Pelo que Veuria conta, o santuário está da mesma forma que eu me lembro. Ela e Macaire só o acharam no início da tarde, coberto pelo musgo e escondido pelas raízes. Segundo eles, foi difícil porque a árvore que eu descrevi como ponto de referência, perdeu quase todas as folhas e flores nesse período de tempo, restando apenas os galhos praticamente nus. Edmond, Pluvia e Fierce passaram a manhã inteira investigando, mas não encontraram nenhuma pista. Faltam apenas algumas horas até o sol sumir no horizonte, e colocarmos nosso plano em prática.
Edmond ainda está frustado, não é segredo que ele queria ter resolvido a história da Ouroboros. Mas pelo menos, nos últimos dias ele tem prestado atenção aos meus conselhos, e sua relação com Fierce está começando a melhorar. Ainda vai demorar um bom tempo, mas os dois já conseguem conversar sem atacar um ao outro – na maioria das vezes –, e isso é um ótimo avanço para ambos os lados.
Daphna e Falena ainda não voltaram. Elas saíram algumas horas atrás, foram buscar a mãe e algumas coisas que não quiseram deixar para trás, mas já se passaram quase duas horas desde a saída das duas.
O resto de nós já está preparado. Alguns, como Pluvia, Fierce e Macaire, carregam toda a bagagem em apenas uma mochila pendurada nas costas. Edmond precisou de uma mala grande para que suas roupas e poções coubessem, além de algumas fotografias com rostos riscados, fotografias de seus pais. Minha única bagagem, é o relicário que eu trouxe comigo, quando fugi do vilarejo. Queria que meus pais estivessem aqui, mas se eles estivessem vivos, eu não teria fugido, para começo de conversa, e nada disso estaria acontecendo.
Veuria é a que vai carregar mais peso, com duas bolsas cheias de armas, e uma de bagagem. Ela trancou o arsenal com o que sobrou dentro dele, para que ninguém bote as mãos nas armas deixadas para trás. Esperamos não precisar dos brinquedos letais que ela tem nas bolsas, mas provavelmente precisaremos deles em Rosetrum. É uma cidade que não deveria existir, segundo a lei, então, muito provavelmente, vamos precisar de uma moeda de troca para entrar, e esperamos que as lâminas e gatilhos sejam nossas passagens.
Veuria também nos deixou escolher algumas para nós mesmos. Ela ficou com um par de sai, uma arma da qual eu nunca tinha ouvido falar antes, mas que, de alguma forma, combina com o vestido prateado, com mangas pretas dramáticas e um cinto metálico que imita as pétalas de uma rosa, ao redor de sua cintura fina. Fierce preferiu manter a adaga que eu lhe devolvi alguns dias atrás. Pluvia escolheu uma espada cheia de desenhos esculpidos no cabo prateado. Uma foice de quase dois metros, foi a preferência de Macaire. Edmond acabou pegando um arco prateado, as flechas na aljava têm penas vermelhas e pontas afiadas, nas quais ele fez questão de colocar veneno, só por garantia. Para Daphna e Falena, Veuria separou uma katana, e um par de foices douradas.
Eu tentei recusar, no começo, pois minha experiência com armas é praticamente inexistente, mas acabei aceitando um machado, que ainda seguro, com os dedos apertados ao redor do cabo gelado.
Ninguém diz nada, por um longo tempo. A cada segundo, estamos mais perto da morte, ou da liberdade, e particularmente, tenho medo de descobrir para qual dos dois lados iremos correr. Sabemos que essas horas que passamos sentados, nos preparando, podem ser as nossas últimas, caso nossos planos saiam dos eixos.
Pluvia tenta cantar uma melodia para desfazer a tensão, mas a cantiga melancólica só nos confina cada vez mais dentro de nossas próprias mentes perturbadas.
Edmond está ao meu lado, ele aperta as mãos, com um olhar vazio. Por um momento, ele se parece com uma das estátuas do jardim de minha antiga casa. Apoio minha cabeça em seu ombro, e sua mão desliza até a minha. Quero abraçá-lo, mas um barulho de batidas na madeira nos alerta de que ainda não estamos seguros.
Veuria abre a porta, e Daphna tropeça escadaria abaixo, arfando e gritando com uma urgência além de meu entendimento. Ela tem pétalas azuladas ao redor dos olhos rosados, que vão até um pouco acima das bochechas, imitando longos cílios.
— Acharam a assassina... — Ela puxa o ar com dificuldade. — Acharam a assassina.
Ninguém diz nada. O silêncio é tão grande, que posso ouvir meu coração pulando as batidas, confuso em relação ao ritmo que seguiu a fio durante anos. Tenho um milhão de perguntas, prestes a serem respondidas de uma só vez. Não percebo que estou tremendo como uma criança no inverno, até Edmond apertar minhas mãos com mais força.
— Quem? — Fierce se levanta.
— Vocês precisam vir... — ela ainda está arfando desesperadamente. — Agora. Até você — seus olhos me encontram.
— Não posso, vão me reconhecer — argumento.
Mas não há tempo para discussões.
Daphna me puxa pelo braço enquanto corre, e me empurra para fora com violência. A luz do sol, tão brilhante e tão dolorosa, ofusca meus olhos imediatamente. Os sons da floresta me deixam desorientada, apoiada na árvore como se minha vida dependesse do tronco liso e das raízes aéreas. Meus pés sentem o pinicar da grama verdejante, e sugo o ar fresco que entra pelas minhas narinas, absorvendo cada segundo do cheiro de pólen e ameixas. Zumbidos perfuram meus ouvidos, e sinto a melodia dos pássaros, batendo em minhas têmporas até que o som se instale em meu cérebro confuso. Me sinto viva, novamente. Acordada. Como se todos aqueles dias no escuro, com a pouca iluminação das lamparinas, fossem apenas um sonho.
Fierce sai logo em seguida, acompanhado de perto por Macaire, Veuria, Edmond e Pluvia. Todos estamos confusos, mas sem questionar, seguimos Daphna pela floresta.
A luz dourada do fim do dia salpica o chão com seu brilho, invadindo nosso caminho através das folhas das árvores que balançam ao vento. Corremos atrás da silhueta pálida de Daphna, escorregando no musgo que envolve as raízes salientes e pulando por cima de arbustos de bargas. Penso brevemente no quanto o filhote de cervo adoraria ver as amoras silvestres pelas quais passo, desviando dos espinhos sedentos por uma vítima, mas espanto o pensamento, prestando atenção no caminho que exala vida.
Fierce é o mais desesperado, correndo como um leopardo à minha frente. Acho que nunca o vi desse jeito, e isso me faz ter mais pressa. Afinal, o que está acontecendo? Para onde estamos correndo? O mistério no qual estamos envolvidos, me deixa preocupada.
Apesar do clima fresco, o vestido gruda em minha pele molhada, e sinto as gotas escorrendo pelo meu rosto e pescoço, manchando o tecido de suor.
Olho para o lado, e não posso deixar de admirar a graciosidade de Pluvia. Ela parece flutuar no vestido comprido esvoaçante de tule, que adquire um tom de lilás à luz do crepúsculo, com plumas suaves envolvendo seus ombros e um pouco das costas. Imagino que seria um inferno para mim, correr com algo tão frágil, que pode enroscar em qualquer coisa, a qualquer momento, mas ela faz parecer fácil.
Pode ser apenas impressão, mas Daphna parece deixar um rastro de plantas doentes enquanto passa.
Depois de longos minutos, me deparo com a campina, e minhas pernas se recusam a cooperar. As crateras deixadas pelas bombas, foram preenchidas por terra, e flores douradas e vermelhas enfeitam o que há algumas semanas, eram apenas buracos deixados pela tragédia do Dia Etéreo. No centro da campina, tenho o vislumbre do templo à luz do entardecer. Mas o monumento não é o centro das atenções hoje, nem bombas, nem taças envenadas.
Nas escadas de mármore, Caelestis – a líder do Povo da Floresta –, é rodeada por uma multidão enfurecida. Ela parece graciosa em sua roupa dourada, com as grandes asas esticadas para os lados. Mas se esse é um momento de festa, não avisaram o resto do público.
Caelestis tenta voar, mas as pessoas ao seu redor a seguram no chão, arrancando pedaços de tecido de sua roupa, estraçalhando a imagem poderosa que um dia eu tive da líder da floresta. Como uma última tentativa, ela corre entre a multidão, tropeçando nos próprios trapos, afundando o rosto na grama. Ela consegue se levantar e dar alguns passos na direção das árvores, se preparando para alçar vôo e desaparecer entre as nuvens com o que sobrou de suas penas, mas Falena é mais rápida.
A garota estava no meio da multidão o tempo todo, com uma mulher mais velha ao seu lado – provavelmente sua mãe –, e no momento em que os pés de Caelestis deixam o chão, ela agarra uma das asas monumentais e arranca um punhado de penas ensanguentadas de um vez só.
Ver o sangue que sai de suas asas a cada pena arrancada, só me faz perceber que tudo é real. As asas são reais. As plantas podem sentir a morte. Fantasmas podem existir. E não preciso de uma explicação científica para tudo.
Pluvia me puxa de volta de meus pensamentos, ao correr na direção do caos. Edmond também se junta à multidão, e Fierce ajuda Falena a estraçalhar as asas de Caelestis. Pessoas atiram flechas e facas em seus braços e pernas, mas evitam acertar qualquer parte vital do corpo da mulher alada.
— O que está acontecendo? — pergunto para Daphna.
Ela observa atentamente o ocorrido. As pétalas azuladas grudadas ao redor de seus olhos, a deixam com uma aparência mística, como se elas houvessem crescido de sua pele naturalmente. Olho para seus pés, não sei dizer ao certo, mas a grama sob ela parece estar doente. O rastro, o pensamento surge em minha cabeça. Daphna está marcada.
— Fallacia — ela responde, pegando o isqueiro em seu bolso.
Suas mãos ainda estão enfaixadas e precisam de muitos cuidados, mas ela consegue agarrar o objeto e andar tranquilamente até o centro da confusão, onde acende o isqueiro e incendia as asas de Caelestis, que se contorce no meio da aglomeração de pessoas. Não posso deixar de pensar que isso foi um ato de vingança, uma retalhação silenciosa por suas mãos praticamente destruídas.
Mesmo de longe, posso ver o brilho das chamas, faiscando nos olhos de Daphna, refletido nas órbitas que observam a humilhação da figura que se debate diante de todos. É perturbador, ela está queimando.
Alguns se afastam da figura em chamas, enquanto outros ignoram o fogo, chutando Caelestis e arrancando tufos de seu cabelo negro, que começa a desaparecer, sendo consumido pelas labaredas em suas asas. Mesmo com todos enfurecidos, xingando e berrando, seus gritos sobrepõem qualquer barulho, ecoando pela campina, o lamento de dor se espalha pela floresta.
Ela bate as asas na esperança de apagar o fogo, mas as chamas só ficam mais altas, e queimam seus braços, suas pernas, seu rosto. Caelestis, a líder da floresta, cai em uma poça de sangue e pele derretida. Se debatendo na grama chamuscada. Ela tenta se arrastar, mas seus braços queimados grudam em seu tronco a cada movimento, e seus gritos de dor são ensurdecedores. Seu próprio povo está a matando.
Olho para o lado, apenas para encontrar Veuria vomitando. Macaire tenta ajudá-la, mas a garota recusa qualquer tipo de aproximação. Ela cai no chão, sentada perto do próprio vômito, observando tudo com um olhar vazio. Macaire me encara, implorando por uma explicação decente, mas sei que no fundo, ele já entendeu o que está acontecendo.
Caelestis era a falsa Ouroboros. Ela matou seu próprio povo.
Não entra na minha cabeça, que ela foi capaz de fazer tudo isso com pessoas que confiavam cegamente na figura alada dela. Eu esperava que fosse alguém totalmente diferente. Alguém revoltado com suas condições de vida. Alguém que simplesmente queria causar o terror na população. Mas a própria líder da floresta? É inacreditável, em um nível absurdo de desumanidade. Mas, foi mesmo apenas para botar a culpa em mim, por eu ter atravessado a fronteira? Caelestis não faria algo tão arriscado, por um motivo tão pequeno.
— Ela queria a guerra — Veuria lê meus pensamentos. — Ela causou a guerra.
Então tudo faz sentido. As peças começam a se encaixar e o quebra-cabeças é resolvido em uma euforia caótica. Caelestis não fez isso para que seu povo se revoltasse contra mim, ela fez isso para que seu povo se revoltasse contra o vilarejo. E com o medo instalado no cérebro de seus seguidores, ela planejou o ataque que acontecerá em algumas horas. Ela foi a ruína da floresta, não eu.
É difícil dizer se a vegetação embaixo dela está podre, ou apenas contaminada pelo sangue e tudo o mais. Mas Caelestis não está morta. Uma garota ruiva – a mesma que participou com Daphna da competição do Dia Etéreo, e conseguiu se tornar sacerdotisa –, cobre o corpo inerte no chão, com um pano vermelho que logo sufoca as chamas. Ao retirar o tecido de cima de Caelestis, é possível ver o estrago feito no corpo.
Ela está em carne viva, sangrando como um chafariz escarlate, se movendo com dificuldade. Suas asas foram estraçalhadas, suas roupas viraram cinzas grudadas à pele derretida. Está morrendo, humilhada, agonizando no próprio sangue. É como ver um leão ferido, mas muito pior.
Um grupo de pessoas à carrega para o templo, eles não vão deixá-la morrer. A morte seria fácil demais, e ela não merece um pingo de misericórdia.
Fierce e Daphna voltam correndo para perto de nós, ele está esfregando as mãos no rosto, e ela brinca com o isqueiro. Edmond, Pluvia, Falena e sua mãe o seguem, mas antes que possam se aproximar muito, a multidão atrás deles começa a acender tochas de fogo e prepar flechas nós arcos. Uma rebelião não acaba tão cedo, ela só tem fim quando um último rebelde permanece em pé. E os corpos jogados, serão os nossos.
— Alí, são eles! É ela! — um homem aponta para mim.
Não tenho certeza, mas acho que ele era uma das pessoas com margaridas no Dia Etéreo. É claro que haveriam traidores com o símbolo da paz. Isso é o que faz uma guerra.
Olho para Fierce ao meu lado, clamando por ajuda, mas ele não diz nada. Veuria se levanta rapidamente, e Macaire se prepara para correr, mas não podemos fugir assim.
— Eden — eu os lembro. — E nossas coisas...
— Vamos acabar com isso — outro homem grita na multidão. — Precisamos purificar a floresta, sem exceções! O mal será exterminado hoje!
Gritos animados o apoiam. É irônico que ele queira purificar a floresta, horas antes de atacar um vilarejo cheio de pessoas inocentes.
— Vamos dar um jeito — Fierce diz, finalmente. — Olhe para mim, Cisna. — Ele segura meus ombros com firmeza. — Eu, Edmond e Veuria pegaremos nossas coisas. Macaire e os outros vão dar um jeito de buscar seu amigo. Há muitos lugares para se esconder na floresta, Daphna e Pluvia vão te ajudar. Quando tudo acabar, vamos estar esperando vocês no túmulo da dama. Agora, corra!
Ele me solta e se afasta, quando uma flecha flamejante passa perto de minha cabeça.
— CORRA! — berra Fierce.
Então uma onda de adrenalina me atinge em cheio, e Daphna passa por mim como um foguete, me arrastando junto com ela para a floresta.
Fierce, Veuria e Edmond correm para um lado, sendo perseguidos por tochas acesas e flechas, mas eles desviam da morte com maestria.
Macaire, Falena e a mulher que penso ser sua mãe, disparam na direção oposta, acompanhados de perto por outra parte da multidão. Falena segue Daphna com os olhos enquanto foge, ela também viu o rastro.
Daphna está marcada pela grama que apodrece aos seus pés. Mas ela não vai morrer hoje. Eu. Não. Vou. Deixar.
Nada é definitivo. E por mim, o rastro que a segue pode ir para o inferno, porque ele não vai alcançá-la. Não no meu turno.
Uma chuva de flechas cai sobre nós, mas por sorte, ninguém é atingido. Na segunda, uma das pontas afiadas faz um corte de raspão no braço de Pluvia, mas acho que ela está concentrada demais correndo para notar o sangue que escorre até seu cotovelo. Ela carrega a barra do vestido na altura da cintura, e corre cada vez mais rápido à nossa frente.
Daphna e eu corremos de mãos dadas, uma puxando a outra para a frente com solavancos.
Não sinto minhas pernas direito, elas se movem quase que automaticamente, me levando para longe em uma velocidade que deixa o resto de meu corpo ardendo de dor. Nosso caminho é traçado em curvas aleatórias, correndo de um lado para o outro na tentativa de despistar as flechas que ficam presas nos troncos das árvores.
Uma faca é arremessada por cima de minha cabeça no momento em que eu tropeço nas raízes de um salgueiro. O choque do impacto é tão grande que por um momento penso em ficar no chão, mas Daphna volta e me ajuda a levantar com um puxão sobrecarregado de desespero. Arrisco olhar para trás, e a ponta de uma flecha flamejante se aloja nas raízes de uma árvore ao meu lado. São muitas pessoas. Dezenas de figuras enfurecidas com tochas acesas, disparando todo tipo de coisa na nossa direção, desde pedras até machados. Qualquer coisa que possa nos matar, é um ótimo canditado a ser jogado na nossa direção.
Pluvia corre como uma raposa, desviando das lâminas e dos vultos de fogo que cortam o ar da floresta. Ela tenta entrar em um dos túneis abaixo das árvores, mas a entrada é bloqueada por um lindo machado dourado que se aloja no tronco da árvore. Estão perto. Muito perto. Forço minhas pernas a se moverem ainda mais rápido, mas é difícil correr de uma multidão movida pelo ódio, e armada pelos mais diversos tipos de objetos letais.
Então nossa única saída surge alguns metros à frente. E sem hesitar, nos jogamos no longo barranco cheio de plantas com espinhos. Imediatamente coloco os braços ao redor do rosto para me proteger, enquanto rolo barranco abaixo. Meu corpo se choca contra pedras e arbustos de amoras no caminho. Me contorço de dor a cada pancada que recebo da natureza. O solo me espanca sem dó nem piedade ao passo que minha silhueta gira em uma velocidade preocupante. Galhos cheios de espinhos rasgam o vestido vermelho, e cortam minha pele. Meu cabelo enrosca em um arbusto, e um tufo de mechas ruivas é arrancado de minha cabeça.
No fim do barranco, somos jogadas em um campo florido que nos esconde entre as pétalas e as folhas. O vestido vermelho que peguei emprestado no armário de Veuria está arruinado, cheio de rasgos e manchas escuras das bargas que esmaguei enquanto descia rolando por cima dos arbustos.
Me levanto cambaleando, meu joelho sangra e a maior parte do meu corpo está roxa e dolorida. É um milagre eu não estar com a coluna quebrada.
Olho para trás, o Povo da Floresta desce o barranco com cuidado, diferente de nós. Eles vão demorar pelo menos uns dez minutos para conseguirem chegar ao campo florido, tempo suficiente para que possamos escapar com vida.
Pluvia ainda está cambaleando, e muitas das pétalas foram arrancadas do rosto de Daphna na queda, mas ninguém está gravemente ferido. As flores cobrem nossas pernas, até a cintura, cheias de delicadas pétalas em tons suaves. Mas ao redor da garota albina, elas estão murchas e sem vida. Algo de ruim está para acontecer hoje, mas eu nunca fui pontual, e nunca estive tão empenhada em quebrar um compromisso que não é meu.
Pluvia corre na nossa frente, enquanto eu tento proteger as costas de Daphna até o fim do campo florido, onde um penhasco de cerca de dez metros nos limita. Aos pés da parede de pedra, há um grande lago de águas escuras com a superfície coberta por ninféias. Água. Muita água. Às margens do lago, há outra parte da floresta, uma que nunca tive a chance de visitar, com pinheiros verdejantes e uma estranha névoa que deixa a paisagem ainda mais misteriosa.
Mas não há tempo para admirar a beleza da floresta. E, apesar da paisagem ser pitoresca, me parece muito perigoso. Toda aquela neblina e a escuridão, somadas ao rastro de Daphna, só me deixam mais preocupada.
Elas sabem que eu não nado, por isso Pluvia começa a descer primeiro, escalando o penhasco até a água. Ela parece já ter feito isso antes, pois sabe exatamente onde pisar, e quais os pontos mais firmes para se apoiar. Ao chegar no meio do penhasco, ela pula na água e flutua entre as ninféias, me esperando.
Dou uma última olhada na multidão demoníaca que nos persegue, eles estão quase no fim do barranco, alguns já preparam as flechas e as facas, sedentos por sangue. Como podem existir pessoas como Pluvia e Daphna, no meio de tantos bárbaros cruéis?
Eles querem uma luta porque sabem que vão ganhar. Mas são eles contra eles mesmos, no final das contas. Ninguém aqui, é qualquer coisa além de humano. Era para estarmos do mesmo lado, não? Mas a floresta já se separou, e agora não tem mais volta.
— Acho que meu isqueiro não vai sobreviver ao lago — diz Daphna.
Ela está ajoelhada na ponta do penhasco, segurando minha mão enquanto desço. Não há plantas por perto, mas creio que o rastro continua a segui-la. Porém não importa. Ela não vai morrer hoje, ponto final.
— Vamos dar a ele um enterro digno — tento rir, mas os gritos que se aproximam acabam com o meu bom humor.
Piso em um buraco entre duas pedras, e me seguro em um ponto que vi Pluvia utilizar, mas quem impede que eu despenque é Daphna, que ainda agarra meu braço com força, mesmo estando com as mãos enfaixadas e provavelmente doendo.
Uma onda de terror me atinge quando olho para baixo, um sentimento inexplicável de medo e agonia, que se instala em meu peito e vai se alastrando por meu corpo. É muito alto. Pluvia conseguiu cair em um ponto sem tantas rochas, mas estou na mira de uma pedra afiada que parece sorrir para mim.
Não vou conseguir.
— Você está bem? — Daphna pergunta com dificuldade.
— Não, mas vou ficar — respondo. — É só que... a água me deixa nervosa.
Uma das poucas pétalas que restaram ao redor de seus olhos, se desprende com o vento e cai sobre meu rosto como uma pluma.
Daphna arqueja de dor, e só então percebo as manchas de sangue que começam a se alastrar na parte da frente do vestido. Suas costas devem de estar mais machucadas do que imaginei, haviam muitas pedras afiadas e espinhos no barranco. Se esse for o motivo do rastro de flores murchas, talvez consigamos curá-la. Não entendo muito das leis da floresta, mas creio que ainda há esperança. Daphna vai ficar bem, tudo vai ficar bem. Vamos atravessar a floresta de pinheiros e nada de mal acontecerá.
Ela me encara com tristeza, e coloca o isqueiro gelado em minha mão, sem soltar meu braço.
— Você pode guardar para mim?
— Daphna, o que está acontecendo?
— Só prometa que vai guardar, por favor. — Outra pétala cai.
Daphna solta um gemido, e aperta os olhos de dor. Não são apenas as feridas de nossa queda. Seu corpo se curva um pouco mais, permitindo sem querer, que eu veja as hastes das flechas cravadas em suas costas. O sangue escorre por seu vestido, até o chão, formando uma poça onde ela está ajoelhada. Só consigo ver três flechas, mas tenho certeza de que há mais delas.
— Não, não, não, não. Eu não vou te deixar morrer.
Começo a subir novamente, se eu conseguir puxá-la para fora do penhasco, vamos cair na água e talvez Pluvia possa nos ajudar. Não sei como cuidar de algo assim, mas ela deve saber. Ela não pode morrer. Não é justo, não pode acontecer. Não vai.
Daphna não precisa colaborar, eu posso arrastá-la à força se for preciso. Ela vai ficar bem. Quando encontrarmos Edmond e os outros, ele vai curá-la com suas ervas.
Daphna vai sobreviver, e no que depender de mim, ela ainda vai ter longos anos de vida para beber doses imaginárias de coragem e tudo o mais. Ela ainda vai me irritar muito com suas mudanças drásticas de humor, e vai me fazer cortar seu cabelo de forma desastrosa de novo.
— Vai ficar tudo bem — ela diz.
Daphna força um de meus ombros para baixo, tentando me impedir, e outra flecha a atinge. Dessa vez, a haste com ponta de metal atravessa entre suas costelas. Seus olhos marejados se apertam, e o sangue rubro começa a pintar os lábios pálidos. Ela continua segurando meu braço com força, apesar de toda a dor, e sei que nunca vou me perdoar por não tê-la questionado sobre o rastro, e não ter conseguido protegê-la.
— Está tudo bem. — uma gota carmesim está pendurada em seu queixo.
Meus olhos ardem e as lágrimas começam a escorrer. Sinto raiva por ela ter escondido que estava sendo alvejada por flechas. Por que ela não falou nada? As mãos destruídas não são o suficiente? Ela não pode fazer isso! Não pode nos deixar assim! Daphna não pode morrer agora. O que vamos dizer para sua irmã? Como vamos contar para sua mãe, que ela morreu por minha culpa? Não, isso não pode acontecer. Eu não posso deixar que aconteça.
— Não, não, não. — Eu me engasgo com meu próprio choro. — Não está tudo bem. Eu não vou te deixar aqui.
— Cisna, olhe para mim... eu... eu estou bem... — ela tenta falar. — Não estou morrendo, estou tentando te salvar, por favor.
— Esse não é meu nome — atropelo suas palavras. — Você merece saber...
— Shhh, isso... não importa. Nenhum nome... é melhor que Cisna.
Ela varre minhas lágrimas com os dedos esqueléticos, mas só consigo chorar ainda mais ao sentir o toque áspero das mãos enfaixadas cobertas de terra.
— Por favor, não... — imploro.
Os gritos estão cada vez mais perto, e posso ver um homem se aproximando com um machado de duas cabeças. Mais flechas são atiradas, mas nenhuma a acerta dessa vez. Seus olhos estão vermelhos, e a pequena franja que cortei em seu cabelo branco quando estávamos na casa de Veuria, está pendurada no meio de sua testa, toda desgrenhada e manchada em um tom de vinho, cortesia das amoras com as quais colidimos quando rolamos pelo barranco, achando que estaríamos seguras depois de alcançar o penhasco.
Não. Danem-se as regras da floresta. Eu não nasci aqui, e posso quebrá-las. A morte que vá beijar o Desconhecido, já que os dois são tão aliados. Mas ela não vai tocar Daphna com seus dedos imundos. Não hoje.
Ela está focada demais em mim, e muito fraca para sequer tentar me impedir. Por isso enfio meu pé entre duas rochas firmes, que me dão o suporte de que preciso para me impulsionar para cima com determinação. Em uma fração de segundo, me solto de suas mãos enfaixadas e jogo o braço por trás de sua cintura. É tudo que preciso para puxá-la para uma queda de metros e arrastá-la até a água que salvará sua vida.
Mas apesar de parecer vulnerável, ela antecipa meus movimentos e intercepta meu braço no ato. Daphna é esperta demais para ser vencida, eu deveria saber disso.
— Eu sinto muito, Erva Daninha.
Ela se inclina o máximo que consegue com a flecha atravessada em seu tronco, para me dar um beijo suave na testa, manchando meu rosto com os lábios rubros. E antes que eu tenha tempo de lutar, Daphna me solta à merce do vento, que sem nenhuma misericórdia, bate contra minhas costas enquanto caio.
Antes de atingir o lago de ninféias, uma flecha passa zunindo perto de meu ouvido, e tenho o vislumbre de um machado brilhante de duas cabeças sendo levantado no alto do penhasco. Então eu afundo, permitindo que a água escura engula meu corpo, lavando de minha testa a última marca de Daphna. Não tenho mais medo de me perder entre as bolhas que sobem para a superfície, ou de ser arrastada até as profundezas do lago, e morrer entre as raízes das ninféias.
Silêncio. É tudo que ouço enquanto afundo sem protesto algum.
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Forest Embers and Rooting Souls - FEARS (Concluído)
Fantasy🏆 VENCEDOR DO WATTYS2020 NA CATEGORIA YOUNG ADULT🏆 PLÁGIO É CRIME (ART. 184 DO CÓDIGO PENAL). CRIE SUA PRÓPRIA HISTÓRIA UTILIZANDO SUA CRIATIVIDADE. caso saiba de qualquer cópia de trechos ou mesmo da minha história completa, por favor, me avise e...