Se eu ia ser outra pessoa, eu precisava de outro nome (especialmente de outro sobrenome), outra história e, convenhamos, sumir com os vestidos de grife. E, se eu fosse sustentar que era uma pessoa comum, teria que achar algum tipo de emprego. Só que, sem documentos com o meu nome fictício, não podia ser nada fixo. Na verdade, isso até era bom: eu me canso das coisas com uma facilidade absurda.
Sophie era o nome da minha boneca quando eu era pequena. Aquela pobre coitada feita de pano teve que aturar ser arrastada para cima e para baixo 24 horas por dia. Literalmente, porque eu dormia com ela. Sábado de manhã era dia da Toninha ter que usar dos seus melhores argumentos e estratégias para conseguir pegar a boneca de mim e lavá-la. Poucas horas depois lá estava eu grudada com a Sophie de novo por mais uma semana até o próximo escândalo para tirá-la de mim no sábado de manhã. Eu tinha um zilhão de brinquedos, é claro, mas os únicos que eu realmente me importava eram Sophie, a casinha de bonecas (que era da Sophie), a cama elástica e o Caramelo, que era meu pônei. Demorou uma eternidade até eu ter idade suficiente para poder montar nele. Cinco anos depois ele morreu. Meu pai quis me dar outro, mas eu disse que não. Foi a minha primeira experiência com a morte e eu não queria a segunda.
Mas a segunda chegou.Dona Enriqueta tinha problemas cardíacos que foram piorando com a idade. Eu não sei se a minha "fuga" contribuiu para alguma coisa, mas ajudar, com certeza, não ajudou. Segundo minha mãe, ela foi piorando e acabou ficando internada. Sônia não disse nada. Era do feitio de minha mãe ficar calada, mas eu sentia ela me indagar em pensamento se eu não queria visitá-la.
Eu não queria. Não só porque estava determinada a seguir o caminho que eu escolhi, mas também porque, no fundo, eu a ressentia.
No fundo de mim eu sabia que parte dos problemas daquela casa enorme e fria tinham o dedo dela. Ela me manteve na barra da saia dela a vida inteira, mas eu nunca tive talento para ser inocente. A forma como ela tentava controlar a casa, a família e o casamento do meu pai sempre cheiraram mal. Era outro planeta estar na casa dos meus avós maternos: eles eram carinhosos, receptivos e lá a minha mãe falava. Meu pai parecia não mudar a sua postura qualquer que fosse o ambiente, mas eles sempre tentavam conversar com ele e perguntavam o que eles preferiam para jantar. Eu sentia o meu pai altivo e quase sem expressão mais relaxado num ambiente que ele frequentava uma vez no mês e que não tinha o nome dele na escritura do que na mansão onde a gente morava.
Enriqueta não era do tipo que admitia fraqueza ou carência. Ela não me chamou. E eu, não fui. Ela faleceu algumas semanas depois da minha partida. Sônia me disse onde seria o velório e o enterro, o horário e até a igreja da missa de sétimo dia, caso não desse tempo de voltar para o velório. Eu agradeci e mandei uma coroa de flores bem simples, do tipo que ela botaria 200 defeitos. Você não pode criticar mais nada, Enriqueta.
No dia que eu soube, doei meus vestidos de grife que levei a uma igreja, acendi uma vela em respeito à fé dela e arrumei um trabalho em um bar em Roma. A Samantha que Enriqueta queria que eu fosse ficou com ela, a terminar no final daquela vela grande. Sophie sim poderia vivenciar a vida com os dois pés no chão, e não passando por cima de tudo em um G6.
- Mãe, dê um abraço no pai por mim. Eu não vou voltar. Espero que vocês fiquem bem.
Era sábado de manhã e eu tomei um banho. Era irônico e simbólico. Agora eu era Sophie e, hoje à noite, Sophie ia servir bebidas em um bar qualquer de Roma.
Eu me sentia mais livre do que nunca.
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À Procura
AdventureVocê já se sentiu farto da sua própria realidade? Depois de inúmeros motivos, Samantha Di Laurette, uma jovem rica e completamente entediada do seu círculo social resolve viajar pelo mundo sem olhar para trás. E sem passagem de volta. Porém, o que p...