pt.5 do passado, [im]perfeito.

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Cicatriz, em grossas palavras, é um termo se resume à um ponto no qual houve reparação de um tecido lesado. Em analogia, é um termo que pode ser utilizado para se referir à assuntos que desencadeiam desconforto, ansiedade, dor — e , ao contrário da fisiologia, em que quase todo tecido novo pode ser reabilitado e realizar todas as mesmas funções de antes, nessa correlação, na qual são contadas ações e interações humanas, uma cicatriz pode referir-se à acontecimentos do passado que ainda no presente são capazes de gerar muita dor, como se o "tecido" novo que recobre a antiga ferida fosse ineficiente em realizar suas funções.

Quando as íris de Harry alcançaram seu campo de visão, deixando parecer na superfície o quanto tinha ficado afetado pelas palavras diretas e cortantes de Louis, o enfermeiro sentiu imediatamente o arrependimento queimar em sua circulação, e uma provocação afiada de sua ansiedade cutucando todo tecido cicatricial de um passado que nunca soube lidar. Havia algo nos olhos cor de jade, uma expressividade incômoda — uma projeção imperscrutável de algo que não sabia nomear.

Louis sentia sua frequência cardíaca disparada ao que subiu e sua moto, vestindo a jaqueta. Mas ainda estava lá, aquela projeção, alojando-se em suas costas e obrigando-o a procurar aquele tom perturbador de verde, novamente. Com uma última olhada, percebeu Harry de costas para si, ainda petrificado diante da maçaneta — com o cabelo desprendendo-se do coque mal feito e cascateando em direção ao centro da sua coluna lentamente. Com os pés enraizados no solo, sentia a garganta ardendo com a necessidade de ar. O toque fantasma das mãos de Harry na jaqueta, puxando-o como se fosse impossível gravitar em torno de qualquer ponto que não fosse ele.

Poderia ser um efeito colateral da marca, ou apenas sua mente excessivamente paranóica, mas sentia que o aperto em sua garganta pertencia à figura cacheada.

Precisava ir embora dali.

Porra, o passado tinha acontecido há tanto tempo. E, ainda sim, sentiu-se o mesmo Louis de vinte anos que andava pelo campus da universidade com seu coração partido na mão esquerda e um cigarro na direita — quando fora obrigado a conviver com o sorriso branco, alegre, e brilhante que ele amava sendo direcionado para outro homem, um homem escolhido pelo Destino. Se pensasse racionalmente, como alguém de fora e não como protagonista de sua própria vida, parecia um motivo torpe. Não querer proximidade com pessoas porque algumas vezes o Destino foi implacável em afastá-las de si, mas ao mesmo tempo sabia que não era apenas a questão do Destino, da marca. Eram as cicatrizes mal reparadas.

Era a sensação de desamparo, de estar sozinho, de deixar a situação ficar maior porque não sabia como lidar para fazer parar de ser dolorosa. Quando seu pai foi embora, Louis perdeu tudo. Deixou de ser um garoto normal cuja preocupação era não rasgar as roupas enquanto aprontava por aí para ser companheiro de sua mãe, para ser o ombro no qual ela se apoiava para lamentar a dor de ser abandonada em nome do Destino.

Que tipo de Destino era esse, afinal? Que marcava as pessoas à ferro e mudava toda a vida delas para pior em nome de um amor. Que amor era esse? Que fazia um pai abandonar tudo por causa de uma bendita tatuagem? Que fez Louis odiar o dia dos pais porque sabia que todas as lembranças que produziam na escola acabariam em uma caixa embaixo de sua cama. Um amor tão bom, o de predestinados, que suas irmãs mais jovens nem sabiam se deviam chamá-lo de irmão ou de pai porque seu papel era confuso na vida delas.

Louis odiava o Destino, e tinha medo dele. De tudo que ele significava, porque ao contrário dos romances, ele suas consequências poderiam ser avassaladoras.

Enquanto pilotava, a paisagem urbana desaparecia como um plano de fundo, cedendo espaço para área de campo bem próxima as periferias da cidade. Vez ou outra precisava piscar repetidas vezes, porque olhos cor de jade distraiam sua atenção da estrada — Louis tinha sido não ineficiente com o garoto, garoto não, homem. Era claro como água que Harry era um bom rapaz, um pouco tímido e desajeitado para a altura, mas não tinha dado indício algum de que queria algo, e ele tinha sido tão incisivo e qualquer que fosse o antônimo de acolhedor. Precisou frear a beira do pico que sempre ia quando precisava de refúgio.

Timer after time [lwt+hes]Onde histórias criam vida. Descubra agora