O "Y"

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Era uma bifurcação. Um grande "Y" em que o rio sangrento se fundia com o rio das águas cristalinas formando um só que provavelmente seguia diretamente para Pérgamo. Percebi que o que precisava fazer era bloquear a passagem da água contaminada com sangue e apenas deixar a limpa fluir.

Entretanto, falar é muito mais fácil do que fazer. Nas condições em que eu estava não conseguiria nem ao menos derrubar uma árvore para fazer a barragem, além de não ser uma boa ideia bloquear o fluxo de um rio sabendo que, de uma forma ou de outra, ele encontraria um jeito de seguir o seu fluxo.

Precisava achar outra solução.

Anoiteceu. Junto à chegada da noite consegui lenha para acender uma fogueira. Fiz uma pequena cabana para passar a noite. Dentro da tenda de galhos improvisada escutava apenas o barulho de grilos e às vezes uivos de lobos, tentando ficar o mais quieto possível para não os atrair. Olhei para as águas escuras do rio limpo e imaginei quem poderia ser o causador do que quase me fez morrer naqueles dias. Tudo o que estava vivenciando era novo para mim. Nunca precisei presenciar a morte de alguém. Normalmente as notícias apenas chegavam para nós e as fofocas nos entregavam os detalhes. Era feito um enterro imaginário da vítima para não poluir o solo onde plantávamos parte de nosso alimento.

Tentei desviar meus pensamentos da dor para o ódio, mas isso intensificava o meu terror frente ao desconhecido. Estava com o olhar fixo nas águas até ver um barquinho de papel sendo levado pela correnteza. Entrei na água gelada e consegui pegar a dobradura flutuante. A levei para a superfície e apreciei por alguns instantes algo diferente do que já havia visto naqueles últimos dias.

Desdobrei o papel e nele estava desenhando uma seta vermelha. Na hora pensei que fosse uma armadilha de algum saqueador ou até do Libertador. Entretanto, na última vez que enviaram um aviso, se não fosse tarde demais teria me dado a chance de salvar meu grupo do incêndio. Não fazia ideia de quem me passava aquelas informações, e nem o porquê de ela se manter escondida enquanto as passava.

Alguns minutos depois consegui compreender o que aquela seta queria dizer: decidi seguir sentido contrário da correnteza do rio vermelho pela manhã, caminho pelo qual eu ainda não percorrera e que talvez me levasse para a causa do problema.

...

Amanheceu.

Dormi muito mal por causa dos lobos, mas recuperei parte da minha energia só em não precisar caminhar com a minha perna ferida na escuridão. Comecei a andar sentido contrário da correnteza do rio vermelho, que na verdade encontrava-se bem calma, quase completamente estática.

E ela parou. De repente a correnteza parou. Isso aconteceu no exato momento em que me deparei com uma horda de zumbis atravessando o rio, direto para a minha direção.

Corri para as árvores e encontrei uma estrada, dessa vez asfaltada. De uma monótona manhã me deparei com uma série de coisas estranhas e que ameaçavam mais uma vez minha vida. Olhei ao redor e procurei algo que me ajudasse próximo daquele pequeno pedaço humano na floresta. Avistei um contêiner grande virado ao lado da rua. Tentei abri-lo e não consegui: estava trancado por dentro.

Os zumbis se aproximavam e eu não estava em condições de correr. Subi no contêiner e cruzei os dedos para que eles me deixassem em paz e continuassem seu caminho. Aguardei deitado no alto da velha lataria enquanto as mãos batiam e, consequentemente, chamavam sua atenção para o próprio barulho que provocavam.

Segundos depois eu estava em cima da grande caixa de ferro com dezenas de mortos-vivos em volta tentando me devorar.

Pensei na possibilidade de pular, mas eram muitos deles e não havia como escapar ileso daquela situação. Ilhado em um contêiner no meio de uma estrada que atravessava a floresta, pensei que não havia mais como piorar. Ficaria lá por um longo tempo e acabaria morrendo de sede e fome, então pensei na possibilidade de me entregar aos mortos. A única coisa que me impediu de tomar tal impulso foi a promessa que fiz. Eu precisava cumpri-la, não importava como.

As horas foram passando. O sol fez o seu trajeto pelo semicírculo do céu e finalmente, anoiteceu.

Eu continuava cercado pelo barulho ensurdecedor dos zumbis. Fiquei com fome, frio, dor na cabeça e sentia que minha perna quase não fazia mais parte do meu corpo. Tudo isso me fez ficar inconsciente. Perdi meus sentidos. Pensei que já era hora de partir, então fechei os olhos, escutando pequenos barulhos de gritos, ruídos... flechadas matando os mortos e a leve voz de uma mulher.

Desmaiei.

AS ÁGUAS VERMELHASOnde histórias criam vida. Descubra agora