Tédio ou travessuras?

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Ser criança era bom. "Preocupação" era só uma palavra grande que tantas vezes era escrita de forma errada nos cadernos do colégio. Depois de voltar dele, a casa era o universo a ser explorado por milhões de brincadeiras: corria pelo jardim, atrapalhando o senhor que cuidava das plantas, mas que se calava, corria pela cozinha e deixava as cozinheiras loucas da vida com medo que eu derrubasse algo em mim e me machucasse, o que as faria ouvir muitos desaforos de minha avó mais tarde; corria pelo corredor, pelos quartos, descia a escadaria enorme – pelo menos a meu ver era enorme e infinita – como só os pequenos e os apressados conseguem. Várias vezes me ralei toda, e os berros de minha avó ecoaram pelo salão. "Vocês tem que olhar essa menina! Ela vai se quebrar inteira!"

Até que veio uma criada que tinha como tarefa ser meu cão de guarda: vinte e quatro horas por dia junto a mim, a fim de evitar que a boneca de porcelana da Dona Enriqueta Di Laurette ficasse parecendo uma moleca de rua. Mas eu era uma moleca.

Minha mãe não se opunha muito, ou melhor, quase nada, às regras de perfeição da Vó Enriqueta. Era difícil vê-las no mesmo cômodo ao mesmo tempo, embora elas costumassem permanecer em casa durante o dia. A rigor, estavam juntas apenas na hora do jantar, que era quando meu pai tomava a cabeceira da mesa e minha mãe, por insistência minha, me deixava tomar o lugar ao lado dele, à esquerda. Vó Enriqueta ficava à direita dele e minha mãe, logo ao meu lado. A conversa era rasa, mas eu não me importava... queria ficar perto do meu pai, já que nunca tinha esse privilégio. Mesmo aos finais de semana era difícil conseguir que ele tivesse tempo para brincar comigo. Tinha que me contentar com os jantares diários, alguns momentos na sala de estar ou em brincar quieta ao lado dele enquanto estávamos no escritório. Mas eu sabia que ele gostava de mim. Das muitas vezes que viajava, trazia quase todas algum presente ou souvenir da cidade em que estava; eu tinha uma prateleira inteira cheia de bibelôs, canecas e pequenas bonecas vestidas com camisetas de diversas cidades: Vancouver, Londres, Cidade do México, Lyon, Roma, Bruxelas...

Deixava uma foto dele no meio da prateleira. Nela, aquele homem sério sorria de leve e trajava um terno azul-escuro com camisa branca e gravata prateada. Mal conseguia imaginá-lo sem terno, pois mal o via assim; pra mim ele nascera de terno, dormia de terno e banhava-se de terno.

Já mamãe estava, mas nunca estava. Ela só costumava vir brincar comigo ou me ajudar com alguma lição (já que boa parte delas eu não fazia) quando a Vó não estava em casa.

– Mãe, a senhora e a Vó brincam de esconde-esconde?

– Como assim, Samantha?

– Sempre que a Vovó está comigo, você não está, mas sempre que a Vó sai, você aparece.

– É só para você não ficar sozinha.

– Mas tem a Toninha, ela fica comigo.

– Isso é porque esse é o trabalho dela, querida.

– Mas por quê você e a Vovó não conversam? A Vó da Daniela e a mãe da Daniela sempre vão juntas buscar ela no colégio.

– Perguntas demais, meu bem. A hora de fazer perguntas é quando você estiver no colégio. Vá já fazer sua lição, antes que me chamem de novo pra falar disso, ande!

Eu não gostava de fazer as lições. Gostava de fazer o que eu quisesse. E de colocar a culpa em outra pessoa, assim não tinha de ouvir broncas. Mas, às vezes, era só divertido ouvir os outros tomando broncas. Eu sujava todo meu vestido na terra do jardim e caminhava perto da poltrona, onde minha avó sentava-se, e ela logo arregalava os olhos.

– Antônia, venha logo aqui!

Toninha corria.

– Está vendo isso aqui? – apontava para meu vestido.

Toninha ficava estática.

– Isso aqui não é como uma jovem dama deve estar! Parece um moleque! É seu dever manter essa menina arrumada, perfumada e limpa, mulher! Suba rápido, dê um banho nela e volte aqui antes do horário do jantar! Imagina se meu filho chega e vê uma coisa dessas! Quero minha princesinha tinindo para sentar-se a mesa pra jantar, ouviu? E que não se repita!

Toninha me levava rapidamente para cima. Era muito divertido infernizá-la, porque tudo que eu aprontava, caia na culpa dela.

Na escola, já que não tinha Toninha, os colegas eram o alvo. Pegava sorrateiramente os cadernos do garoto que sentava ao meu lado e, quando a professora passava e via que ele estava sem seus cadernos, ele tomava uma bronca. Inúmeras eram as pegadinhas, quase todas bem-sucedidas. Assim eu me divertia.

Detestava as aulas e ficava por horas entediada, sentada na carteira, pensando o que poderia aprontar para dar algumas risadas. As notas não eram muito boas, mas nunca foram preocupação; de alguma forma, eu sempre passava de ano assim como sempre conseguia o que queria.

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