𝕮𝖆𝖕í𝖙𝖚𝖑𝖔 1: 𝕬 𝕻𝖔𝖗𝖙𝖆 𝕬𝖇𝖊𝖗𝖙𝖆

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Evanora

Você não costuma prestar a atenção se está ou não respirando. É algo tão natural e banal, que não é dado o devido valor até que você perca o oxigênio. Eu respirava, mas não estava viva.

Eu me tornei apenas um corpo, insólito e gelado. Minha alma pareceu ter se perdido em algum lugar escuro, e a cada minuto que minha mente me obrigava a revisitar o que minha vida transformou-se, um bloqueio não me permitia ir longe demais com meus pensamentos. Tudo era resumido a ecos, vozes, memórias vagas, como um cemitério nebuloso, condenado a um silêncio avassalador e martirizante.

Era como se eu precisasse sangrar para saber que estava viva, para provar-me que não era apenas um delírio. E, para falar a verdade, eu perdia cada vez mais a vontade de decifrar seja lá o que tivesse acontecido comigo. Eu não era mais capaz de derramar nenhuma lágrima. Era como se elas tivessem secado, e com elas, levado parte das minhas emoções. Pelo menos, a parte boa delas.

Ao menos, antes de partir, Emerald, que foi morta por um dos Patronos que invadiram a Academia, me contou sobre sua visão, que teve há semanas atrás.

- Eu sinto muito por não ter dito a você. - Ela engasga com o próprio ar. Seus olhos já estavam sem brilho, como uma despedida de sua alma através do olhar. - A profecia pode mudar você, Eva. E agora, não falta muito para que se concretize. - Ela suspira profundamente, os lábios brancos e secos me fazem revirar o estômago. - Você precisará escolher um lado quando a Aureola Lunar chegar. Tome a decisão certa.

Foram suas últimas palavras. E agora, o eco ressoante de sua voz se mantinha cravado em minha mente, embora eu não estivesse pensando direito.

Vergil havia fugido, mas não antes de concretizar seu ódio contra mim, levando Noah e meu pai junto com ele. Eu não fazia ideia se eles dois estavam ou não vivos, e não perderia muito tempo até descobrir. A localização deles era desconhecida, e seu destino incerto. Uma parte de mim me dizia que era apenas uma armadilha dele para me atrair. A outra, que agora já apenas sussurrava em algum lugar esquecido e empoeirado da minha cabeça, me dizia para acreditar que eles estavam bem, e que tudo seria resolvido. E essa parte, a angelical, branca, morna e inocente cada vez se perdia mais e mais, e logo não passaria das cinzas do que eu fui um dia. A outra metade, demoníaca, negra, fervente e ferida, clamava por vingança. E era exatamente a parte que tomou tudo de mim, possuindo-me em suas trevas.

Tudo havia sido tirado de mim. Minha família, meu melhor amigo, minha mãe, e minha tia. Todos mortos por minha causa. Ou era o que eu estava pensando. Ainda mantinha uma certeza incessante de que Vergil não queimaria as pontes que me levariam até ele, matando os dois. Era o último vestígio de esperança que me mantinha sã, um fio tênue e frágil que separava-me da insanidade total.

Eu nunca mais teria as festas de aniversário em meu apartamento, com um bolo improvisado e karaokê com Noah. Não teria mais que acordar todos os dias às sete, ir para a cafeteria, dizer olá para Valerie, e acariciar Lydia, sua gatinha. Não iria para casa assistir qualquer filme dos anos 2000 com tia Clarice nas noites chuvosas de sábado, enquanto o cheiro de pipoca invadia a casa. Não jogaria mais basquete com meu pai aos domingos, ou comeria seus waffles novamente. Minha vida havia se tornado o extremo oposto de normal, agradável e ensolarada. E eu não sabia como amava tudo até perder, assim como toda a humanidade está fadada ao arrependimento em suas vidas, seja por ambição ou ingratidão. E eu era a única culpada por ter escolhido largar tudo para trás.

Me encaro no espelho. A figura me encarava de volta com íris negras, como um abismo profundo e eterno, tornando a cicatriz que partia a diagonal esquerda do meu rosto ainda mais visível. Meus olhos não eram mais os mesmos. Eram ferozes, obstinados. Haviam cortes em meus braços, causados pela luta com Vergil, há três dias. Estes eram um lembrete do motivo pelo qual eu ainda deveria batalhar, e eu jurei para mim mesma não descansar até ter sua cabeça arrancada pela lâmina da minha espada, como fiz com Jack. E eu não me arrependia nem um pouco.

As Peças Celestiais: Condenação (Livro ll)Onde histórias criam vida. Descubra agora