CHAPTER SEVEN, NEPENTHE

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      Deitada no galho mais baixo do carvalho monstruoso no topo da colina, dou atenção ao chacoalhar das folhas, em uma dança guiada pelo vento.
      Edmond se encosta na árvore, nossas capas no chão aos seus pés. Ao nosso redor, flores cobrem o chão na altura dos joelhos, com os caules se dobrando ao forte vento que brinca com meu cabelo solto.       Posso ouvir a água em movimento no riacho que corre atrás do carvalho, a cachoeira pequena rodeada de pedras cai em uma piscina afundada no centro da colina.
      — Por que me trouxe aqui? — as palavras saem mais ásperas do que esperava. — Quero dizer, este lugar é incrível. Olhe para este carvalho, e as flores, e o riacho... Mas qual o motivo?
      — É bem simples, Cisna — ele começa, estendendo a mão para me ajudar a descer da árvore. — Você está presa aqui, querendo ou não.
      De fato, suas palavras são verdadeiras. Eu me condenei à uma jaula aberta no momento em que desci pelo santuário, cruzando a fronteira e matando aquele homem no lago. Pensei que a floresta fosse um local de certa forma mágico pelo mistério que envolvia seus habitantes. Imaginava camas em árvores e animais alados, não uma versão do vilarejo só que rodeada por árvores e campos floridos. Mas também não sei se acreditaria em criaturas mágicas, mesmo as vendo.
      Me sinto como a criança das histórias que me contavam, à quem é oferecido um delicioso doce por um estranho, e no fim é esquartejada em uma cabana escura, pelas próprias escolhas movidas pelo desejo e não pela razão.
      Edmond me guia até uma pedra na borda da colina, me convidando a sentar junto a ele na rocha cinzenta. Relutante, me junto a ele, tomada pelo medo da pedra despencar com nosso peso.
      — E na sua posição, eu gostaria de conhecer minha jaula. — Edmond aponta com o queixo, para os pés da colina.
      — O que é aquilo? — pergunto, sem desviar o olhar.
      Na campina, pessoas se deitam no chão em posições específicas, enquanto outras dançam ao redor das três fogueiras altas que liberam a fumaça em direção ao céu azul. No centro, um templo em ruínas brilha na luz do sol. Demoro para perceber que apenas as mulheres participam do evento, as dançantes com vestidos longos e transparentes que flutuam como se não houvesse gravidade, entre um pulo e outro, ao passo que as figuras deitadas na grama exibem o corpo nú à luz da manhã. É lindo.
      — A essência da floresta — explica.
      — O que elas estão fazendo? — estreito os olhos, tentando entender. — E por que elas estão nuas?
      — É um ritual antigo, estão honrando o sol, vocês não têm nada assim no vilarejo?
      Não sei o que responder. Nossos costumes não são tão aflorados quanto os deles. Meus pais me obrigavam a frequentar a igreja, mas nunca tive uma crença exata, diferente do resto do vilarejo que é majoritariamente cristão. Não há fogueiras ou templos antigos, apenas a velha igreja no fim da rua.
      — Não — respondo simplesmente.
      — Vocês não acreditam no Desconhecido? — ele parece confuso.
      — Eles acreditam em coisas etéreas, você sabe como é.
      — Eles? Você não?
      — Não exatamente, não sei. Não acredito que exista vida após a morte e essas coisas.
      — Como não? — suas palavras me cansam.
      — Existem muitas possibilidades, mas no fundo penso que só acreditam em uma vida após a morte para amenizar o impacto da verdade — minha voz sai áspera.
      — E o que seria a verdade? O que acontece depois da morte, Cisna? — Edmond questiona minhas palavras com os olhos fixos nos meus, e uma arrogância detestável.
      — Tudo fica escuro, e nosso corpo apodrece dentro de um caixão.
      Ele me observa sem dizer nada, digerindo minha opinião em silêncio, contorcendo o rosto em discórdia.
      Olho novamente para o ritual abaixo de nós, a pele das mulheres nuas brilha intensamente, é como se as estrelas houvessem caído na grama verdejante. As dançantes continuam pulando e girando com seus vestidos leves como o próprio ar, ao redor das chamas que devoram a madeira. Não posso ouvi-las com a água que corre atrás de mim, mas imagino que estejam cantando para seu "Desconhecido".
       — Posso te levar para ver uma coisa?
      Encaro os olhos verdes, misteriosos em meio às sardas claras, quase invisíveis. O cabelo da cor da areia molhada, exibe uma ponta arrepiada indicando o riacho. Edmond se levanta, me estendendo a mão, que agarro com hesitação.
      Preciso prender meu cabelo novamente sob o capuz ao descer a colina. Apesar do sol, a brisa que mordisca minhas bochechas é úmida e gelada.
Entre as árvores, Edmond parece procurar o ponto mais fundo, tirando galhos do caminho, cada vez mais dentro da floresta. Algumas pessoas nos cumprimentam e preciso forçar a voz para parecer com um garoto, mas conforme tropeçamos em espinhos no meio da mata, não ouço nada além de nós mesmos.
      Meus olhos analisam seus passos, e conforme nos isolamos de qualquer outro ser humano, no meio do musgo e da fina neblina que domina alguns pontos do chão, meu coração acelera em um ritmo confuso. A cada passo me sinto mais perdida, Edmond não revela nosso destino, e apesar de parecer familiarizado com o caminho, não sei se devo confiar completamente nele. É claro que preciso depositar uma parcela de confiança, afinal ele está me ajudando e parece ser uma boa pessoa, mas a cada suspiro de exaustão, os rostos riscados das fotografias parecem sussurrar na minha memória.
      — Todas aquelas fotografias... — me arrependo de abrir a boca, quebrando o silêncio como um galho. — Quem são aquelas pessoas sem olhos? O que elas fizeram de tão ruim para merecer o esquecimento?
      — Andou bisbilhotando pela casa? — ele me corta com amargura.
      Fico calada, pois agora sei que falar coisas erradas nos momentos errados é a minha maldição. Ele continua pisando em galhos secos, abrindo caminho entre as árvores, abrindo e fechando a boca, dois lados brigando dentro dele, um secreto, outro de vidro.
      — Elas morreram. Foi isso que fizeram.
      Meu chão desaba, e eu caio em uma piscina de vergonha e arrependimento.
      — Sinto muito, eu não... Lamento, de verdade...
      — Chegamos — ele salta por cima das minhas palavras como um cabrito irritado.
      Edmond me ajuda a passar por cima de uma árvore caída no meio da relva, e ao pular do tronco para o chão, me deparo com um cenário magnífico, um vislumbre etéreo.
      Um círculo de árvores floridas protege a figura estonteante da garota que descansa no chão, rodeada pelas margaridas que crescem junto à grama úmida, suas mãos encostadas apenas pelos dedos que despedaçam uma flor sobre o peito, os joelhos levemente levantados, dobrados para o mesmo lado em um movimento interrompido pelo tempo. Seu rosto é dividido entre a paz melancólica e o sofrimento velado, uma fina mecha de cabelo cruza sua testa, enquanto o resto se esparrama pelo chão como o vestido extremamente fino que se derrama sobre o corpo, os detalhes perfeitamente esculpidos no mármore, transformando a estátua em uma dama mórbida. Sua figura dramática é um poema ao qual meus olhos não fogem.
      Edmond segue calado, mantendo certa distância da ninfa congelada, que até mesmo o tempo respeita ao não deixar que a vegetação ou o clima interfiram no mármore intacto, exceto por algumas folhas secas que inevitavelmente caem em pontos aleatórios com um sopro da brisa.
      Meus pés são movidos pelo impulso, e eu me ajoelho ao lado dela, admirando cada curva. Não sei explicar a euforia que cresce em meu peito, se espalhando por entre meus dedos magros que tocam o rosto rígido, que parece tão suave quanto uma pétala, com a pele perfeitamente feita. Me sinto triste pela estátua, e meus olhos por vezes me enganam com um falso movimento do tecido ou profundidade da carne. Se eu me concentrar o suficiente, posso ouvir seu último suspiro de vida. Nenhuma palavra é capaz de definir minha afeição pelo mistério que descansa na minha frente. Que tipo de tragédia habita nos olhos enigmáticos? Um amor roubado pela vingança? Um assassinato encoberto? Veneno nos lábios pálidos?
      Me afasto, pois sinto que se continuar a contempla-la, a loucura pode apodrecer a razão.
      — É como se ela estivesse morta. — Me sento na árvore caída, ao lado de Edmond.
      — De certa forma, está — ele diz simplesmente. — Essa estátua está aqui há séculos, e mesmo assim não vejo um arranhão no mármore.
      Ele não desvia o olhar, e por um momento sinto uma pontada de angústia ao vê-lo tão preso à moribunda.
      — Na floresta existem muitos mistérios, Cisna. Você acredita em fantasmas? — sua pergunta é insistente.
      Me lembro da mulher que me visitou noite passada, descendo as escadas descalça, com todas aquelas abelhas no cabelo. Não acredito que exista algo como vida após a morte, mas acredito que somos capazes de deixar marcas, assinaturas, como memórias inconscientes, que sabemos que estão ali, mas não conseguimos alcançar. Talvez ela tenha sido uma dessas marcas, selada às paredes da casa. Me pergunto se isso não é o mesmo que acreditar em fantasmas. Às vezes me surpreendo com a minha hipocrisia.
      Olho para a dama mórbida, descansando no chão, e ao lado de sua cabeça alguém está debruçado sobre ela, acariciando as bochechas duras com os dedos. O vestido vermelho se esparrama sobre as margaridas e o cabelo ondulado cobre o rosto, mas o zumbido das abelhas denunciam o espectro.
      Penso na pergunta de Edmond, que permanece cego em relação à aparição.
      — Somente naqueles que criei dentro da minha cabeça — olho para ele, apenas para descobrir que já estava me encarando em um silêncio profundo.
      — Algumas pessoas vêm uma figura lúgubre, sofrendo entre as margaridas. Outras enxergam uma dama, que caiu no sono depois de uma longa dança na floresta — ele explica, com a língua mergulhada em um idioma fúnebre. — Dizem que o modo como você a vê, pode prever seu triunfo, ou sua tragédia.
      — Então morrerei mais cedo do que esperava.
      Procuro pelo meu fantasma de vermelho, mas ela já foi levada pelo vento.
      Edmond finalmente se aproxima da estátua, ajoelhado à seus pés, afastando algumas das flores brancas para que eu possa ver a pedra de mármore na qual linhas confusas parecem se afundar como letras.       Chego mais perto, analisando o espaço até então escondido, no qual leio:

      Um mistério apodrecendo no inferno,
      Ascendendo no pandemônio;
      Eternizado no fogo das estrelas.

      — É um túmulo — explica, pronunciando cada palavra com uma doçura melancólica. — Mas ninguém nunca soube seu nome.
      — Um mistério — concluo sem entonação.
      — Você veio para a floresta em busca de mistérios, e mistérios são o que você encontrou.
      — Conte-me mais — peço —, por favor.
      Escuto atenta, enquanto Edmond narra um conto antigo, sobre uma garota fugaz, amante das flores e seus significados, que um dia se afogara no lago ao cair e bater a cabeça em uma pedra afiada. Trágico, todavia poético.
      Ficamos em silêncio, pensando na história fúnebre da alma tão nobre.
      — Alguns ousam dizer que seu espírito vaga pela floresta, que nos protege.
      — Ela se parece com algumas estátuas que eu vi no vilarejo — constato, me lembrando do santuário.
      Edmond parece acessar uma memória.
      — Me diga, como você atravessou com todos aqueles vigilantes na fronteira? — ele me dá as costas, quebrando um graveto entre os dedos.
      Pulo para o outro lado da árvore caída, insinuando nossa partida. Algo dentro de mim me obriga a dar-lhe a informação. Conto sobre o santuário, apontando para a perna coberta ao mencionar a cicatriz. Descrevo a caverna escura com as estátuas e as trepadeiras, falo sobre a fonte enterrada por folhas caídas e sobre a escadaria escorregadia que me trouxe até a floresta. Ao terminar, observo sua expressão, balbuciando algo que não posso ouvir.
      — Se lembra de como chegar até lá pela floresta? — ele pergunta, esperançoso.
      Apenas balanço a cabeça de um lado para o outro, e seu semblante perde o brilho.
      — Acredito que esse santuário seja um dos nossos — continua —, perdidos há muito tempo. Antes mesmo da fronteira existir.
      — Acha que há mais, espalhados pelo vilarejo?
      — Talvez um ou dois, a maioria dos santuários sempre foi construída na floresta. — Edmond aperta as covinhas no queixo com o indicador. — Mas isso talvez seja um problema. Mais alguém sabe da existência dessa passagem?
      — Não, não — asseguro. — Não contei para ninguém, e não acredito que outra pessoa saiba, porque o lugar estava em ruínas, consumido pela vegetação. Só eu sei sobre o santuário — digo com mais certeza.
      — Mesmo assim, alguém pode ter te seguido quando você chegou.
      Penso no assunto, mas não me lembro de ver ou ouvir alguém por perto depois de atravessar.
      — Você é mesmo uma caixinha de Pandora, não? — ele diz, com arrogância.

Forest Embers and Rooting Souls - FEARS (Concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora