava: "aproveitar-se". Pedro não o conhecia pessoalmente, mas ouvira sua voz pelo telefone. Uma voz que gritava. Não com ele, mas com Mãe Marlene:

— Como assim? Você ganha direito de ver o bacuri e eu não? Você que doou a criança que nem pedaço de carne... 

Uma voz grossa, abafada pela distância, mas audível. Havia muita raiva naquela voz. Quase tanta quanto havia distância no tom de seu pai adotivo. Então, era assim: o vilão onipresente e onipotente de Pedro, a Voz crítica em sua mente, era um combo raivoso e distante da voz de seus pais. Nunca ouvira nada parecido a não ser em sua própria imaginação. Na tragicomédia de seu último sonho, a Voz narrava: 

Pedro e o Limite dos Nomes (Série A.S.L - volume I)Onde histórias criam vida. Descubra agora